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A geometria amorosa em obras contemporâneas

5 O DESEJO ESPIRALADO EM OBRAS LITERÁRIAS

5.1 A geometria amorosa em obras contemporâneas

Como pudemos observar ao longo das análises empreendidas, o desejo tem sido percebido como elemento determinante para os envolvimentos vivenciados pelas personagens da literatura de ficção, em todos os períodos em que foram produzidos. Não podemos desconsiderar que em cada momento esse desejo foi entendido de modo distinto, pois os sujeitos são construtos sociais, trazendo marcas dos contextos nos quais são/estão locados, mas também são sua subjetividade.

Nesse sentido, ao nos debruçarmos nas leituras literárias dos textos contemporâneos, verificamos a recorrência de relações que tematizam os envolvimentos LGBTI+. A presença dessa temática, bem como a visibilidade das relações que não ousavam dizer o nome está intimamente relacionada às concepções que subsidiam as literaturas contemporâneas. Estamos compreendendo a obra contemporânea como aquela produzida no final do século XX e início do século XXI, considerando-a, assim como as demais manifestações artísticas, como um modo de trazer para ficção uma perspectiva da sociedade.

De acordo com Schøllhammer (2009), no que se refere à produção contemporânea, é possível destacar que,

De modo geral, percebe-se, nos escritores da geração mais recente, a intuição de uma impossibilidade, algo que estaria impedindo-os de intervir e recuperar a aliança com a atualidade e que coloca o desafio de reinventar as formas históricas do realismo literário numa literatura que lida com os problemas do país e que expõe asquestões mais vulneráveis do crime, da violência, da corrupção e da miséria [...]

De um lado, haveria a brutalidade do realismo marginal, que assume seu desgarramento contemporâneo, e, de outro, a graça dos universos íntimos e sensíveis [...]

A literatura que hoje trata dos problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, privilegiando apenas a realidade exterior; o escritor que opta por ressaltar a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e histórico (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 14-15).

Dessa forma, o autor evidencia que a produção literária da época atual trata de temáticas cada vez mais ligadas a uma realidade nua e crua, uma realidade que se exibe sem subterfúgios, da mesma maneira que tematiza os aspectos de uma intimidade cada vez mais exposta, uma espécie de olhar sob o obscuro das conjunturas do hoje. Esse duplo eixo temático, por assim dizer, pode ser percebido nas obras que abordaremos neste capítulo: textos que trazem a violência como meio de vencer os obstáculos que se interpõem para a vivência dos desejos; textos que evidenciam as formas de afeto das personagens.

Outra autora importante para a discussão acerca da literatura contemporânea é Resende (2008), que apresenta três eixos temáticos como sendo basilares na produção dessa literatura: a presentificação, o retorno do trágico e o tema da violência:

Há, na maioria dos textos, a manifestação de uma urgência, de uma presentificação radical, preocupação obsessiva com o presente que contrasta com um momento anterior, de valorização da história e do passado, quer pela força com que vigeu o romance histórico, quer por manifestações de ufanismo em relação a momentos de construção da identidade nacional (RESENDE, 2008, p. 27).

Chamamos atenção para a perspectiva da presentificação apontada por Resende, por nos direcionar a pensar nessa urgência em lidar e expor o aqui-e-agora, pouco importando o que vem antes ou depois, vive-se na emergência do momento. Essa necessidade de viver o hoje está evidenciado nas temáticas, na existência de escritores que estão nas periferias, assim como na estrutura dos textos que, frequentemente, são mais curtos.

Outro estudioso que se destaca em observar as questões do presente é o historiador François Hartog, sobretudo ao definir o termo presentismo como sendo o “[...] presente tornou- se o horizonte. Sem futuro e sem passado, ele produz diariamente o passado e o futuro de que sempre precisa, um dia após o outro, e valoriza o imediato” (HARTOG, 2015, p.148). Nesse sentido, as duas concepções dialogam ao apostar nessa experiência com o tempo histórico do presente e suas implicações.

Atrelado a isso, não podemos desconsiderar que a partir da década de 60, com os avanços dos movimentos de emancipação política da comunidade homossexual, houve uma série de ações afirmativas para a inclusão e representatividade da comunidade, que hoje contempla os sujeitos LGBTI+. A visibilidade desse grupo reverberou nas mais diversas áreas sociais, assim como culturais e, por isso, na literatura não seria diferente.

Na esteira desse pensamento, percebemos uma gama de produções de autoria feminina ganhando mais espaço na produção e no setor editorial, o que não ocorria nos séculos passados. Outrossim, temas que contemplam as personagens que se relacionam com seus iguais – lésbicas e gays – ou travestis, transexuais e transgênero também avançam nas obras literárias. Com isso, não estamos afirmando que essas personagens não transitavam em outros momentos históricos. Outro ponto que destacamos é o modo como tais personagens aparecem nas obras contemporâneas, pois é perceptível uma validação, uma concepção afirmativa/positivada desses sujeitos ficcionais e suas relações afetivas.

Além disso, é pertinente pontuar a presença de personagens que se identificam com a perspectiva queer, ou seja, de uma conduta neutra para abranger pessoas de ambos os gêneros que possuem uma variedade de orientações, preferências e hábitos sexuais, os sujeitos intersexo e assexuais. Nesse sentido, podemos confirmar que há uma ampliação no que diz respeito à representação de personagens que performam de modos não-binário, fugindo ao que tradicionalmente está convencionado como sendo a “forma certa” de relação.

Por esse ângulo, é notório que a literatura expande ao incluir e visibilizar tais personagens e seus modos de relacionamentos. De um modo geral, sustentamos a ideia de que estas personagens vão se envolver em relações que estão abertas às múltiplas formas de se entrelaçar, pois tais sujeitos permitem que o desejo, em suas mais variadas formas de se concretizar, seja a base desses vínculos, não estando preso a dogmas de base judaico-cristã.

Destarte, para as representações de relacionamentos entre personagens que estão inseridas no grupo do LGBTI+, a figura da espiral será, definitivamente, a melhor forma de materialização nas relações em apresentadas nas obras em estudo. Essa representação ocorre devido às possibilidades abertas de visualização trazidas pela figura espiralada, pelo modo como o/os desejo/s tem sido entendido e vivido por esta comunidade.

Ademais, outro aspecto que justifica a associação das espirais com os envolvimentos nos quais os sujeitos ficcionais apresentam performances que se distanciam das relações heterossexuais e monogâmicas é o distanciamento que, geralmente, ocorre das concepções cristãs /religiosas. Assim, é recorrente que os sujeitos que não seguem os dogmas cristãos, deixem que o desejo esteja sempre em primeiro plano.

Diante disso, o objetivo deste capítulo é, sobretudo, analisar narrativas contemporâneas que tematizem as relações dos sujeitos LGBTI+ e que, em sua tessitura, seja possível perceber o desenho da espiral como metáfora para os relacionamentos estabelecidos entre os sujeitos ficcionais – impulsionados pelo desejo.

Portanto, diferentemente dos capítulos anteriores em que a cronologia histórica serviu como norte para a estruturação do capítulo, no caso deste não tomaremos como base a sequência temporal, mas sim o encadeamento temático, bem como as obras, para que haja coerência entre forma e conteúdo nos textos analisados.