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CAPÍTULO I – O HORIZONTE POLÍTICO DE HANNAH ARENDT

1.3 A gênese da subordinação da política à filosofia teórica

Após demarcar a importância do espaço público, trata-se agora de considerar a gênese da tradição filosófico-política no ocidente e o porquê da filosofia política não ter se recuperado do golpe desferido pela filosofia contra a política no começo de nossa tradição. Para tanto, nos reportaremos à questão da relação entre verdade e política. De outro modo, procuraremos entender em que medida os preceitos de vida política da polis poderiam comprometer a pretensão de verdade inabalável almejada pelos filósofos. Quando se trata de política no seu sentido mais profundo, a experiência greco-romana constitui o traço mais original de organização política, produto da configuração da liberdade dos cidadãos da polis e da res publica romana. Ressalte-se, além disso, que, para Arendt, nenhum outro tipo de atividade humana necessita tanto da palavra quanto a ação de natureza política. Arendt ressalta, em CH, que o ato de liberação das necessidades privadas encontra seu sentido quando o homem possa encontrar com outras pessoas em palavras e ações.

O problema instaura-se pelo fato de que conceber a liberdade e a igualdade como condições da pluralidade política corresponde a conferir indistintamente aos cidadãos da polis o poder de verdade sobre o real, de modo que as opiniões no exercício dos grandes debates possam se converter em verdades para a política. Sobre essas questões que sugerem o problema da verdade, na gênese da tradição filosófico-política, André Duarte antecipa que:

A despeito de reconhecer as especificidades de cada época do pensamento político, Arendt pensou que o momento de gênese dessa tradição teria estabelecido os elementos fundantes e decisivos para a determinação da atitude propriamente filosófica diante da política, isto é, a de uma fuga ou a de uma incompreensão dos traços fundamentais da política. (DUARTE, 2000, p.161).

Assim, Arendt acentua que as mais visíveis implicações das preocupações dos filósofos para com a política, tendo em vista o declínio da democracia no período grego, são, sem dúvida alguma, aquelas tratadas por Platão no livro VII de sua obra A República, isto é, o problema político na alegoria da caverna. Após indicar os perigos eminentes do mundo das sombras e aparências, Platão teria atribuído o ser verdadeiro ao mundo inteligível. Platão destacaria que o filósofo é notável por conseguir vencer o plano do mundo da transitoriedade das aparências e opiniões, para então contemplar as verdades eternas. O filósofo conquistaria a liberdade do espírito para ocupar-se do eterno (aei on) à medida que as necessidades básicas da vida mortal estiverem atendidas. Arendt, em EPF, ressalta que, em A República, Platão deixa claro que as ideias, como tais, pertencem à Filosofia na medida em que buscam o ser

verdadeiro das coisas por força da contemplação, não tendo, todavia, relação com a experiência política ou com o problema do agir, ou seja, sua doutrina das ideias seria irrelevante à política. No entanto, Arendt entrevê que a contribuição do rei-filósofo seria no mínimo plausível, pois seu domínio racional revelaria sua competência em dirigir aquelas atividades que são inerentes às atividades políticas, bem como governar a si mesmo. Quanto a isso, salienta Arendt que:

[...] o governo do filósofo-rei, isto é, a dominação dos negócios humanos para algo exterior a seu próprio âmbito, justifica-se não apenas por uma prioridade absoluta do ver sobre o fazer e da contemplação sobre o falar e o agir, mas também pela pressuposição de que o que faz dos homens humanos é o anseio por ver. (ARENDT, 2005, p.155).

A figura do rei-filósofo é a desse homem que após ter contemplado a verdade em sua essência, pode retornar ao mundo dos negócios humanos para poder governar a cidade. E por ter acesso à verdade poderia transportá-la para os assuntos de natureza política, diferentemente daqueles que ainda estão submetidos às transformações infindáveis do cotidiano da polis. Nesta perspectiva, Arendt nota que:

A razão por que Platão queria que os filósofos se tornassem os governantes da cidade se assentava provavelmente no conflito existente entre o filósofo e a polis, ou na hostilidade da polis para com a filosofia, que provavelmente estivera dormitante durante algum tempo antes de mostrar sua ameaça imediata à vida do filósofo no julgamento e morte de Sócrates. (ARENDT, 2005, p.146).

Interessante observar que Platão nasce após a morte de Péricles e escreve A República no auge da decadência da cidade grega e sob a perplexidade diante da morte de Sócrates. Arendt (2005) lembra que a morte de Sócrates fez com que Platão não acreditasse mais que a persuasão fosse suficiente para guiar os homens ou convencê-los sem o uso externo da violência. Esses fatores, dentre um conjunto de outros que não serão mencionados aqui, deixam entrever que, segundo a leitura de Arendt, para Platão, o filósofo seria um ser incompreendido por seus concidadãos naquele panorama onde reinava a democracia, o que repercute no conflito entre o filósofo e a polis.

Como se vê no exemplo primacial de Platão, Arendt não nega ter havido tentativas e inclusive presunções por parte dos filósofos em contribuir para os assuntos políticos. No entanto, a autora salienta que essa intenção filosófica de contribuir com a política, na forma do rei-filósofo, sem poder fundar uma tradição de pensamento político: “essa proposta não foi

admitida por nenhum filósofo depois dele e permaneceu sem nenhum efeito político.” (ARENDT, 2004b, p.64).

Ademais, da relação entre o que pretende o filósofo governante e os governados, além da questão dos domínios da liberdade, suscita-se o problema do limite da autoridade política. Como recorda Arendt (2004b, p.62) sobre Platão, como o pai da filosofia política do Ocidente, ele teria tentado de várias maneiras contrapor-se à polis no que até então se definia como liberdade; dentre tais tentativas, está a fundação da academia, contribuindo para que o mundo conhecesse um novo conceito de liberdade. Sobre esse tema, Arendt nota que: “O espaço da liberdade da academia devia ser um substituto válido para a praça do mercado, a ágora, o espaço de liberdade central da polis.” (ARENDT, 2004b, p.63). Arendt alerta ser possível imaginar que o platonismo da República tenha uma relação estreita com a autoridade, já que a polis fora confrontada pelos desígnios da razão. O perigo maior é que a práxis política seja substituída por um lócus ideal ou por um poder ideológico que tenha um padrão de verdades a orientar a realidade concreta dos homens. Na história da filosofia, este perigo teria se iniciado com a hierarquia afirmada por Platão entre filosofia teórica e filosofia prática, uma vez que, persuadir a multidão significava impor a própria opinião às múltiplas opiniões da multidão, destaca Arendt (2008b, p.54-55). Mas o maior perigo à pluralidade do espaço político e à dimensão judicativa que o sustenta, esta ameaça Arendt observa no que a modernidade trouxe como “novidade totalitária” e seu sintoma de patologia política.