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1 A FORMAÇÃO E O TRABALHO: UMA RELAÇÃO DIALÉCTICA ?

Neste momento do trabalho importa (re)equacionar a questão do «etnocentrismo» e os perigos do mesmo, considerando que o termo foi introduzido (já no nosso século) e tem servido para designar duas atitudes intimamente relacionadas:

• a sobrevalorização do grupo e da cultura local, regional, nacional ou transna- cional, a que pertencem os sujeitos, e

• a correlativa depreciação das culturas e das organizações sociais diferentes; a universalização dos valores próprios do grupo e da cultura de pertença, assu- mindo que esses valores constituem as normas de referência para a avaliação de estruturas e práticas sociais diversas. ( Silva, 1986, p.45 )

Nas condições em que se realizou a pesquisa, o perigo de uma atitude etnocêntrica, em maior ou menor grau, esteve sempre presente. A necessidade de a evitar ( relativa e par- cialmente ) recomendou uma postura que garantisse a tentativa permanente de não ana- lisar uma dada lógica, a partir de outra lógica diferente, cujo efeito produziria enviesa- mentos que, em última análise, conduziriam à própria (in)compreensão do fenómeno em estudo.

Estamos, contudo, certos de que esta é uma operação que tem os seus limites próprios, no sentido em que a tradução dos códigos e dos critérios de interpretação de realidades que exigem uma postura de relativismo cultural tem, como diz Rowland (1987, p.28) um “carácter paradoxal”, além de que a “compreensão” do que se observa não é despro- vida de valores sociais pré-exitentes na mente do investigador; dito de outra forma, a ciência incorpora ideologia, não existindo, a um determinado nível de elaboração, objectividade absoluta.

Procurámos conseguir a maior objectividade possível na análise da realidade social, não considerando a produção do conhecimento sociológico como socialmente neutra, mas evitando distorções deliberadas resultantes de interesses ou convicções e explicitando os pressupostos presentes nessa análise (Associação Portuguesa de Sociologia, 1992,p.5). De acordo com o objecto de estudo, os objectivos do mesmo e as questões de investiga- ção que nortearam este processo de investigação, iremos nesta Parte C, interpretar os dados produzidos através do carácter multiforme dos procedimentos utilizados.

Organizámos o texto em quatro grandes áreas temáticas, das quais emergem “ramos” provenientes da análise efectuada ao «corpus» numa interrelação constante com a pro- dução de “teoria”.

Para cada um dos temas fizémos emergir dimensões e destas, categorias, que nos permi- tiram trabalhar os dados 1 mais adequadamente. Esta relação apresenta-se no quadro seguinte.

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1 A análise dos dados impõe uma sistematização teórica com o enquadramento assumido nas partes A e B, que se identifica com o nome do autor ou autores, seguido de confronte (cf) e p. que se refere à página deste trabalho.

Sempre que existir necessidade de apoiar a análise de dados em autores ou fontes que não foram mobili- zados anteriormente, segue-se a norma.

Quadro nº 13 - Relação entre as dimensões e categorias por área temática

TEMA DIMENSÕES CATEGORIAS

PROCESSOS DE ORGANIZAÇÃO DO

TRABALHO

Os campos de acção dos diversos actores

• Autonomia • Interdependência • Dependência Os modos de organizar o trabalho

• Normatividade • Rotina • Contextual A missão da Organização • Modelos de cuidar • Identidade sócio-profissional • Socialização INTERACÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO DE TRABALHO

A cooperação entre os diversos actores no processo de cuidados

• Interacção/ Delegação • Colaboração/ Conflito • Hierarquia / Autoridade As estratégias para o exercicio das autono-

mias

• Divisão do trabalho / Poder • A negociação • O Jogo / estratégia PARTICIPAÇÃO DOS DOENTES NO PROCESSO DE CUIDADOS

O doente na dinâmica social do processo de cuidados

• Papel do doente • Singularidade

• Participação nas decisões A família na dinâmica social do processo de

cuidados

• Papel da família

• Participação nas decisões

TIPOLOGIA DOS DOENTES

O paradigma biomédico na construção social do doente

• Doente mais grave • Doente menos grave • Doente em estudo

O paradigma humanista na construção social do doente

• Doente dependente de cuida- dos

• Doente com supervisão de cuidados

• Doente com ajuda nos cuida- dos

A organização dos dados nesta lógica, possibilitou-nos encontrar a qualidade discursiva dos dados produzidos, que se traduz nas dimensões que passaremos entretanto a explici- tar.

Esta investigação começou a desenvolver-se há alguns anos atrás, a partir do pressupos- to de que o contexto da investigação ia para além da contextualização pura e simples do

hospital enquanto local de prestação de cuidados, e passar a olhar para o hospital, para além desta grande finalidade, também para o seu papel formativo.

O papel formativo do hospital, no sentido em que é uma organização social complexa onde se criam e desenvolvem relações sociais complexas, neste caso entre diferentes actores que constroiem aquilo que designamos por “processo de cuidados” e que ao desenvolver este “processo” o podem fazer sob determinadas condições e através de formas diversas de organização do trabalho, considerando-se estas formativas.

Há no entanto, que distinguir entre a situação de trabalho que modifica o “actor”, indi- vidual ou de grupo, por repetição ou impregnação, e a situação de trabalho em que o “actor” tem intenção de se empenhar no processo de formação (aprendizagem), a partir da situação de trabalho, interpelando-o e mesmo (re)conceptualizando-o. (Correia, cf. p.27).

A intencionalidade e o sentido que a interacção tem para os actores são factores a ter em conta, não obstando, portanto, o potencial formativo da situação de trabalho (A.Pain, 1990).

A performance de um sistema de formação depende cada vez mais da qualidade da organização e das interacções de nível comunicacional, do que da rapidez das operações elementares, realçando-se a necessidade das intervenções formativas se caracterizarem pelo estabelecimento de relações densas e diversificadas nos contextos de trabalho e já não exclusivamente com competências cognitivas dos seus destinatários individuais (Correia,1997,p28).

Parece-nos, por isso, pertinente e necessário proporcionar ao estudante de enfermagem um confronto, uma interacção permanente entre o que aprendeu no ensino teórico e o que o enfermeiro da prestação de cuidados sabe, bem como a forma como adequa esse conhecimento à sua prática quotidiana (enfermagem real).

Os agentes de trabalho não constituem por si só, o referente exclusivo ou mesmo privi- legiado de uma formação centrada no contexto de trabalho, devendo prestar-se uma atenção particular ao sistema social em que se inscrevem esses agentes. Esta interacção entre as duas realidades parece-nos ser potenciadora de uma mais adequada e efectiva ligação em que o estudante sistematiza e estrutura os conhecimentos teóricos, na prática quotidiana, que na nossa investigação designamos por sistema de acção concreto.

Nesta lógica, torna-se importante compreender, através do “processo de cuidados” como é mobilizada a aprendizagem das competências por parte dos estudantes, bem como são

mobilizados os diferentes “saberes”, reconhecendo a realidade da estrutura de acção como algo muito forte, na forma como os actores (profissionais ou não) se situem neste sistema).

Marsick (1991), refere-se à aprendizagem nas situações de trabalho, apresentando a sua visão da seguinte forma:

1. “a aprendizagem não é prescritiva, isto é, a instrumentalidade não é a sua única finalidade; 2. o modelo organizacional funciona como um sistema de aprendizagem;

3. a aprendizagem tanto se faz por interacção como de forma individualizada;

4. o desenvolvimento pessoal e profissional fazem-se de forma integrada, relacionado com o sen- tido e a intencionalidade, a par da transformação identitária”.

Acreditamos que esta aprendizagem se liga à socialização no papel de quem cuida (cf. p.67), contribuindo para esta socialização, aprender a resolver problemas, essencialmen- te aqueles relacionados com o campo de acção, conferindo ao saber experiencial um carácter local, mas interdependente de outras aprendizagens, que se desenvolvem nas situações de trabalho e se relacionam também com a divisão do trabalho, conforme veremos no capítulo seguinte.

Para Martin (cf. p.68) o saber profissional em enfermagem não existe por criação exclu- siva, espontânea, «pura» e de forma descontextualizada, mas constrói-se, sugerindo para a compreensão o esquema de Kolb (cf. p.68).

Dubar (1991) sugere uma classificação para os diferentes tipos de saberes, na lógica que encontrámos nesta investigação:

1. “Saberes práticos - directamente ligados à lógica instrumental do trabalho (ter) e não relacio- nados com saberes teóricos. Estruturantes de uma identidade ameaçada de exclusão;

2. Saberes profissionais - implicam a articulação de saberes práticos e de saberes técnicos (fazer). Estruturam uma identidade de emprego, associada a uma lógica de qualificação do trabalho;

3. Saberes organizacionais - estruturam uma identidade de «empresa», em que se acentua a res- ponsabilidade (ser) a par da mobilização e reconhecimento entre saberes práticos e teóricos. São muito dependentes das estratégias da organização. Esta identidade é valorizada pelo modelo de competência;

4. Saberes teóricos - estruturantes de uma identidade marcada pela instabilidade e pela autono- mia (saber)”.

Nos capítulos seguintes iremos interpretar os resultados, de acordo com esta organiza- ção.