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4. A DESQUALIFICAÇÃO SOCIAL E AS FRONTEIRAS MORAIS ENTRE OS POBRES

4.3 A DEMARCAÇÃO DE FRONTEIRAS MORAIS NO BAIRRO A

4.3.1 A fronteira de gênero: Famílias legítimas, Mulheres e benefício

No período em que estive na escola do bairro A, algumas entrevistas foram realizadas dentro deste espaço. Porém, em contato com os alunos, tive a possibilidade de realizar ainda abordagens no espaço extraescolar. Um dos alunos, por exemplo, levou-me até sua casa, onde pude entrevistar sua mãe, beneficiária do Programa. O contato com as crianças também permitiu compreender que até mesmo elas são afetadas pelas concepções que a sociedade tem do PBF. Uma aluna mesmo, ao ser envolvida no assunto relativo ao Programa, mencionou que sua mãe não recebia o benefício, mas que sua tia precisava, pois esta “tinha muitos filhos”.

inserirem no Programa é algo que gira em torno do imaginário da população carmense, que muitas das vezes desconhece os critérios objetivos de elegibilidade e manutenção do PBF. Por outra via, serve de parâmetro de julgamento para delimitar as famílias que “mereceriam” ser atendidas pelo Programa. Assim, segundo uma das entrevistadas, esta aponta que:

[...] conheço também pessoas que tem o Bolsa Família e não tem filho pequeno. A gente vê gente velha, gente de 40 anos, 38 que não tem filho pequeno. [...] Eu acho que uma pessoa que não tem filho não deveria receber. Pessoas que são aposentadas e não tem filho, pra que receber se já tem a aposentadoria?! (BERNADETE, 35 anos, não beneficiária do bairro A).

O critério aqui utilizado parece ser menos a questão monetária que a composição familiar. De fato, a composição doméstica tende a influenciar a retirada da família da situação de vulnerabilidade, quando os membros estão assegurados pelo mercado de trabalho, ou por meio de benefícios previdenciários e assistenciais; mas também pode contribuir para acentuar essa vulnerabilidade como no caso de famílias com crianças de pouca idade (MONTALI; TAVARES, 2008). Por outro lado, é importante ter em mente que o Programa conta com dois tipos de benefício: o básico e o variável. O primeiro está atrelado à renda per capita da família, enquanto o recebimento do benefício variável está, neste caso, atrelado à composição da família, ou seja, à presença de crianças, adolescentes, gestantes e/ou nutrizes, motivo pelo qual muitos acreditam que o Programa atue apenas sobre famílias com este perfil. Neste polo, o PBF é tomado como uma estratégia importante que visa intervir sobre a diminuição da capacidade protetora das famílias frente às fases relacionadas aos ciclos da vida, levando-se em conta as intempéries socioeconômicas que sobrecarregam as famílias mais “pobres” em determinados momentos (MONTALI e TAVARES, 2008).

Por outro lado, tendo em vista que a mulher é a figura responsabilizada no que tange ao cuidado dos filhos, tal aspecto serve para efeito de negociação da posição de assistido deste público (PAUGAM, 2003). Em outros termos, como trabalhado na parte introdutória desta tese, Suárez e Libardoni (2007) destacam que o bom desempenho da “maternagem” é usado como fator de legitimação para o recebimento do benefício, que serviria para melhor conduzir este papel socialmente delegado à figura feminina, além de fazer parte do aprendizado moral do assistido (PAUGAM, 2003) que incorpora determinadas qualidades que se espera deste público: que sejam boas mães, que utilizem o recurso em prol dos filhos, que não se acomodem com um benefício assistencial, etc.

Assim, famílias com filhos menores, além de serem consideradas prioritárias para atendimento no PBF de acordo com alguns entrevistados, também serviriam, em alguma medida, como um potencial justificador, inclusive, para mulheres que “não trabalham fora”. Assim, se “trabalhar” é o que garante a dignidade (TAYLOR, 2013) da pessoa, é “aceitável” para alguns interlocutores que a “mãe” ou outra figura representativa desta, receba o benefício e se dedique exclusivamente aos filhos, ao menos àqueles que demandam um cuidado contínuo, como crianças pequenas e/ou pessoas com deficiência, por um período limitado.

Este panorama responde, ao menos em parte, o porquê de uma parcela dos entrevistados, independentemente de ser atendida pelo PBF, concordar com o fato de que o benefício deva ser prioritariamente direcionado às mulheres. No caso dos não beneficiários, Bernadete, por exemplo, explica porque as mulheres merecem ser priorizadas: “Porque as mulheres, tirando por mim, mãe solteira, maioria das mães são solteiras, os maridos batem, as mães sempre ficam sozinhas com as crianças, não recebe a pensão, e a Bolsa Família já ampara elas”. Corroborando este pensamento, Patrícia acrescenta “Que sempre é a mulher, a maioria. Muito das mulheres que são abandonadas fica com filhos sozinhas, né? Já Carla enfatiza que acha “que as mulheres merecem mais. Ah, sei lá. Acho que a gente merece mais. Cuida das crianças, dá mais atenção, né?”

Quanto aos beneficiários do PBF, estes acreditam que o Programa deva ser prioritariamente direcionado às mulheres, para além dos motivos já salientados, tendo em vista que é sobre a figura feminina que incide a maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho em relação aos homens. Com isso, Maria, 27 anos, ressalta que “sabendo usar”, concorda com a priorização das mulheres no que tange à titularidade do benefício. Segundo a beneficiária:

É, eu acho assim, meu pensamento. Eu acho que eles conseguem mais do que a gente. Igual aqui no Carmo, aqui no Carmo é mais serviço doméstico, entendeu, aqui é raro ter uma coisa melhorzinha. Eu já até tentei...atendente de loja, entendeu, alguma coisinha assim, mas eu não consegui até agora. Já coloquei currículo, entendeu, já tentei uma coisinha melhorzinha, mas até agora...então eu acho assim, pra eles...eles são serventes, capinam quintal, qualquer coisa...agora a gente é mais complicado, eu acho.

Outros argumentos giram em torno das expectativas lançadas sobre o papel socialmente delegado à mulher como: mãe, dona de casa e esposa, levando-se em conta que é ela quem “sabe gerir melhor o recurso doméstico”. Logo, ela deve ser priorizada:Porque a mulher foca mais família, né, mulher tem mais essa prioridade família. O homem já não tem muito essa coisa assim, né! (LUCIMARA, 35 anos, beneficiária). Atrelado a esta concepção, Marly

acrescenta que: “Ah, as mulheres sei lá, os homens fazem trabalho, mas as mulheres trabalham mais que os homens. No sentido tudo né, a mulher cuida de filho, cuida de casa, trabalha fora, aí a mulher tem que ter prioridade também.” Com isto, a lógica é de que a mulher é quem sabe “manobrar a casa”. De forma análoga, Juliane alega que:“Não, porque assim, tem mulheres que o marido não dá dinheiro, aí fica dependendo só do homem, né, e a mulher é bem a cabeça da casa, a mulher que sabe o que tem faltando dentro de casa e o homem não, botou arroz e feijão dentro de casa, tá bom (risos)”.

Vanete, beneficiária, em que pese não ter opinião formada sobre a quem deveria ser dada a prioridade no atendimento pelo PBF, responde que o sentimento que ela possui em relação ao recebimento de um auxílio governamental é o de “independência”. Segundo a beneficiária: “eu era muito dependente do meu esposo, ele não me dava as coisas e agora eu vou lá e compro e me sinto independente, eu me sinto feliz por não estar passando fome porque eu tô desempregada e meu esposo também”. No mais, a mesma revela que com o dinheiro do Bolsa Família, pode “complementar” o orçamento doméstico, e menciona ainda que, antes, precisava acionar o marido caso necessitasse comprar alguma coisa para ela, e agora, não fica mais a mercê do mesmo. Tal aspecto corrobora, de certa forma, o entendimento de que o Programa tem a potencialidade de atuar sobre a subjetividade destas mulheres, permitindo um maior poder de barganha proveniente do recebimento do benefício, que em alguns casos podem incidir em melhorias na autoestima das mesmas (SUÁREZ e LIBARDONI, 2007).

Entretanto, por uma outra ótica, pode-se acrescentar, com base no que afirma Suárez e Libardoni (2007), que a inserção no PBF acaba por reforçar a responsabilização destas mulheres frente ao cuidado com as crianças, na medida em que estas passam a contar com recurso para investirem no grupo doméstico a seu cargo, ao mesmo tempo em que, o recebimento do benefício pode levar ao afastamento desta do mercado de trabalho (OLIVEIRA e SOARES, 2013). Constata-se, neste aspecto, uma relação ambígua entre mulher e trabalho, na medida que, ainda que se “aceite” que algumas mulheres se dediquem à família, este viés não determina univocamente o pensamento do conjunto dos pesquisados, pois esbarra na dimensão que trabalharemos mais à frente que é a do trabalho.

Em algumas caminhadas que realizei por ocasião da observação participante, pude me deparar com uma situação interessante acerca desta ambiguidade. Em contato com uma manicure, cuja mãe é beneficiária há pelo menos 12 anos, a mesma revelou o que achava do Programa. O resultado aponta para o estudo de Lavinas (2014), quando a mesma constata que

a concordância com o Programa convive com elementos que esbarram no padrão de justiça que perpassa a população brasileira. Assim, em que pese a manicure concordar com o PBF e atribuir importância a ele, a mesma afirmou que não haveria a necessidade de aumentar o valor do benefício, pois, isso tornaria “as mulheres muito acomodadas” e “tinha que fazer as mulheres trabalhar”.

Nesta medida, pensando ainda no direcionamento dado à mulher neste bairro, importa pensar nas condicionalidades do PBF, que tendem a reforçar a responsabilização da família, em especial da mãe, no acompanhamento da frequência escolar e da condição de saúde dos filhos (OLIVEIRA, 2017, 224). A totalidade dos entrevistados deste bairro, seja beneficiário ou não beneficiário, mostrou-se favorável às contrapartidas do Programa. E neste quesito, percebemos uma reprodução do que já fora discutido no âmbito dos atores institucionais. Logo, assim como os operadores do Programa no Município concordam, em sua maioria, com as condicionalidades, sob pretexto de que sem elas muitos atores não teriam compromisso com seus filhos; os pobres também são capturados por tal leitura. Renata, não beneficiária, que trabalha no Conselho Tutelar, já atuou na área da saúde e concorda com as condicionalidades, com uma ressalva:

Antigamente... Hoje existe esse bolsa... Era quando a criança frequentava a escola. Hoje existe dois tipos, né? Existe mesmo para família né, que precisa! Então né, fiscalizava porque criança ia para o colégio. Ajuda também isso. Às vezes, muitos manda para o colégio porque tem medo de perder. Eu sei. Eu tiro isso pelo conselho tutelar, eles chegam lá assim: - Meu filho não quer ir para o colégio. Então eu vim aqui, pra vocês ajudarem porque senão eu vou perder o Bolsa Família.

R: Você concorda com isso?

Não. Porque o que acontece, eles realmente só tão preocupado por isso, senão a criança não ia pro colégio. Então ajuda de um lado desse. Mas quando eles chegam lá e pede essa sua ajuda eu fico apavorada! Como é que pode você pensa nisso? Você tem que pensar para seu filho estudar, para ele ter uma vida melhor, pro seu filho ter uma educação. E não por conta do benefício! E eles pensam... Tá no colégio... Se não tem o benefício, não estudava! Teria muito mais hoje. A gente sempre... Ainda tem um nível muito alto, né? Mas a maioria hoje estuda por causa do Bolsa Família. Até isso ajuda!

R: Você acha que isso é algo positivo ou negativo?

Isso é positivo! Porque se não ia ter muito mais analfabeto. Com tanta gente que estuda, já estão ferrados mesmo (risos). Você imagina sem estudo?

Os próprios beneficiários também concordam com a manutenção das contrapartidas. Vilma, por exemplo, considera “Mais que a obrigação da gente, a gente tem que fazer isso”, e mesmo alegando que “com a Bolsa Família ou sem, os meus filhos vão para a escola”, não deixa de dizer que as condicionalidades devem existir. Marly, por outro lado, é mais direta,

revelando que: “Ah, tem que ter. Se tendo, as mulheres já não estão querendo levar, se não tiver, elas não vão levar mesmo”. Esta última frase revela a quem é direcionada a responsabilidade e a obrigação na manutenção das contrapartidas para alguns entrevistados: às mulheres.

Pensando ainda na composição familiar e na legitimidade do benefício em famílias que contenham filhos, é possível identificar a alimentação de determinados vieses morais que se assentam neste quesito. Levando-se em conta a pesquisa anteriormente apresentada de Lavinas (2014, p.48), é importante retomar o fato de que a maior parte dos pesquisados pela autora “julga que as mulheres pobres vão se empenhar em ter mais filhos para receber mais dinheiro do governo”. Tal elemento, corrobora o que um dos não beneficiários do Programa entrevistado neste bairro acredita. Segundo Josias: “Hoje você vai aí, tem mãe que tem cinco, seis filhos. Às vezes tem o menorzinho, já tem um outro, tem ‘escadinha’ só por causa do Bolsa Família”. Josias afirma conhecer, ao menos “três casais”, que tiveram mais filhos para receber mais dinheiro do Programa. Porém, o mesmo alega desconhecer que o benefício variável seja limitado. Ou seja, nem todas as crianças, adolescentes, gestantes ou nutrizes que compõe uma família beneficiária serão cobertos pelo benefício correspondente, o que vai de encontro à esta concepção de incentivo à natalidade.

No que diz respeito aos próprios beneficiários, estes apontam a disseminação de “fofocas” que reproduzem esse olhar negativo delegado a quem acessa ao Programa. Assim, alguns atores mencionam que, muitos comentários são reproduzidos: “Em rodas conversas entendeu? Aglomeração de pessoas, aí o pessoal fala assim: fulano só sabe fazer filho, só quer fazer filho para ganhar o benefício. Por que não procura um serviço? (ÂNGELA, 36 anos, beneficiária). A mesma beneficiária que ilustra estas “fofocas” que perpassam ainda outros ambientes como praças, igrejas, casa lotérica, conselho tutelar etc., ao ser constantemente acionada por sua filha pequena, no momento da entrevista, ironizou a questão sobre, se as pessoas efetivamente teriam mais filhos por conta do benefício, já que o trabalho de cuidar de uma criança não compensaria.

Essa dinâmica mostra que os próprios beneficiários não estão isentos de reproduzir aquilo que, seja os agentes institucionais, seja os não beneficiários, disseminam sobre o Programa e seu público. Neste intuito, constata-se uma similaridade de valores morais que norteiam tanto o grupo dos beneficiários, quanto o dos não beneficiários no que tange a relação entre famílias legítimas, mulheres e benefício. No mais, isto aponta para algumas fronteiras morais que se interpõem entre estes grupos, e dentro do grupo dos próprios beneficiários do

PBF. Quanto a estes últimos, na medida em que corroboram as leituras aqui delineadas, traçam uma linha divisória entre “eles mesmos”, cumpridores dos critérios expressos estabelecidos pelo Programa em que estão inseridos, os quais não reconhecem como “intrusivos”, e os “outros”, aqueles a quem efetivamente estas regras se direcionariam, como uma forma de “controlar” suas condutas.

4.3.2 O sistema de vigilância local e as faces do controle social: o “bom” versus o “mau”

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