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1.1 As problemáticas enunciativas

1.1.3 A forma e o sentido na linguagem e os níveis da língua

Elegemos a temática a forma e o sentido e os níveis da língua como uma das problemáticas de Benveniste a serem discutidas em nossa pesquisa por considerarmos ser essa questão bastante pertinente para a construção de uma proposta que pretende esclarecer a experiência da criança na linguagem, por meio da apropriação do aspecto vocal da língua em atos enunciativos, com índices próprios que singularizam suas enunciações.

Encontramos Benveniste (1967/1989) falando a filósofos com o texto A forma e o sentido na linguagem, no qual o autor focaliza o problema da forma e do sentido na linguagem a partir da constatação de que “as manifestações do sentido parecem tão livres, fugidias, imprevisíveis, quanto são concretos, definidos e descritíveis os aspectos da forma” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 221, grifo do autor). Para melhor esclarecer essa relação, define o sentido como “noção implicada pelo termo mesmo da língua como conjunto de procedimentos de comunicação identicamente compreendidos por um conjunto de locutores” enquanto a forma é “a matéria dos elementos linguísticos quando o sentido é excluído” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 222). Segundo o autor, não se trata de oposição entre os termos, uma vez que eles contêm o ser mesmo da linguagem: o problema da significação. Entendemos com Benveniste que, antes de tudo, a linguagem significa. E essa condição está na própria natureza da linguagem. Outra condição apontada pelo autor é o fato de a linguagem realizar-se por signos vocais que se organizam em palavras dotadas de sentido, questão central em nossa investigação. Ao abordar a significação, Benveniste traz à discussão a ideia saussuriana de que a língua é um sistema de signos e afirma que, em seus investimentos teóricos, irá além do que propôs Saussure. Assim, delimita o signo como “unidade semiótica dotada de significação na comunidade daqueles que fazem uso da língua”. Explicita essa relação afirmando que só quem manuseia a língua pode dizer se uma determinada forma significa ou não, se existe ou não. É, portanto, no uso da língua que o signo assume sua existência. E, assim, o autor apresenta o princípio: “tudo o que é do domínio do semiótico tem por critério necessário e suficiente que se possa identificá-lo no interior e no uso da língua” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 227). Semiótico é definido como intralinguístico. E essa é, segundo Benveniste, uma das maneiras de a língua ser língua no sentido e na forma.

A outra maneira apresentada pelo linguista é a língua como semântica, que envolve outro domínio e outra função. Nesse novo domínio, encontramos a função mediadora da língua entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo. Trata-se de uma relação diferente da anteriormente apresentada: a semântica resulta de “uma atividade do locutor que coloca a língua em ação” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 230), instaurando-se, assim, a aplicação particular, de tal forma que podemos afirmar que o signo tem o significado como parte integrante, enquanto o sentido da frase implica referência à situação de discurso e à atitude do locutor.

Deparamos-nos aqui novamente com outro hiato vivido pelo homem em sua experiência na linguagem: a vivência, na linguagem, de mundos distintos revelados no semiótico e no semântico. No domínio do semiótico, uma entidade precisa ser reconhecida como signo no universo da linguagem: “a questão não é mais definir o sentido” (BENVENISTE, 1967/1989,

p. 227), mas reconhecer que a entidade tem um sentido. Já no domínio do semântico, há a comunicação da experiência, por meio da qual o sentido se realiza formalmente na língua pelo agenciamento de palavras, pela relação que elas exercem umas sobre as outras, na atualização da língua pelo locutor. No entanto, semiótico e semântico “se superpõem na língua tal como a utilizamos” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 233), uma vez que os dois domínios comparecem no discurso, possibilitando que estejam implicados no que o autor chama de língua-discurso.

A relação entre forma e sentido e suas diferenças no mundo da língua e do discurso já haviam sido abordadas por Benveniste em texto de 1964, Os níveis de análise linguística. O autor faz isso focalizando a língua como sistema de signos e propondo uma análise de língua pautada em operações de segmentação e de substituição. A segmentação compreende chegar a porções da língua cada vez mais reduzidas até os elementos não decomponíveis. Em paralelo a essa operação, identificam-se os elementos resultantes das substituições admitidas, configurando-se a segunda operação. A partir dessas operações, o autor propõe que os conceitos de forma e sentido sejam definidos um pelo outro. Assim, a forma de uma unidade linguística define-se como a sua capacidade em dissociar-se em constituintes de nível inferior. O sentido, por sua vez, encontra definição na capacidade que a forma linguística tem de integrar-se a uma unidade de nível superior. Com essa concepção, o linguista chega ao nível da frase e reconhece que com ele chegamos a um novo domínio, uma vez que uma frase não serve de integrante a outro tipo de unidade. Segundo Benveniste (1964/2005, p. 139), é a frase “a própria vida da linguagem em ação”. Entendemos que a frase, para o autor, é do domínio do discurso. E, por isso, ela pode ser entendida como unidade, mas não pode ser distintiva em relação a outras unidades do mesmo nível. Mas também é uma unidade completa, uma vez que traz sentido, porque nela há significação; e referência, uma vez que se refere a uma determinada situação. Trata-se da dupla propriedade da frase, capaz de torná-la analisável para o próprio locutor, o qual assume uma noção empírica do signo na frase, decorrência do exercício da sua atividade de linguagem em todas as situações; e analisável para o linguista, que parte das unidades elementares para chegar ao discurso.

As relações semiótico-semântico são retomadas e redimensionadas pelo linguista em Semiologia da língua (1969/1989), quando trata da dupla significância da língua. O semiótico designa “o modo de significação que é próprio do SIGNO linguístico e que o constitui como unidade” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 64, grifo do autor). Com o semântico, o linguista reconhece a entrada no modo de significância “engendrado pelo DISCURSO” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 65, grifo do autor). O semiótico deve ser reconhecido, enquanto o semântico precisa ser compreendido. Essa dupla significância não ocorre nos demais sistemas, sendo que

o privilégio da língua, conforme o linguista, é o de comportar simultaneamente a significância dos signos e a significância da enunciação. Acerca dessa simultaneidade, voltaremos a discorrer mais adiante, uma vez que ela abrange a discussão que proporemos sobre a experiência da criança na linguagem.

Posta está a terceira problemática, cuja compreensão é imprescindível para os fins desta pesquisa, uma vez que, na busca de construirmos princípios teóricos capazes de explicitar a realização vocal da enunciação no ato de aquisição, estamos mobilizando a relação forma- sentido, a qual perpassa todos os níveis da língua. Perguntamo-nos: Estaria o aspecto vocal em um nível? Teria o aspecto vocal forma e sentido? Deixemos essas questões suspensas até o item 2.2.1. Detemo-nos, na sequência, na problemática seguinte, a qual focaliza o discurso e as relações de interpretância.