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CAPÍTULO II – IMPLICAÇÕES DO JUÍZO NOS ÂMBITOS ESTÉTICO E

2.3 O juízo e a demanda da moralidade na segunda Crítica

A problematização kantiana de questões da metafísica na CRP suscita à razão teórica especulativa uma necessidade de delimitar o campo da razão prática, pois existem assuntos,

ou melhor, objetos – Deus, alma imortal e liberdade – que a razão humana tende naturalmente a conhecer. Nosso intento, neste tópico, não é esboçar minuciosamente a possibilidade de uma filosofia moral em Kant, mas tão somente situar o juízo no âmbito moral e teleológico da CRPr.

Primeiramente, faz-se relevante uma advertência sobre a Típica do juízo puro prático, na segunda Crítica kantiana. Nota-se que, no interior da CRPr, a Típica nos resguarda dos entraves do empirismo e do misticismo e, ao mesmo tempo, trata do problema do ajuizamento prático, ou seja, propõe apresentar o ideal de moralidade com base numa racionalidade prática e no âmbito da experiência moral. De tal modo que esta faculdade prática é tipificada na forma da lei da natureza. Assim, Kant esclarece que:

Adequado ao uso dos conceitos morais é apenas o racionalismo da faculdade de julgar, que não tira da natureza sensível mais do que também a razão pura pode por si pensar, isto é, a conformidade a leis, e não introduz no supra-sensível senão o que, inversamente, se deixa apresentar efetivamente mediante ações do mundo sensorial segundo a regra formal de uma lei natural em geral. (KANT, 2002, p.113).

Para Kant, na CRPr, se a máxima de uma ação não decorre dessa legislação geral ela é moralmente injusta. Kant reforça que a lei da natureza deve ser parâmetro para todos os juízos morais mais comuns, inclusive para os juízos da experiência. Segundo o filósofo: “[...] leis enquanto tais, de onde quer que elas tirem os seus fundamentos determinantes, são sob esse aspecto idênticas.” (KANT, 2002, p.112).

Ao tratar da razão prática, Kant esclarece que ela também possui seus princípios a priori, uma vez que a lei moral dirige-se a todos os seres racionais, como também preceitua como um imperativo a priori. Contudo, seus princípios são organizados em relação à faculdade de desejar e não quanto ao papel regulador em matéria de conhecimento. Neste caso específico da segunda Crítica, o desejo tende a obedecer à lei moral, contando que a vontade possa ser ajuizada pela razão. Kant esclarece a propósito deste caráter prático que:

A razão ocupa-se com fundamentos determinantes da vontade, a qual é uma faculdade ou de produzir objetos correspondentes às representações, ou de então determinar a si própria para a efetuação dos mesmos (quer a faculdade física seja suficiente ou não), isto é, de determinar a sua causalidade. (KANT, 2002, p.25).

Segundo o próprio Kant, o fim é um objeto do livre-arbítrio em conformidade com as representações que se tem dele, e toda ação, invariavelmente, tem um fim. Com efeito, toda

ação é um ato da liberdade para quem está em atividade e não uma decorrência da natureza. Nestes termos kantianos, o ato que determina o fim é um imperativo da razão pura prática que agrega um conceito de dever à apreciação de um fim, num sentido geral. Lembrando-se que o próprio conceito de dever guarda uma relação imediata com uma lei. Em decorrência disto, entende-se que:

Todo conceito de dever contém uma coerção objectiva mediante a lei (como imperativo moral que restringe a nossa liberdade) e pertence ao entendimento prático, que faculta a regra; mas a imputação interna de um acto, como de um caso que se encontra sob a lei (in meritum aut demeritum), compete à faculdade de julgar (iudicium), que, enquanto princípio subjectivo de imputação da acção, julga com força legal se a acção se realizou, ou não, como acto (como acção que se encontra sob uma lei); em seguida, surge a conclusão da razão (sentença), isto é, o nexo do efeito jurídico com a acção (a condenação ou a absolvição): tudo isso sucede perante uma audiência (coram iudicio), chamada tribunal (fórum), como pessoa moral que torna efectiva a lei. (KANT, 2004, p.77).

Segundo Kant, a autonomia da vontade não apenas é o princípio constitutivo de todas as leis morais, como também de todos os deveres, sendo assim, poderá valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. E, como nota Kant, na metafísica dos costumes,“a virtude é a fortaleza moral da vontade de um homem no cumprimento do seu dever, que é uma coerção moral mediante a sua própria razão legisladora, na medida em que esta se constitui a si mesma como poder executivo da lei.” (KANT, 2004, p.40). E, na Secção Primeira de Metafísica dos Costumes, parte II, Kant esclarece que a consciência moral do homem é resultante de um tribunal interno no qual “seus pensamentos se acusam e se desculpam entre si”. (KANT, 2004, p.77); por conseguinte, seus deveres necessitarão ter por imagem um homem geral. Assim, este tipo de consciência moral que exige deveres se vê compelida pela razão a ser juiz de suas ações. Nestes deveres, a consciência moral imagina outra pessoa, real ou apenas ideal, criada pela argúcia da razão.

Percebe-se, assim, que à luz da CRPr Kant atribui à ação humana uma característica universal, que desperta uma investigação sobre o uso prático da razão. Ou seja, uma ação é livre por não possuir nenhuma causa externa a si mesma. Entretanto, como Jean Lacroix adverte: “o papel da metafísica dos costumes não poderia, pois, reduzir-se a uma análise da consciência comum: trata-se de fundar os juízos morais desta consciência comum.” (LACROIX, 1989, p.85). Assim sendo, sua aplicação ao homem particular remete à compreensão de que a consciência moral está fundada universalmente para todo ser racional.

Neste sentido, uma crítica da razão prática pode justificar esse intento de uma metafísica dos costumes, como ressalta Jean Lacroix:

A tarefa de uma metafísica dos costumes é a de fundar aquilo que deve existir pela liberdade, diferentemente de uma metafísica da natureza, cuja tarefa é a de fundar as leis daquilo que existe na experiência. Com efeito, aquilo que deve existir na liberdade não pode encontrar o seu fundamento na experiência, numa psicologia, numa sociologia ou mesmo numa antropologia, uma vez que não se pode extrair o que deve existir daquilo que existe. (LACROIX, 1989, p.85).

O fundamento da razão prática, como já salientado, exprime-se na subordinação do interesse especulativo ao interesse prático. Este interesse implica a relação entre a contingência, na qual a vontade está subtendida e submetida, e os princípios da razão. O interesse como expressão sensível do agrado e da utilidade constitui, do ponto de vista kantiano, uma dentre outras motivações que levam o homem a agir. Kant reforça que uma inclinação se exprime por uma dependência na qual a faculdade de desejar se encontra movida por sensações sendo, deste modo, sinal de uma necessidade. É possível que uma ação humana, no âmbito da moral kantiana, possa ser orientada por inclinações, mas desde que tal orientação não seja necessária, mas sim resultante de um dever como alternativa racional. Kant, em CRPr, explica que o aspecto essencial constitutivo da determinação da vontade livre reflete a independência quanto ao concurso de impulsos sensíveis e a ruptura com todas as inclinações. A liberdade, nestes termos, implica uma disposição em seguir normas com vistas ao respeito a leis reconhecidas pela razão. Segundo Julien Benda: “A autonomia da vontade é a propriedade pela qual ela se constitui uma lei para si mesma (independente de qualquer propriedade dos objetos da volição).” (BENDA, s/d, p.100).

Como Jean Lacroix (1989) lembra, não teria procedência uma lei moral62 que não fosse constituída da liberdade e fruto de uma consciência, isto é, como um fato da razão, visto que a forma legislativa de suas máximas supõe uma universalidade e não depende, nem é regida pelas mesmas leis naturais que regem os fenômenos. Por conseguinte, o modo de agir está relacionado ao dever se guiar pela máxima da própria vontade. Para Kant, o critério do

62 Cf. DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Trad. Sonia Dantas Pinto Guimarães. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. Como se pode inferir, tanto a ideia de razão quanto a de liberdade se deparam com a determinação de uma lei moral, como observa Gilles Deleuze (1976): “A lei moral nos ordena pensar a máxima de nossa vontade como princípio de uma legislação universal”. O filósofo da diferença assegura ainda que a forma de uma legislação universal pertence à Razão. O próprio entendimento, com efeito, nada pensa de determinado se suas representações não são aquelas de objetos restritos às condições da sensibilidade. Uma representação não somente independente de qualquer sentimento, mas de qualquer matéria e de qualquer condição sensível, é necessariamente racional. (DELEUZE, 1976, p.45).

ato moral não decorre da determinação do mundo fenomênico ou de qualquer moralismo antigo, mas é um efeito de nossa vontade, pela sua implicação com a liberdade. Deste modo, uma lei moral pertence à ordem numenal e não está submetida às ilusões da causalidade dos fenômenos. Diferentemente do princípio da causalidade que permite começos relativos, a liberdade moral tem o poder de produzir começos absolutos. Julien Benda acrescenta que:

A vontade é pensada como independente de condições empíricas e, portanto, como vontade pura determinada pela simples forma da lei, sendo este princípio de determinação considerado condição suprema de todas as máximas. É coisa bem estranha e não tem paralelo em todo o resto de nosso conhecimento prático. (BENDA, s/d, p.105).

Neste sentido, a razão acaba por determinar objetos suprassensíveis, como induz o entendimento em prol do interesse prático, daí uma razão pura prática. Em função do interesse, a razão torna-se legisladora, contudo ela é a faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar, como anunciado anteriormente. Kant assinala que: “A razão em uma lei prática determina imediatamente a vontade, não mediante um sentimento de prazer e desprazer imiscuído nela ou mesmo nessa lei, e somente o fato de ela como razão pura poder ser prática possibilita-lhe ser legislativa.” (KANT, 2002, p.42).

A matéria de um princípio prático, de fato, é objeto da vontade. Contudo, o contentamento da faculdade de apetição, em que cada um costuma depositar sua felicidade, é inerente aos sentimentos de prazer e desprazer, e não determina especificamente coisa alguma. Como pode haver variação na contingência dessa apetição, por conseguinte, jamais fornecerá uma lei do tipo prática, uma vez que tal sentimento não pode ser dirigido universalmente aos mesmos objetos.

Na CRPr, Kant esclarece que a lei moral é necessária e universal, e se funda na satisfação em relação ao cumprimento desta lei. Assim, Benda norteia que: “o princípio da autonomia é, pois, este: escolher sempre de maneira que a mesma volição compreenda as máximas de nossa escolha como lei universal.” (s/d, p.100). Visto que o princípio de obediência a essa lei é em si mesmo universal, e por se constituir como um imperativo categórico, não depende das circunstâncias da vida empírica e deve ser aplicável a todos os homens. Luc Ferry adverte acerca desta objetividade prática que: “Se o objetivo é o fim, ele é também o que não é subjetivo, o que vale não apenas para mim, mas também para os outros.” (2010, p.106).

Diante desta questão, vem à tona o problema do interesse prático desta razão, ou seja, se seu objetivo mais elevado é a obediência à lei moral, elucidar em que sentido ser livre é o mesmo que obedecer à própria razão. De acordo com Kant, em CRPr: “o respeito pela lei moral é o único e ao mesmo tempo indubitável motivo moral, do mesmo modo que este sentimento não se dirige a algum objeto senão a partir desse fundamento.” (2002, p.127). Para Kant, a razão prática é profundamente interessada. Isto implica que, se por um lado, prevalece esse assentamento de interesse, pelo fato da lei moral determinar de forma objetiva e imediata a vontade com vista ao juízo da razão, por outro, a consciência moral tem uma conotação desinteressada, na medida em que propõe uma libertação de quaisquer inclinações sensíveis.

Segundo Julien Benda (s/d), toda inclinação, assim como todo impulso sensível, decorre do sentimento e do efeito negativo produzido acerca desse sentimento [grifo nosso]. Podemos perceber que a autora assinala o preceito do desinteresse contido nessa forma de agir da razão prática, salientando que mesmo estando diante de prazer ou desprazer, por exemplo, de sentimento denominado dor, ainda assim deverão prevalecer considerações apriorísticas. Neste mesmo sentido, de acordo com Lacroix: “Uma vez que o homem é um ser sensível ao mesmo que racional, é preciso que ele aja também por dever ou por interesse; [...] O motivo deve ser moral: a obediência ao dever por dever, quer dizer, o desinteresse.” (LACROIX, 1989, p.93). A relação deste desinteresse com a comunidade de homens traduz-se por laços de liberdade e racionalidade e, como o próprio Lacroix (1989) ressalva, repousa na heterogeneidade entre a sensibilidade e o entendimento, donde seu móbil ou seu interesse prático mais elevado é o respeito.

Para finalizar este tópico e sua relação com a temática do juízo, cabe salientar, pois, que em virtude da estrutura interna da razão, em sua pretensão de ultrapassar a imanência empírica e buscar o incondicionado por meio de princípios, Kant se depara, na CRPr, com a tarefa de investigar e estabelecer um modelo para o uso prático da razão. O filósofo desenvolve assim um conceito prático de liberdade que fundamenta a possibilidade de um uso empírico da razão e, como o fundamento da razão se constitui a priori, uma moral assentada no apriorismo apenas tem resguardo numa vontade livre, pois somente esta é capaz legislar sobre sua realização. Deste modo, os juízos morais que decorrem desta proposta crítica devem ser assentados em princípios apriorísticos, ao contrário do que ocorre com o juízo quanto ao papel que a razão assume na terceira Crítica, tal como veremos.