• Nenhum resultado encontrado

O movimento que marca a historicidade da criança em sua experiência de aquisição da

enunciação

Ao mobilizar os arranjos vocais em sua enunciação, a criança se apropria da língua e dos rudimentos da sua cultura que se acham nela impressos. Isso acontece na dependência da emissão e da percepção dos arranjos do outro, numa relação de dupla alteridade: o outro traz impressos na língua os traços culturais dos quais a criança, de maneira singular, também se apropria, apreendendo, com a língua, o mundo do qual faz parte. Todos os propósitos significantes específicos por nós focalizados apontam para realidades instituídas na sociedade e na cultura, cumprindo-se a relação de interpretância da língua em relação aos demais sistemas e, inclusive, em relação a ela mesma, que também é um sistema cultural. A respeito dessa experiência, Benveniste (1963/2005, p. 31) afirma:

A aquisição da língua é uma experiência que vai a par, na criança, com a formação do símbolo e a construção do objeto. Ela aprende as coisas pelo seu nome. Descobre que tudo tem um nome e que aprender os nomes lhe dá a disposição das coisas. Mas descobre também que ela mesma tem um nome e que por meio dele se comunica com os que a cercam.

Segundo o autor, é dessa forma que a criança terá consciência do meio social onde está mergulhada e “moldará pouco a pouco o seu espírito por intermédio da linguagem”. Vimos, com as análises efetuadas, que os arranjos vocais que marcam a experiência da criança na linguagem traduzem o simbólico da linguagem, contribuindo para o deslocamento da criança na cultura via linguagem, conforme vimos em Benveniste (1963/2005, p. 31, grifo do autor): “À medida que se torna capaz de operações intelectuais mais complexas, integra-se na cultura que a rodeia”. Essa integração se constitui na tríade homem-linguagem-cultura, a qual permite que a criança viva a experiência da aquisição da linguagem, modificando sua relação com a língua e com o outro.

Sendo assim, chegamos ao grande movimento de síntese que caracteriza a experiência da linguagem vivida pela criança via especificidade do aspecto vocal da enunciação como uma experiência de aquisição da linguagem: Na experiência de aquisição da linguagem, a criança, por estar imersa em esquemas culturais, instaura-se, via arranjos vocais constitutivos dos atos de emissão e de percepção, no aparelho formal vocal da língua, para se singularizar como sujeito da/na linguagem. Essa experiência revela o semantismo social incorporado ao vocal e evocado a cada relação de interpretância da língua em relação aos demais sistemas: a criança, portanto, ao mobilizar arranjos vocais em sua enunciação, apropria-se do geral da língua com a cultura nela impressa para singularizar-se na linguagem. A aquisição da linguagem revela o movimento de emissão e de percepção de arranjos vocais mobilizados na enunciação e que, em integração com a cultura, possibilita a entrada da criança no mundo do homem. Essa integração só é possível em decorrência do simbolismo articulador que une homem-linguagem- cultura e que, via arranjos vocais, permite à criança estabelecer relações de interpretância entre a língua e os sistemas culturais que fazem parte de sua vida. Essas relações são estáveis, institucionalizadas na e pela sociedade; no entanto, ao se apropriar delas, a criança se singulariza e as particulariza, uma vez que estabelece sua própria maneira de mobilizá-las em seu discurso, o que, em nossa pesquisa, se revela por meio dos arranjos vocais, os quais acabam por cumprir, na experiência da criança na linguagem, propósitos significantes sobre a significância, que revelam o nascimento do homem na cultura e sua passagem da natureza para o mundo do homem, conforme Benveniste (1966/1974). Na realização desses propósitos, a criança acessa valores culturais revelados no simbólico da língua e mobiliza-os sempre na

dependência do aqui-agora por ela vivenciado em suas enunciações, o que permite que ela, em sua historicidade, relacione-se de forma diferente com a língua e com o outro, revestindo suas enunciações de arranjos vocais particulares que a colocam em relação com os valores culturais por eles mobilizados. Esses valores, na particularização do discurso, são atualizados e revelam sempre um sujeito em constituição pelo seu próprio dizer. Essa é a grande experiência da criança na linguagem: a experiência da significação..

A singularidade enunciativa é derivada das relacões entre eu e tu no aqui-agora em que a enunciação acontece. Os arranjos vocais percebidos nas enunciações da criança assumem funções específicas sobre as formas da língua que só se explicam quando focalizamos a particularidade do discurso. Um alongamento vocálico, por exemplo, exerce papéis diferentes, dependendo da instância enunciativa, como mostram os recortes enunciativos que elegemos em nossa análise; e o sentido por ele mobilizado não pode ser “captado” apenas pelas palavras enunciadas, uma vez que ele se encontra no arranjo vocal que caracteriza a frase como um todo, no como se diz e não no que foi dito. Essa singularidade não é acessória, mas, ao contrário, segundo Flores (2013), é fundamental para que se atribua um ou outro sentido ao que foi dito. Sendo assim, há um movimento constante nas enunciações da criança entre o geral da língua e o específico do discurso; trata-se da atualização da língua, experiência na qual o aspecto vocal da enunciação assume papel fundamental como marca do sujeito que, segundo Flores (2013), advém da enunciação, uma vez que os arranjos vocais mobilizados pela criança na frase denunciam a posição que ela assume, a posição de quem pode enunciar. Nesse sentido, o ato de apropriação da língua, a enunciação, constitui-se no modo próprio pelo qual a criança mobiliza os arranjos vocais que afetam os elementos da língua. Essa condição leva a criança, ao longo dos sete meses em que observamos sua fala, a se apropriar de mecanismos vocais capazes de, na relação de emissão e de percepção com o outro da enunciação, ajustar sentidos na instância enunciativa, trabalhando com “Valores contextuais, sempre instantâneos, aptos a se enriquecer e a desaparecer, em resumo, sem permanência, sem valor constante” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 232), e que, justamente por isso, precisam ser “afunilados” sempre em relação, cumprindo-se a correferência necessária a toda enunciação. Por essa razão, entendemos que a experiência da aquisição da linguagem é a experiência da significação. O quadro a seguir apresenta, sinteticamente, as ideias derivadas da análise que realizamos.

Quadro 6: Síntese da análise da especificidade do aspecto vocal da enunciação na realização dos propósitos significantes

PROPÓSITOS SIGNIFICANTES SOBRE A SIGNIFICÂNCIA NA EXPERIÊNCIA DA CRIANÇA NA LINGUAGEM

ARRANJOS VOCAIS MOBILIZADOS

PELA CRIANÇA NA ENUNCIAÇÃO NO ESTABELECIMENTO DAS RELAÇÕES DE INTERPRETÂNCIA

A interpretância da língua em relação às funções inter-humanas do discurso

Alongamentos vocálicos, tons ascendentes impressos a enunciados longos e gestos constitutivos da emissão reveladores da função de intimação

Entonações ascendentes e alongamentos vocálicos reveladores das funções de intimação, de asserção e de interrogação e gestos constitutivos da emissão

Pausas, tons ascendentes impressos a palavras específicas no interior do sintagma

e gestos constitutivos da emisssão

reveladores de intimação / alongamento vocálico e entonação exclamativa e interrogativa reveladores da função de interrogação

A interpretância da língua em relação à

reprodução de acontecimentos e de

experiências com a/na linguagem

Silêncios e pausas, alongamentos vocálicos, tons ascendentes, silabação e gestos constitutivos da emissão, emissões vocais musicadas, uso de formas vocais indistintas A interpretância da língua em relação a ela

mesma – o sistema de substituição e de integração de unidades na relação de sentidos entre emissão e percepção vocal

Alongamentos vocálicos, alongamentos consonantais, pausas, tons ascendentes, emissões vocais musicadas, silabação

A interpretância da língua em relação a ela mesma – o sistema de escrita

Alongamentos consonantais, alongamentos vocálicos, silabação, pausas e gestos constitutivos do dizer

MOVIMENTO QUE MARCA A HISTORICIDADE DA CRIANÇA NA LINGUAGEM

Na experiência de aquisição da linguagem, a criança, por estar imersa em esquemas culturais, instaura-se, via arranjos vocais constitutivos dos atos de emissão e

de percepção, no aparelho formal vocal da língua, para se singularizar como sujeito da/na linguagem.

Nosso objetivo geral nesta investigação é explicitar como a especificidade do aspecto vocal da enunciação constitui a relação homem-linguagem-cultura no ato de aquisição da linguagem, manifestada na experiência da criança na linguagem. Acreditamos que nossas análises apresentadas nesse capítulo, baseadas nos propósitos significantes sobre a significância, conduzem à explicitação de tal especificidade, no entanto, vemos, ainda, a necessidade de tecermos considerações que “costurem” as constatações decorrentes de nossa análise com os fundamentos que nos guiaram desde o primeiro capítulo, o que faremos na sequência.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao final de nosso trabalho; os fatos enunciativos foram interrogados e as respostas registradas. O papel do aspecto vocal da enunciação na experiência da criança na linguagem se revela aos nossos olhos e exige que relacionemos as respostas obtidas com o restante de nossa investigação, a fim de que possamos, também por meio de relações de interpretância, tecermos nossas considerações finais.