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CAPÍTULO 1 A FOTOGRAFIA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

1.4 A Fotografia e as migrações

Por fim, e considerando o objeto específico que este estudo focaliza, as migrações, quer ocorram no interior dos países ou à escala global, têm sido alvo do interesse de vários fotógrafos documentaristas de renome, nomeadamente Sebastião Salgado que é um dos maiores fotógrafos da contemporaneidade. Na sua obra “Êxodos”, ele fotografou migrantes

económicos e deslocados dentro do próprio país. Viajou durante seis anos para fotografar os fluxos migratórios em quarenta países diferentes situados na América, Europa, África e Ásia. Retratou diferentes migrantes e contextos e questionou, por intermédio da fotografia, o sentido da migração com o intuito de captar a atenção para os efeitos da globalização. Considerou os migrantes como os maiores representantes da globalização económica, pois todos migravam em busca de melhores condições monetárias e de sobrevivência.

A linguagem fotográfica de Salgado pode dar resposta a questões que se prendem com o direito dos migrantes e dos refugiados, bem como o seu papel no mundo globalizado. A partir de uma discussão mais ampla sobre as migrações, onde é visível o convívio de causas e de fluxos migratórios distintos, o fotógrafo apresenta a mensagem visual como um meio de compreensão das migrações contemporâneas. O sujeito migrante não pertence a um lugar específico. Ele pode ser estrangeiro sem mesmo ter deixado o seu país ou o próprio continente, como é o caso de muitos migrantes no mundo. O migrante possui uma origem, um local de partida, mas os seus desejos ou as suas necessidades levam-no para lugares indefinidos. Sebastião Salgado é da opinião que uma imagem é sempre fruto da intenção do fotógrafo com a pessoa ou comunidade fotografada. Segundo Cláudio (2008: 41):

“Considerando as possíveis subjetividades, em cada fotografia feita por um fotógrafo existe um pouco dele ali, seu conhecimento do mundo, sua ideologia política, e por fim sentimentos e sensações. O lugar e o tempo para o fotógrafo se expressar é a fotografia, seja ela documental, de moda ou jornalística”.

A combinação entre a estética e o engajamento social resulta em fotografias que abordam temáticas que atingem proporções mundiais. As fotografias de Salgado materializam-se em função da tentativa de problematização da condição humana, reunindo determinadas plasticidades, estética documental e engajamento social. Estas características encaixam-se na categoria das fotografias humanísticas.

Há que relembrar alguns dos fotógrafos célebres do passado recente que produziram fotografias humanísticas como, por exemplo, Robert Capa, Dorothea Lange, Walker Evans, W. Eugene Smith. Dorothea Lange (1895 –1965) é a que mais se aproxima do diálogo de Sebastião Salgado, apesar da distância temporal existente entre eles. Ela já fotografava de forma documental antes de participar na FSA – Farm Security Administration - órgão governamental que possuía a maior documentação fotográfica de cunho social, tendo trabalhado para esta instituição entre 1935 e 1939. Nos seus ensaios, fotografou indivíduos desalojados à procura de emprego e famílias migrantes durante a Grande Depressão nos E.U.A. tendo a expectativa de

que as suas fotografias despertassem a atenção da sociedade americana para o elevado número de marginalizados. Ela via as suas fotografias como um caminho para informar sobre a realidade que grande parte da sociedade desconhecia. Lange viajou por todo o interior e áreas rurais de E.U.A. para fotografar e identificar famílias migrantes, bem como denunciar, mesmo de forma subjetiva. Para tal, começou por focalizar a catástrofe, mas salientando certos símbolos e a dignidade com que as pessoas suportavam as circunstâncias. Adotou também como princípio não interferir com quem fotografava, permanecendo distante e evitando possíveis poses.

Mais recentemente, a partir do final dos anos 50 até ao início dos anos 70 do século XX, esse fenómeno esteve presente no contexto nacional. Centenas de milhares de trabalhadores portugueses entraram em França fugidos da ditadura de Salazar ou das más condições de vida em Portugal. Naquele país tentavam a sua sorte, procurando realizar o sonho pelo qual correram e sofreram as agruras da vida ao atravessar a salto o caminho que separava os dois países. Gérald Bloncourt, de origem haitiana, é o fotógrafo da emigração portuguesa em França. Nessa data colaborava com o semanário da Confederação Geral do Trabalho Francesa o “La Vie Ouvriére”, criado em 1906, tendo publicado fotografias em vários outros jornais como o “Témoignage Chrétien” ou “O Imigrante Português”. Fotojornalista descobriu os bairros de lata nos arredores de Paris. Gérald Bloncourt, com um olhar profundamente humanista, procurou mostrar e demonstrar, denunciar, participar e dizer da sua revolta em relação à vida que os imigrantes portugueses levavam nos bairros de lata, conhecidos por bidonvilles. Procurou também incitar os portugueses a revoltarem-se denunciando a sua situação junto de uma imprensa militante deste tipo de causas, como o semanário “La Vie Ouvriére”, tendo Bloncourt seguido a vida dos portugueses que se instalaram sobretudo nos bidonville de Champigny e de Saint-Denis. O fotógrafo procurou mostrar a miséria e a revolta por esta gente generosa e gentil que vivia em condições de escravatura moderna. Mais de mil imagens do seu espólio contam a História dos portugueses em França. O trabalho deste autor tornou-se num documento histórico devido aos testemunhos preciosos que contribuíram para alertar a opinião pública da época, gerando um movimento de solidariedade que exerceu pressão junto do poder político. Bloncourt conseguiu seguir os emigrantes em Portugal, tendo chegado a passar clandestinamente com eles as fronteiras, lidando de perto com o medo de serem presos ou de morrerem por falta de força necessária para percorrer centenas de quilómetros a pé. Quase caiu nas garras da pide.

Assim como Sebastião Salgado e Dorothea Lange, Gérald Bloncourt é também um fotógrafo documental, uma vez que constrói a sua narrativa baseada num trabalho meticuloso. O fotógrafo aprofunda a temática que está a abordar para compreender melhor o que vai enfrentar. A pesquisa contribui para o conhecimento do espaço geográfico, para a estrutura exigida para a produção da fotografia e para a identificação do que irá ser fotografado. “O foto-documentarismo é opinativo, denunciativo, engajado, onde o dado da subjetividade garante a existência de uma futura crítica diversa” Ana Luiza Cláudio (2008: 58). A fotografia documental constituiu e continua a consistir num veículo de informação, e muitas vezes de denúncia da condição humana dos migrantes.

Pensando no tema das migrações, o retrato – uma das modalidades da linguagem fotográfica, merece que nos detenhamos mesmo que por um breve instante, já que foi uma das mais frequentes opções dos fotógrafos que se dedicara a este fenómeno social. Ele pode ser considerado como um dos melhores exemplos para compreendermos a natureza polissémica e híbrida da fotografia. Segundo Turazzi (2005: 9), “A ampla popularização do retrato, desde que a fotografia foi inventada, tornou possível a construção de identidades pessoais alicerçadas, em grande parte, no autoconhecimento do indivíduo e na sua necessidade de se diferenciar dos demais”. A perceção da figura de outros homens e mulheres, próximos ou distantes, no tempo e no espaço, assim como a facilidade para a contemplação da própria imagem, atribuiu ao ser humano uma nova consciência corporal e o desejo de revelar a sua existência perpetuando-a no tempo e assim trazer de novo à memória a sua própria imagem. Desta contemplação também emergiu uma acentuada valorização das aparências, constituindo um dos traços mais marcantes da sociedade contemporânea. A coesão social e das entidades coletivas foi estimulada pela difusão do retrato fotográfico. Por outro lado, permitiu a recordação da imagem de entes queridos ou familiares já falecidos ou separados há muito, alterando nesse processo o sentimento de temporalidade, da vida e das relações pessoais.