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6 JOGANDO EM PARCERIAS: O FUNCIONAMENTO DO GRUPO DE ESTUDOS

6.2 O MEU OLHAR SOBRE COMO CADA UM ORGANIZOU O SEU DIZER (AS FORMULAÇÕES)

6.2.2 A formulação de JM: atenção às fabulações

As condições mais específicas de produção desse relato escrito, Anexo-B, situam-no como estudante de Artes Plásticas e membro do Projeto Paraguaçu, desde sua fundação, mas não inserido no Programa UFBA em Campo, desde sua criação.

A situação é a de prolongamento de uma proposta maior, já referida, a da criação da biblioteca comunitária em Santiago do Iguape.

Os ‘’Viajantes’’ tiveram uma responsabilidade delegada pelo grupo da UFBA e pelos integrantes dos grupos humanos vinculados ao Paraguaçu, oficialmente: o levantamento bibliográfico dos livros doados à biblioteca. Eram muitos e isso exigia esforços, em mutirão, para dar conta do acervo. A partir daí, fichas catalográficas seriam elaboradas e afixadas aos livros, já para os empréstimos.

Diante dessa tarefa árdua, JM buscou uma relação com as provas do Big Brother Brasil, programa da Rede Globo de televisão que utiliza as pessoas tidas como comuns (que não são alvos do assédio constante da mídia) para competir por quinhentos mil reais — recentemente, o prêmio mudou para um milhão de reais —, sendo observadas de todos os ângulos pelos telespectadores. De semana em semana, cada participante vai sendo eliminado até sobrar um, o grande vencedor.

O cerne do programa é a competição entre os participantes, por isso o objetivo da convivência é o dinheiro, característica associada aos não-lugares. O que a primeira vista parece estimular novas relações alimenta, em especial, a jogada do Mercado que é a competição.

O programa se caracteriza, entre outras provas, por aquela cujo prêmio é comida, ou melhor, consistem em chances de aumentar o estoque inicial da casa. Através de uma prova delegada a todo o grupo, essa chance pode se converter em ganho ou perda. E é isso que JM buscou para fazer funcionar a sua escrita. De todos os momentos do BBB, esse parece ser o que menos proximidade tem dos princípios

alimentados pelos não-lugares. Há, no entanto, cobrança (por empenho) de cada um para com o outro. Há que exigir empenho do outro para que todos ganhem a comida. Se o grupo perde, abre-se a possibilidade para conflitos. Aliás, outro estímulo do programa é para que os conflitos ocorram, uma vez que isso pode aumentar o ibope.

Com base nessas condições de produção, JM utiliza a estrutura desse jogo porém com a intenção de ironizá-lo, de romper com sua lógica, re-significando as palavras que nele aparecem.

A expectativa criada pelos participantes do Paraguaçu (e mesmo das pessoas que ocupam a posição de estudante que vai redigir um relato de experiências) é de uma escrita quantitativa e qualitativa. Diante da intensidade de experiências vividas, mesmo no curto tempo medido pelo relógio, as palavras devem se esforçar para captar essa qualidade. Os gestos consumidos nos não-lugares têm privilegiado a escrita burocratizada, setorializada para maior entendimento do leitor, em curto número de páginas. Segue-se, geralmente, um roteiro18. Os gestos de

interpretação/escrita dos entre-lugares (Projeto Paraguaçu) têm se pautado numa escrita impressionista e não segue um roteiro delimitado. Por isso, espera-se muito da escrita.

Antecipando essa cobrança, JM define a sua escrita como um ‘’Brevíssimo relatório’’. Há, pois, uma tensão dessa pessoa quanto ao gesto de interpretação que seus colegas irão manifestar. À estrutura tradicional (‘’Tarefa’’, ‘’Tempo’’, ‘’Participantes’’, ‘’Tarefa cumprida’’ e ‘’Premiação’’), setorializada, JM combina comentários parentéticos e difere na sua premiação.

Dessa forma, aparentemente, o que marca o gesto interpretativo dele é a ironia. Mas, segundo Maingueneau (1996, p. 96-97),

…a ironia constitui uma estratégia de decifração indireta imposta ao destinatário, ela não poderia se contentar com sinais exageradamente evidentes que a fariam ‘’cair’’ no explícito. Isto explica que muito freqüentemente não é possível determinar univocamente se um texto é irônico ou não, já que não são claro os índices de distanciamento.

18 Esse roteiro tem sido composto pelas partes: introdução, objetivos, atividades desenvolvidas e

A tensão desse estudante está na recepção do seu gesto de escrita pelo grupo do Paraguaçu. Daí a sua ironia adquirir um caráter explícito a ponto de se aproximar do pólo cômico (parodístico). A observação do texto é a prova cabal dessa tensão, quando ele diz: ‘’fiquei sabendo das provas do programa através de meu irmão, isso quer dizer: NÃO ASSISTO AO BIG BROTHER. Acredite!’’.

Quanto à leitura da experiência, JM viu semelhança na exigência de empenho por parte de todos para que ganhassem tempo para a ‘’Premiação’’. O prazeroso não está na ‘’Tarefa’’, mas nos prêmios.

Agora, posso, então, fazer algumas correspondências, quanto aos comentários parentéticos, a observação e o enunciado final, que provocam uma re- significação nos gestos de interpretação que têm circulado nos não-lugares:

¾‘’Viajantes’’: no sentido não de elocubração (acadêmica), nem de deleite, mas sim de participação da viagem;

¾‘’Levantamento dos dados bibliográficos dos livros doados à futura Biblioteca de Santiago (um dia sai!)’’: carga semântica que preserva o processo todo, a história, que pede pelas referências intertextuais. O que aconteceu antes (as jogadas já-jogadas) que permitem ao jogador fazer uso dessa expressão?;

¾‘’AN, ER, CL, GA, IV, O Y (como é mesmo o nome daquele rapaz, filho de MI, ainda em obrigação de santo?) e JM’’: esquecimento, deslize; modo de nomear presente nas jogadas dos lugares, recorrendo a referências de parentesco ou de candomblé;

¾‘’levantamos as referências de 190 títulos (ufa!)’’: dimensão do trabalho, do processo; um certo alívio por ter cumprido a obrigação. Alguns desdobramentos da convivência não são prazerosos, mas se transformam em obrigações. A associação com o BBB é válido nesse sentido: não é um bom programa, na concepção de JM, porém funciona na leitura dessa vivência;

¾‘’Camarões no jantar e uma noite cantante no videokê de LE com direito a cervejas, conhaque e banho de chuva (não consigo lembrar de tudo, mas…)’’: várias premiações que não cabem nessas reticências, nesse não lembrar; academicamente, as premiações são mal vistas enquanto produto de um trabalho de campo;

¾‘’Obs. Qualquer semelhança com as inteligentes (?) provas do Big Brother Brasil é mera coincidência’’: não adesão aos gestos do não-lugar e sinal de ironia a estes. Para os leitores que nunca viram o BBB, JM se solidariza, colocando explicitamente a referência intertextual que ele fez uso (com que ele dialogou para construir esse texto);

¾‘’(fiquei sabendo das provas do programa através de meu irmão, isso quer dizer: NÃO ASSISTO AO BIG BROTHER. Acredite!)’’: essa recorrência ao irmão demonstra que houve uma certa reflexão quanto aos gestos de escrita que expressassem a vivência de JM, do modo como ele a queria interpretada. Ironia que beira a paródia. ¾‘’SORRIA! VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO.’’: o enunciado circula em quase todos os ambientes (senão todos) que são tidos como não-lugares e ao usar essa expressão consagrada, JM pode estar chamando atenção para a constante vigilância que se estabelece na nossa sociedade. Podemos ler ainda de uma outra forma: no ambiente do trabalho de campo, a posição de estudante universitário é vigiada tanto pelos moradores locais como pela própria Academia (O que se faz nesse projeto? É relevante?). Qualquer passo tem que ser comedido, nesse campo discursivo (e não só).

JM atua sobre a própria materialização do discurso. Enquanto NE pensa sobre o discurso, propondo a autocrítica, a mobilização para alimentar o sentido de grupo, JM se mobiliza na materialização, focando seu olhar em uma das possibilidades de interpretação propagadas pela contemporaneidade. Em princípio, o que parece sinalizar para a importância da convivência, reforça a competitividade. JM procura diferenciar o que está nesse programa e o que é desenrolado no ambiente do Paraguaçu.

Isso, portanto, pressupõe que esse grupo está atento ao que circula discursivamente na sociedade para se constituir pela diferença em relação às ‘’fabulações’’ alimentadas pela globalização.