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Princípios metodológicos para o estudo do aspecto vocal da enunciação na experiência da

Quando nos propomos a realizar uma investigação acerca das especificidades do aspecto vocal da enunciação reveladas no ato de aquisição da linguagem, deparamo-nos com a necessidade de definir aspectos metodológicos coerentes aos princípios enunciativos com os quais trabalhamos. Conforme já mencionamos na fundamentação teórica, Benveniste (1970/1989) fornece orientações preciosas acerca de tais princípios em O aparelho formal da enunciação. No início do seu artigo, o autor deixa claro que uma análise enunciativa envolve “uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de as descrever e de as interpretar” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82), e, com essa afirmação, acena para o fato de que um estudo pautado nos princípios enunciativos trabalha com a diversidade das estruturas linguísticas, o que impossibilita pensar em definições de estruturas a priori. A própria definição de enunciação, apresentada pelo linguista em O aparelho formal da enunciação, aponta para uma abordagem metodológica segundo a qual as regularidades não mais constituem objeto de análise, mas, sim, as singularidades produzidas pela individualidade posta em cena.

Em relação a isso, lembramos Hilgert, autor que, a partir da concepção de status nascendi do texto falado, destaca o seguinte:

eu (eu/tu) enuncia no tempo agora e no espaço aqui. Esse espaço e esse tempo estão

na dependência do eu, na medida em que se definem pelo fato de neles ocorrer o ato da enunciação. Portanto, as categorias de espaço e de tempo na língua se definem a partir da categoria pessoa, e o eu-aqui-agora do ato da enunciação é ponto de partida para definir todas as demais relações de pessoa, de espaço e de tempo na língua. (HILGERT, 2007, p. 70, grifos do autor).

Com base nessa constatação acerca da enunciação, trabalhamos em nossa análise sem definições de categorias a priori a serem investigadas nos dados colhidos, pois acreditamos que a “dependência do eu” referida por Hilgert impossibilita tal definição. Ao contrário, trabalhamos com as especificidades de cada situação enunciativa vivida pelo locutor, como experiência única e irrepetível que contribui para sua constituição humana na cultura que o cerca. Ultrapassamos a dimensão do semiótico para entrarmos na dimensão do semântico, a

qual, segundo Benveniste (1965/1989, p. 21) assim se revela: “A semântica é o sentido resultante do encadeamento, da apropriação pela circunstância e da adaptação dos diferentes signos entre eles. Isto é absolutamente imprevisível. É a abertura para o mundo”. Em nossas análises, portanto, deparamo-nos com o imprevisível, resultado dessa abertura da língua para o mundo.

Essa condição nos remete a outros princípios metodológicos definidos por Benveniste. Entre eles, destacamos os aspectos a partir dos quais ele propõe, em O aparelho formal da enunciação, o estudo do processo de enunciação. O primeiro deles é justamente a realização vocal da língua, marcada pelas diferenças entre uma experiência e outra originárias da diversidade das situações nas quais a enunciação é produzida (1970/1989). Em nosso estudo, a realização vocal passa a ser o dado observável, marcado pela singularidade de cada enunciação. Como segundo aspecto e apresentado pelo linguista como “maior”, o autor anuncia o mecanismo dessa produção, ou seja, a conversão individual da língua em discurso. Embora se trate de um outro aspecto, entendemos que ele se relaciona intimamente com a realização vocal, uma vez que vemos na mobilização da realização vocal o destino da palavra, o discurso; logo, estamos analisando a conversão da língua em discurso. Trabalhamos com uma análise que busca, em última instância, compreender como a criança, em sua manifestação linguística individual e subjetiva, mobiliza sentidos em sua relação com o outro, o que nos leva a princípios pautados pela intersubjetividade, constitutiva de toda enunciação. Por fim, o autor apresenta o terceiro aspecto, entendido como o quadro formal da realização enunciativa. Em nossa investigação, concebemos o aspecto vocal da enunciação como pertencente ao quadro formal da enunciação, uma vez que o entendemos como procedimento de acesso do locutor às formas da língua, das quais se apropria em sua enunciação. Não podemos, assim, em nossa análise, eleger um nível, uma ou outra forma linguística na qual nos deteremos, pois nosso objeto de estudo não se constitui de um elenco de formas linguísticas específicas. Como já explicitado em nossa fundamentação teórica, a realização vocal da língua como aspecto da enunciação realiza-se segundo o princípio da transversalidade enunciativa e afeta, portanto, a língua como um todo.

Para o estudo do aparelho formal da enunciação, Benveniste (1970/1989) propõe um princípio metodológico, segundo o qual devemos analisar sucesssivamente o ato da enunciação, a situação em que ele se realiza e os instrumentos de sua realização.

Movidos por esse fundamento, cremos, portanto, que o papel do aspecto vocal da enunciação deva ser entendido como constitutivo do ato executado pelo locutor que se apropria da língua por meio da enunciação: “forma sonora que atinge um ouvinte e suscita uma outra

enunciação de retorno” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 84). Assim, consideramos o diálogo promovido entre a criança e o outro a condição de análise necessária para entender o ato de aquisição da linguagem no quadro figurativo. Nesse diálogo, a criança é assumida pelo outro como alguém que é capaz de significar pela linguagem. A existência do locutor é a exigência primeira na constituição do ato de enunciação. E sua existência depende da percepção do outro, o qual, a partir das emissões vocais da criança, mesmo quando elas ainda não são palavra, reveste-as de elementos simbólicos capazes de garantir uma relação que vai muito além da mera comunicação de dados objetivos, como fome, sede ou hostilidade, presentes na voz animal. O simbolismo que reveste as vocalizações da criança na relação com o outro é responsável pela historicidade humana, na qual a criança vive sua experiência de dizer. O ato de enunciação, portanto, só pode ser analisado se levarmos em conta essa relação intersubjetiva, na qual as vocalizações da criança comunicam sua singularidade.

Em relação à situação, a metodologia proposta por nós neste trabalho segue a ideia de que “a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 84). Assim, a aquisição da linguagem é a constituição, pela criança, dessa relação com o mundo via aspecto vocal da enunciação, o que se apresenta como uma experiência de significação. Tal relação constitui-se ao longo da trajetória vivida pelo homem, o que, nos parece, ser permanente. Entendemos que, ao se deslocar na cultura da qual faz parte, a criança, por meio da linguagem, apropria-se de um saber institucionalizado que marca a relação da língua com o mundo e que afeta o modo como ela se enuncia. Pensar nos elementos culturais, portanto, mobilizados pela realização vocal da enunciação é fundamental para entendermos a passagem vivida pela criança da condição de não falante a falante e de locutor a sujeito da enunciação.

O fundamento metodológico faz menção ainda aos instrumentos da enunciação. Em relação a eles, apresentamos o aspecto vocal revelado nos arranjos vocais operados pelo locutor no seu discurso, os quais se encontram, para nós, relacionados à noção de sintaxe enunciativa. Dessa forma, a metodologia que ora propomos se volta para arranjos vocais particulares a cada ato enunciativo, revelados na sintagmatização da frase. Esses arranjos nos interessam à medida que são capazes de revelar a relação forma-sentido instaurada a cada enunciação, o que coloca em destaque a figura do sujeito que emerge da enunciação, segundo interpretação de Flores (2013a). Por essa razão, não nos deteremos na descrição das formas que estão para além das unidades segmentáveis per si, mas na relação de sentido que elas mobilizam na instância enunciativa, constituindo as modalidades da frase de interrogação, de intimação e de asserção, as quais “refletem os comportamentos fundamentais do homem falando e agindo pelo discurso

sobre seu interlocutor” (BENVENISTE, 1964/2005, p. 139). Na análise, o que está se observando é o sentido mobilizado pelo locutor que, via arranjos decorrentes da mobilização do aspecto vocal da enunciação, constitui a sintaxe do seu discurso e atinge, pelo seu dizer, o outro. Fugimos de uma análise metodológica quantitativa, construída sobre a precisão matemática e mecanicista dos fenômenos da linguagem. Quanto a essa questão, lembramos Meschonnic (1982 a, p. 17), com sua “crítica do ritmo”, segundo a qual o ritmo na linguagem tem sido estudado de forma tecnicista pelos especialistas do verso. No entanto, lembra o autor, não pode ser dessa forma, pois a ciência da linguagem deve ser estudada diferentemente do modo como se estudam as ciências exatas ou as ciências da natureza, uma vez que ela representa uma metalinguística. Por isso, ao trabalharmos com a realização vocal da enunciação, nos aproximamos da orientação de Meschonnic (1982), segundo a qual uma teoria da linguagem implica uma teoria da sociedade.

Apresentamos, na sequência, por uma questão de organização e direcionamento da leitura de nosso texto, um quadro-síntese dos princípios metodológicos discutidos anteriormente e que alicerçam a coleta, a transcrição e as análises dos fatos de linguagem que servem para reflexão de nossa tese.

Quadro 3: Síntese dos princípios metodológicos

1 Uma pesquisa na perspectiva enunciativo aquisicional trabalha com unidades de distintos níveis linguísticos que emergem na enunciação, o que impossibilita pensar, para fins de estudo, em escolha de formas e estruturas a priori.

2 A especificidade do aspecto vocal define-se em relação aos dois outros aspectos da enunciação, semantização e aparelho formal.

3 O aspecto vocal da enunciação realiza-se segundo o princípio da transversalidade enunciativa e afeta, como um constituinte integralizador da frase, as unidades apropriadas dos distintos níveis e constituintes da frase, na comunicação intersubjetiva e na evocação de sentidos na relação de emissão e percepção.

4 O papel do aspecto vocal é constitutivo do ato enunciativo, executado pelo locutor que se apropria da língua por meio da enunciação: “forma sonora que atinge um ouvinte e suscita uma outra enunciação de retorno”. O diálogo, portanto, caracteriza os dados de análise.

5 O aspecto vocal da enunciação é responsável pela mobilização de sentidos particulares

na busca empreendida pela criança de uma “certa relação com o mundo” a cada emprego de língua. Sendo assim, na análise, considera-se a situação enunciativa na qual os

discursos emergem.

Fonte: A autora (2013).

Definidos os princípios metodológicos que nos movem na análise, empreendemos esforços na tentativa de elucidar de que forma tais princípios se manifestam na atividade de coleta dos fatos enunciativos com os quais trabalhamos.