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CAPÍTULO II – IMPLICAÇÕES DO JUÍZO NOS ÂMBITOS ESTÉTICO E

2.1 Kant: sua ideação crítica e a questão do juízo

Segundo Georges Pascal (2003, p.16-19), em O pensamento de Kant, as obras do filósofo podem ser classificadas levando em consideração três períodos distintos de sua vida55: o período de 1755 a 1770, que ainda comunga com as ideias filosóficas predominantes na Alemanha, ou seja, o racionalismo dogmático de Leibniz, em consonância com a divulgação e os desdobramentos apresentados por Wolff. Mas, sob a influência de David Hume56, no campo filosófico, e de outros nomes importantes do campo das ciências, especialmente a física de Newton, a confiança que Kant já depositara na razão se reelabora e passa, de um ponto de visto crítico, a nortear seus empreendimentos intelectuais. Restava-lhe doravante encontrar o fundamento sólido para o exercício racional, o que lança luz para a iniciativa de uma Crítica da razão pura. Neste mesmo contexto, Kant dedica-se à leitura do

55 Não obstante estes dados biográficos a seguir não influenciarem, decisivamente, nas suas produções filosóficas citadas por Georges Pascal, realçaremos, de forma complementar, a título de apresentação do nosso autor Immanuel Kant. Ele nasceu em Königsberg, na Prússia Oriental, em 22 de abril de 1724. Na condição de filho de artesão humilde, estudou no Colégio Fridericianum, onde se destacou entre os colegas. Na Universidade de Königsberg, onde estudou, posteriormente tornou-se um professor catedrático. Sua vida serena e sistemática transcorreu, praticamente, na sua cidade natal. Kant perde sua mãe aos treze anos, idade em que já estava envolto das crenças morais e religiosas do pietismo. Após a morte de seu pai, Kant deixa a universidade e passa a ganhar a vida, como professor particular. Em 1796 abdicou do magistério quando já começara a se enfraquecer, momento também em que reduz, vertiginosamente, sua inclinação para publicações. Kant morre em 12 de fevereiro de 1804.

56 Cf. no prefácio aos Prolegômenos a declaração de Kant sintetizada na conclusão de que o dogmatismo racionalista era incapaz de resistir à crítica do filósofo escocês. Assim, lendo a tradução alemã feita por Shulze da Investigação sobre o entendimento humano de Hume, Kant se afasta do wolffismo, despertando-se do famoso sono dogmático, uma iniciativa que, segundo Kant, possibilita-lhe uma direção inteiramente diferente de suas investigações no campo da filosofia especulativa.

Emílio e do Contrato social, de Rousseau, filósofo do qual também sofre influência. Acerca disso, Julien Benda explica que:

Sob a influência de Rousseau e rompendo com os filósofos da ilustração, Kant chegou a esta convicção (1762): o valor do homem não reside apenas na luz da sua inteligência, mas antes, e acima de tudo, no sentimento, na intimidade e na profundidade da alma; e abraça uma ideia que jamais abandonará e que lhe servirá de base para os seus ensinamentos: a ideia de dignidade do homem por ser dotado de personalidade da dignidade da pessoa humana. (BENDA, s/d, p.23-24).

O autor acrescenta outra contribuição com base na própria letra de Kant sobre sua leitura de Rousseau. Kant declara que ele era por natureza um curioso e ávido de saber, mas que Rousseau lhe ensinou “a desprezar um privilégio insignificante e a atribuir ao valor moral a verdadeira dignidade de nossa espécie” (BENDA, s/d, p.24). Essa influência na filosofia de Kant parece ser mais notória quanto aos problemas do que às soluções. Segundo Pascal (2003), a prova disso se encontra na Fundamentação da metafísica dos costumes e na Crítica da razão prática, obras em que, segundo este autor, o pensamento de Kant parece estar à procura de si mesmo.

Os empreendimentos kantianos, neste período de influência citado por Benda e Pascal, voltam-se a considerações sobre o otimismo, o belo e o sublime, o silogismo, as provas da existência de Deus. Kant, neste período, quase não publica obras filosóficas e o teor de seus escritos posteriores ainda não se apresentou. Diferentemente ocorre a partir de 1770, ocasião em que aparece um esboço57 inicial da filosofia crítica de Kant. Entre 1780 e 1790 surgem as grandes obras-primas: a Crítica da razão pura (1ª edição, 1781; 2ª edição, revista, 1787), os Prolegômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência (1783), a Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica do juízo (1790).

Quanto ao terceiro período de sua vida, no tocante a suas obras, Pascal (2003) salienta que Kant publicará apenas duas grandes obras que não ressaltam nenhuma alteração na linha geral de sua filosofia. Tais obras são: A religião dentro dos limites da simples razão (1793) e a Metafísica dos costumes (1797). O autor também entende que com a publicação da Crítica da faculdade do juízo, de 1790, a filosofia kantiana em seus aspectos autônomos e intelectuais dá-se por completa. De acordo com esse entendimento, o autor desconsidera a importância de

57 Cf. Georges Pascal menciona a dissertação latina sobre A forma e os princípios do mundo sensível e do mundo

outras obras de Kant. Neste trabalho, todavia, faremos breves referências também a tais obras, mesmo que resguardando essa divisão genérica da produção kantiana.

Outro ponto que cabe ressaltar e que diz respeito a uma questão conhecida entre os estudiosos da Filosofia de Kant, refere-se à importância de seu criticismo ou o que predominou em Kant acerca da concepção de crítica. Assim recorda Pascal que: “O que conduziu Kant à ideia de crítica não foi a rejeição das conclusões metafísicas, e, sim, a consciência da incerteza dessas conclusões, e da fraqueza dos argumentos em que assentavam.” (PASCAL, 2003, p.29). Também sobre a ideia de crítica em Kant, Lacroix (1989) lembra que seu papel é interditar afirmações especulativas que encontrem seu fundamento fora das condições do conhecimento possível, estabelecendo uma separação entre o que está no interior do domínio do conhecimento e aquilo que o extrapola. Para resolver, deste modo, o problema da metafísica, Kant se propõe a examinar concomitantemente as condições a priori que tornam a ciência possível. Lebrun, em Kant e o fim da metafísica, reforça, neste sentido, que: “A única motivação da crítica é, portanto, examinar os direitos da metafísica ao título de ciência.” (LEBRUN, 2002, p.24).

A mudança de perspectiva, no campo filosófico e epistemológico, conhecida como “revolução copernicana”, da qual Kant é o artífice, permite não somente rever os parâmetros da teoria do conhecimento tradicional, mas trouxe igualmente uma inversão de seus princípios. Segundo Luc Ferry, esta revolução que se realiza na CRP consiste em: “expor a questão da objetividade não em termos de exterioridade em relação às representações, mas em termos de universalidade (ou de validade universal) na ligação das representações.” (FERRY, 2010, p.45). Daí a possibilidade de trazer à tona a discussão sobre o modelo cartesiano centrado no sujeito pensante, bem como a tradição empirista focada na primazia da objetividade, e de determinar novas bases cognitivas a partir de uma filosofia transcendental58.

A ênfase de Kant no aspecto transcendental opera uma reviravolta quanto à posição do objeto na produção de conhecimento. Se, até então, se acreditava que o conhecimento se regulava pelo objeto, doravante o objeto passa a se constituir a partir de uma subjetividade

58 Cf. FERRY, Luc. Kant: Uma leitura das três “críticas”. Trad. Karina Jannini. 2ª Ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. Segundo Luc Ferry, o que se pretende apreender em Kant, com o “idealismo transcendental” e, sobretudo, estabelecer de agora em diante, é uma teoria do conhecimento. Deste modo, este autor reforça que: “A partir de então, a coisa em si não é diferente do fenômeno, é apenas um ponto de vista sobre o fenômeno”, acrescenta o autor (FERRY, 2010, p.47). Se, para Kant, só há conhecimento possível fundado no que se mostra ao aparato sensível do sujeito, o filósofo consagra igualmente um novo valor cognitivo à capacidade sintética do entendimento; este vínculo necessário entre ambos – sensibilidade e entendimento – funda o conhecimento possível enquanto conhecimento do fenômeno.

transcendental, cuja sensibilidade e cujo entendimento são fundamentados a priori. Desse modo, Kant trata do entendimento enquanto faculdade que possibilita a formação dos conceitos. Assim, é também nossa capacidade de julgamento que passa a contar com novos princípios.

O ensejo crítico da reviravolta kantiana, no campo do conhecimento, deve-se a vários fatores, dentre os quais aparece também o problema do juízo, que poderá ser a condição da verdade como também de erro. Primeiramente, acerca das condições de possibilidade de conhecer qualquer coisa, existem regras pelas quais os objetos podem ser conhecidos; tais regras ou princípios são estabelecidos antes mesmo de os objetos serem dados ao juízo.

Em linhas gerais, um juízo, do latim judicium, se refere a julgamento, e, por assim dizer, equivale a uma faculdade fundamental do pensamento que, por meio de certas condições, procura avaliar uma realidade ou um estado de coisas qualquer. A faculdade de julgamento se empenha em ponderar, bem como em escolher e decidir, considerando as regras que o pensamento lhe impõe. Na filosofia kantiana, o juízo não pode ser ensinado e sim exercitado e, neste sentido, primeiramente confere ao intelecto a capacidade de julgar o que nos vem pelos sentidos.

Acerca deste aspecto, é oportuno recordarmos a distinção à luz de Kant (2005a), na secção II dos Escritos Pré-críticos, entre aquilo que é sensível e aquilo que está no âmbito do inteligível. De acordo com o filósofo, na primeira maneira de conhecer, que afeta os sentidos (sensualis), tal condição é coordenada pela lei natural do ânimo (animi). Nesta, pode-se conceber a variação dada pela natureza do sujeito e sua consequente relação com o objeto. Neste sentido, esclarece Kant que:

Ao conhecimento próprio à sensibilidade [sensualem] é pertinente, assim, tanto a matéria, que é sensação [sensatio], e em virtude da qual os conhecimentos se chamam conhecimentos dos sentidos [sensuales], quanto a forma, em virtude da qual, mesmo que se encontrasse sem nenhuma sensação, as representações são denominadas sensitivas. (KANT, 2005a, p.238).

Já a segunda maneira, pelo menos no que diz respeito ao que é estritamente intelectual (intelectuallia estricte talia) e cujo uso do entendimento é real, nela, os conceitos referentes aos objetos e também os que se referem às relações são resultantes da própria natureza do entendimento, e não das abstrações advindas de qualquer uso dos sentidos. Nesta parte de Escritos Pré-críticos, Kant adverte sobre uma ambiguidade que envolve a expressão

“abstrato”: a saber, se quando de seu uso se diz abstrair de algo e não abstrair algo.59 Para Kant, é preciso elucidar de que sentido se trata para considerar a atividade cognoscente: “O conceito intelectual abstrai de todo sensitivo, não é abstraído do que é sensitivo, e talvez seja mais corretamente chamado de abstraente do que abstrato”; explica Kant (2005a, p. 240). Assim, o filósofo afirma ser mais prudente e acertado denominar os conceitos intelectuais de “ideias puras”, ao passo que os conceitos que são dados apenas empiricamente devem ser denominados “abstratos”.

Se parecem estar delimitados os âmbitos que dizem respeito ao sensível e ao intelectual, todavia, uma problemática mais diretamente relacionada ao juízo se mostra quanto à garantia de conhecimento acerca da totalidade dos objetos da experiência ou sobre como acessar a natureza das coisas em si mesmas. Na esteira dessa indagação, Kant vai advertir, em Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura, que:

Todos os nossos juízos são primeiramente simples juízos de percepção: têm validade apenas para nós, isto é, para o sujeito, e só mais tarde lhes damos uma nova relação, a saber, com um objecto, e queremos que ele seja sempre válido para nós e igualmente para todos; pois, quando um juízo concorda com o objecto, todos os juízos sobre o mesmo objecto devem igualmente harmonizar-se entre si e, assim, a validade objectiva do juízo de experiência nada mais significa do que a validade universal necessária do mesmo. (KANT, 2003b, p.70-71).

Kant (2003b), na sequência de tal apontamento, esclarece sobre o que ocorre ao se considerar um juízo como universalmente válido de modo necessário. Neste caso, este tipo de juízo é objetivo, pois não é determinado pela percepção, mas pelo conceito puro do entendimento, no qual é subsumida a percepção (perceptio). A essa consideração se vincula um esclarecimento dado por Kant, no § 22 de Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura, de que a intuição transcorre do fazer dos sentidos, enquanto o pensar decorre do entendimento. Kant adverte que: “pensar é unir representações numa consciência. [...] A união das representações numa consciência é o juízo. Por isso, pensar é julgar ou relacionar representações a juízos em geral.” (KANT, 2003b, p.78).

Sem pretendermos considerar as questões tematizadas nos demais parágrafos dos Prolegômenos, ou seja, de como são possíveis a matemática pura, a ciência pura da natureza, a metafísica geral, a metafísica enquanto ciência, resta mostrar como, na CRP, algumas

59 Cf. este esclarecimento sobre a palavra abstrato em KANT, Immanuel. Escritos pré-críticos. Trad. Jair Barbosa. [et. al]. São Paulo: Editora UNESP, 2005. pp.240-241.

considerações imprescindíveis se desdobram à luz dessa definição kantiana de juízo acima considerada.