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A imprensa modernizada: o lugar dos jornais nos debates políticos

2.2. Jornais brasileiros

2.2.1. A Gazeta de Notícias e os limites do popular

O jornal carioca Gazeta de Notícias surgiu em 1874, na esteira do movimento republicano. Foi fundado e dirigido pelo médico de formação Antônio Ferreira de Araújo, quem, ao lado de José do Patrocínio, fez da Gazeta um importante instrumento dentro da estratégia de mobilização das classes médias urbanas da capital federal.

O interesse em representar os grupos populares era um dos principais pilares do auto-discurso do diário, que orgulhava-se de ser um jornal que chegava “aos bolsos mais modestos.” 46 O outro pilar sobre o qual sustentava seu discurso era a marcada distância

45 Esse item apresenta mais análises do que os dos outros jornais, posto que, pela ausência de bibliografia específica

sobre a Gazeta, tomamos diretamente as fontes para reconstituir sua trajetória.

46 FERREIRA DE ARAÚJO, Antônio. Presse. In: SANTA-ANNA NÉRY, M. F. J. (org.). Le Brésil en 1889. Paris: Librairie

que assumia em relação aos partidos e às disputas facciosas, apresentando-se como uma imprensa independente de qualquer vinculação partidária. Como destaca Sodré, a

Gazeta foi um jornal reconhecido em sua época por haver “reformado a imprensa de seu

tempo, [...] com desprezo pelas misérias e mesquinharias da política.”47

De fato, sua redação contava apenas com intelectuais e literatos de prestígio, mas não com políticos, o que era comum entre os grandes jornais do período. Após a morte de Ferreira de Araújo, em 1900, a Gazeta passou à direção de Henrique Chaves e, no período estudado, a redação era composta, ainda, por Gilberto Amado, João do Rio e Ramiz Galvão.

Sua percepção do ofício jornalístico e das funções representadas por um jornal era a de um jornalismo comercial, tecnicamente moderno e informativo. Nesse sentido, vale ressaltar que o jornal se destacou como o primeiro diário brasileiro a usar cores, a partir de 1907.48 Além disso, chama a atenção o fato de que, já em 1911, o diário começou a trazer na primeira página o resumo das principais notícias publicadas nas páginas seguintes. Assim justificava tal empreendimento: “muitas vezes não há tempo para a leitura completa de um jornal. Aqui estão, em resumo, as notícias da Gazeta.”49

Em 1913, em sua edição de aniversário, o periódico carioca apresentou claramente sua concepção de que o melhor jornal era aquele que “todos os dias [era] um jornal novo pelo seu trabalho e pelo seu esforço em servir a curiosidade do leitor, um grande órgão de informação”. Assim descreveu sua trajetória, procurando demarcar seu espaço no âmbito da imprensa brasileira:

a Gazeta de Notícias criou no Rio a necessidade aguda de destaque e de competição, vindo, muito tempo após o Jornal do Comércio, fazer-lhe concorrência pelos processos modernos. [...] a Gazeta de Notícias desde sua fundação através do tempo tem sido a iniciadora e adaptadora de todas as transformações do jornalismo. [...] Não se vive mais dos louros do passado no mundo moderno [...] [e] o jornal reflete absolutamente, na concorrência diária, esse aspecto.50

47 SODRÉ, Op. cit., p. 257.

48 Idem, p. 344.

49 Gazeta de Notícias, 01/09/1911, 1ª pág

Podemos perceber que o jornal carioca encontrava sua legitimidade nas regras de mercado e não na “tradição política”, característica essencial dos “diários populares” no período, como abordamos anteriormente, de acordo com as proposições de Saítta, sobre o diário argentino La Razón.

De fato, encontramos muitas semelhanças entre a Gazeta e La Razón. Para além do fato de não se envolverem diretamente nas disputas partidárias, ambos apresentavam aspectos bastante parecidos no que diz respeito ao formato. Faziam amplo uso da fotografia e da reportagem – que se constitui num estilo próprio do jornalismo –, dedicavam grande espaço a temas gerais de utilidade pública, além de distribuírem os anúncios comerciais ao longo das páginas, sem concentrá-los apenas em páginas específicas.

Para se ter uma idéia do formato “popular” adotado pelo jornal carioca, vale a pena citar dois rápidos exemplos. Em primeiro lugar a existência de uma coluna denominada “Reclamam à Gazeta”, na qual o jornal publicava reclamações da população em geral, como a endereçada à Prefeitura sobre a estrutura viária da cidade, em março de 1914. No mesmo mês podemos ler ainda uma reportagem de primeira página com o título “Os restaurantes populares”, na qual a redação destaca que, à parte os inúmeros restaurantes e casas de petisqueria encontrados no Rio, “como toda cidade cosmopolita”, “há também os restaurantes populares, onde se comem por preços mais diminutos.”51

Poderíamos citar inúmeros exemplos que revelam a proposta da Gazeta não só de falar às classes populares como também de representá-las. Entretanto, o “popular” apresenta limites e contornos muito bem definidos no discurso do jornal carioca. Em primeiro lugar, as classes populares às quais o jornal se dirige restringem-se ao mundo urbano. Todas as representações sobre o meio rural que encontramos na Gazeta, no período estudado, são bastante pejorativas e negativas, o que certamente tem relação com os movimentos sociais rurais vivenciados no Brasil, no período. O jornal qualifica toda e qualquer mobilização camponesa como “banditismo” e defende irrestritamente o uso da violência por parte das autoridades contra esses movimentos.

Era no âmbito dos centros urbanos que a Gazeta projetava seu ideal de “popular”. O jornal pretendia falar e dar voz aos trabalhadores humildes que habitavam as grandes cidades, especialmente o Rio de Janeiro, chegando a denunciar suas precárias condições de vida. Entretanto, o limite colocado pelo diário ao trabalhador urbano estava justamente na sua capacidade de mobilização. A Gazeta demonstrava grande temor em relação às organizações operárias e, assim como no caso dos movimento rurais, a solução que encontrava para esse “perigo” era a enérgica repressão por parte do Estado.

A demarcação das classes populares vislumbradas pela Gazeta de Notícias era, assim, muito clara. Tratava-se na verdade de um ideal de “popular”, a partir do qual o jornal pretendia ser lido também pelo “povo”. Evidentemente, seu discurso resultava ambíguo, expressando as limitações de seu próprio lugar social, o das elites intelectuais, às quais, aliás, o diário nunca deixou de falar. Mesmo portando um auto-discurso “popular” e buscando atingir as massas fica claro que a Gazeta nunca desviou seu discurso das elites intelectuais, abarcando uma literatura de alto nível e chegando, inclusive, a publicar uma coluna denominada Chronique Parisiense, em francês. Nas primeiras décadas do século XX, a Gazeta era um dos principais diários do país e possuía uma tiragem diária de 50.000 exemplares.