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Interface literatura e geometria: notas introdutórias

3 A METÁFORA GEOMÉTRICA DOS AFETOS NA LITERATURA

3.1 Interface literatura e geometria: notas introdutórias

Ao propor uma relação entre as áreas da literatura e geometria, precisamos compreender alguns aspectos teóricos que são basilares para as mesmas: reconhecer suas fontes primárias, entender as controvérsias que surgem em seu entorno, bem como estudar os autores que têm sido referência para a compreensão de tais ciências. Acreditamos que esse percurso se faz necessário para que possamos apreender as particularidades de cada área e, assim, pensar as conexões possíveis entre as mesmas.

Dessa forma, diante da interface proposta, adentramos, inicialmente, os caminhos da Geometria – nosso ponto de partida e não de chegada –, que é apresentada por Santos e Viglioni, a partir das bases do surgimento desse campo de conhecimento. Segundo os autores,

a palavra “geometria” vem do grego geometrein (geo, “terra”, e metrein, “medida”); originalmente geometria era a ciência de medição da terra. O historiador Herodotus (século 5 a.C.), credita ao povo egípcio pelo início do estudo da geometria, porém outras civilizações antigas (babilônios, hindu e chineses) também possuíam muito conhecimento da geometria (SANTOS e VIGLIONI, 2011, p. 14).

A etimologia da palavra nos direciona a pensar a geometria como um campo de conhecimento muito antigo e percebido por diversos povos. No entanto, as nessa área têm como principal referência Euclides, que apresentou postulados considerados premissas para a compreensão da Geometria Plana, hoje conhecida como Geometria Euclidiana Plana.

Para reconhecer as particularidades dos triângulos amorosos na literatura, precisamos reconhecer as propriedades das figuras geométricas, os termos utilizados e como essa conexão pode ser estabelecida. Cabe dizer que a relação entre matemática e literatura ocorre, nesta tese, de modo metafórico, não literal. A necessidade do conhecimento do conceito na ciência exata se justifica exatamente pelo fato de ser possível estabelecermos as conexões semânticas capazes de projetar, nas relações pessoais das personagens ficcionais, as figurações geométricas a partir do postulado da Geometria Euclidiana Plana; ou seja, as figuras geométricas presentes nas

narrativas ou obras estudadas só são figuras no sentido não referencial. É interessante observarmos que cada área de conhecimento possui formas distintas de articular a linguagem para exteriorizar os pressupostos da mesma. Por exemplo, Euclides (2009, p. 97), ao discorrer acerca da definição de figura o faz da seguinte forma: “o que é contido por alguma ou algumas fronteiras”. Essa definição, em uma primeira leitura, pode apresentar-se como superficial, reduzida e, muitas vezes, incompreensível, gerando questionamentos do tipo: De qual fronteira ele está falando? Quem determina esta fronteira? De que modo está contido? Tais indagações são pertinentes, tendo em vista que a definição proposta por Euclides é direta e objetiva, podendo deixar lacunas para um leitor não habituado com esse tipo de escrita.

No entanto, esclarecemos que essa é uma marca da escrita e das proposições euclidianas, para não dizer da matemática, de um modo geral. Na obra Os Elementos (2009), o autor evidencia definições concisas24, como é sinalizado no prefácio da edição com a qual estamos

trabalhando, explicando que o modo direto como ele manifesta os conceitos é visto como uma característica basilar para a obra, na tentativa de não deixar espaço para divagações e interpretações dúbias. Claro que essa constatação matemática não se aplica aos modos de ler a literatura, uma vez que essa é uma ciência aberta às possibilidades.

Assim, voltando ao conceito de Figura, para Euclides (2009), é descrito como um espaço delimitado, fechado, encerrado em si, seja por um ou mais elos, seja pelos segmentos de reta. É um recorte que se concretiza em forma, é uma delimitação em um formato, podendo ser através de um triângulo, quadrado, retângulo, pentágono. A figura é, portanto, a delimitação de um espaço por meio de uma forma, é o formato das coisas que observamos e é na variação dessas formas que vamos nos debruçar neste trabalho.

Determinar as origens desse campo do saber acaba por ser arriscado “pois os primórdios do assunto são mais antigos que a arte de escrever” (BOYER, 1994, p. 4). Além desse fator, precisamos ponderar que, para tratar do surgimento de qualquer conceito ou aspectos relativos à ciência, devemos considerar que cada história contada evidencia um lado da mesma, ou seja, dependendo de quem apresenta um fato, teremos apenas um modo de olhar associado às particularidades que atravessam o sujeito enunciador.

Ainda segundo Boyer (1994, p. 16), “a geometria pode ter sido uma dádiva do Nilo”, uma vez que, no Egito antigo, o rio Nilo extravasava às margens e inundava o seu delta, fazendo

24 É importante chamar a atenção para este modo de escrita logo de início, pois vamos utilizar, prioritariamente,

as definições de obras fonte, a exemplo de Euclides (2009), para evitar concepções direcionadas, produzidas por leitores dessas obras. Além disso, sempre que possível, buscaremos tornar mais claros alguns conceitos matemáticos, tendo em vista as particularidades dessa área de atuação, para que a interação literatura-geometria seja realizada de modo claro para os leitores das duas áreas de concentração desta pesquisa.

com que os faraós encarregassem agrimensores para refazerem as fronteiras entre as propriedades, utilizando cordas para marcar ângulos retos, dividindo as terras25. Assim,

percebe-se que o desenvolvimento da geometria está diretamente relacionado às necessidades da prática de construção e demarcação de terras.

É sabido que Euclides e sua obra Os elementos (2009) confundem-se com a própria história da matemática grega, travando uma luta de descobertas. Segundo Mlodinow (2004, p. 15), “a história de Euclides é uma história de revolução. É a história do axioma, do teorema, da demonstração, a história do nascimento da própria razão”, ou seja, na leitura do autor, é com Euclides que a Matemática ganha forma, ainda que essa teoria tenha sido discutida e pensada por outros filósofos de sua época.

No entanto, não podemos desconsiderar que, mesmo possuindo uma relevância nos estudos matemáticos, há uma série de críticas a essa obra e autor. Segundo Roque (2012, p. 150), a obra Elementos, de Euclides “é vista como o ápice do esforço de organização da geometria grega desenvolvida até o século III a.E.C”, mas não está resumida a isso, uma vez que “afirma-se que seria somente uma compilação de resultados já existentes produzidos por outros, o que torna o seu autor um mero editor”. Isto é, a obra e a relevância do autor são questionáveis, desconstruindo, em certa medida, a ideia de máxima excelência de Euclides diante dessa afirmação.

Desse modo, segundo Euclides, a respeito das primeiras definições de figuras geométricas, ele afirma, na proposição 19, que “Figuras retilíneas são as contidas por retas, por um lado, triláteras, as por três, e, por outro lado, quadriláteras, as por quatro, enquanto multiláteras, as contidas por mais do que quatro” (2009, p. 98). Assim sendo, sabemos que, para termos um triângulo ou uma figura trilátera, nos termos euclidianos, é preciso que tenhamos três retas, como podemos observar na representação gráfica abaixo:

25 Essa técnica empírica baseada no teorema de Pitágoras veio a ser demonstrada muitos anos depois. Tal teorema

Figura 11 – Representação gráfica da figura retilínea contida por três lados –

triláteras

Fonte: Arquivo da autora (2018).

Conforme aponta Levi (2008), a composição da geometria tem permanecido estática desde a sua primeira observação registrada por Euclides, daí a importância de ser analisada com acuidade. Assim, podemos dizer que a obra euclidiana é considerada base para outros estudos, que tem nestes postulados um ponto de partida e, segundo Roque (2012),

Os escritos de Euclides ofereciam uma alternativa, mas sua exploração demandava técnicas de natureza muito distinta, o que talvez ultrapasse as possibilidades dessa geração imediatamente posterior a Arquimedes. Na verdade, a busca de novos métodos de construção inspirados no paradigma euclidiano serviu de motivação para os trabalhos de Apolônio desenvolvidos na virada do século III a.E.C. para o século II a.E.C (ROQUE, 2012, p. 209).

Nessa perspectiva, a obra Os elementos (2009) é considerada como um clássico que precisa ser revisitado, pois tal obra proporciona aos leitores conteúdo acerca dos elementos que embasam toda a construção do conhecimento matemático em axiomas (suposições comuns a todas as ciências) e postulados (suposições particulares da ciência em estudo). Apesar de não termos formação na área, chamamos a atenção para este fato, considerado entre os estudiosos do campo de conhecimento específico, dando-nos mais garantia do acerto no uso dos conceitos, por nós apropriado dessa ciência, visto que a tese defendida, por sua base teórica e metodológica, configura-se como interdisciplinar.

Essa interação literatura-geometria está ancorada: de um lado, uma orientação teórica que, por mais que o tempo passe, é entendida como a principal fonte de consulta para a compreensão matemática, e, do outro, a recorrência de uma figura geométrica, em forma de metaforização dos relacionamentos, que atravessa toda a história da literatura, como é o triângulo amoroso.

O triângulo amoroso, de acordo com o inconsciente coletivo cultural brasileiro sobre as relações de afeto, pode ser descrito como sendo uma relação amorosa que sofre a interferência de uma terceira pessoa, desestabilizando o relacionamento de um casal, podendo criar arestas, das mais variadas possíveis. Essa ideia de triangulação amorosa, que está convencionada na sociedade, não aprofunda as configurações de tal figura e as particularidades dos sujeitos envolvidos na relação.

A recorrência da configuração nos faz observar algumas especificidades que devem ser ponderadas, ao compreendermos as relações triangulares, para aprofundar essa primeira impressão. Esse cuidado estabelecido é necessário por entendermos que as relações interpessoais são únicas, ainda que tenham em comum a quantidade de participantes envolvidos.

Desse modo, consideremos que existem alguns fatores que interferem na construção de relações nos moldes do triângulo amoroso. A exemplo disto, no que se reporta ao modo de integração das partes envolvidas, vejamos as possibilidades:

a) Uma pessoa do casal envolve-se com a segunda e também com a terceira pessoa, sendo a segunda e terceira pessoas próximas. Nessa possibilidade, estamos considerando os encontros fortuitos, muitas vezes não formalizados, mesmo que momentâneos, um triângulo é desenhado, uma vez que desarmoniza a ideia de que os envolvimentos são para sempre, descontruindo a perspectiva da relação idealizada;

b) Um casal, formado por duas pessoas, tem a relação desestabilizada quando uma das partes se interessa por uma terceira pessoa. Para exemplificarmos, poderíamos ter que um homem e uma mulher, casados – felizes ou não – desequilibra a relação quando o homem26 se envolve com uma amante, configurando, dessa maneira uma triangulação

amorosa.

Estes são alguns elementos que são problematizados se observarmos com acuidade os triângulos amorosos, saindo do lugar comum que, de um modo geral, não se preocupa com a quantidade de sujeitos envolvidos em uma relação, mas com o sentido moral de um terceiro elemento atuando como uma intromissão no universo a dois. Algumas relações triangulares configuram-se com a presença consciente de dois parceiros e uma terceira pessoa envolve-se

26 Utilizamos a figura do homem como sendo o responsável por uma possível triangulação apenas para

ou é envolvida na relação, mas não altera, de modo efetivo, a relação “base”, podendo permanecer no tempo, não sendo apenas momentânea.

É importante chamar atenção para os triângulos que são desenhados nas relações entre iguais, pois é comum observarmos a presença de uma personagem mulher, por exemplo, como integrante do triângulo amoroso, no qual dois homens se desejam afetiva e sexualmente, todavia se esquivam diante da repressão e condenação social. Esse tipo de triangulação – do desejo – segundo Barcellos (2006), foi apontada por René Girad, ao estudar as triangulações amorosas formadas por dois homens e uma mulher, na literatura europeia do século XIX. Ainda segundo Barcelos (2006), a triangulação do desejo é “Uma figura interpõe-se entre sujeito e objeto do desejo, aparentemente desfazendo-lhe o caráter homoerótico, que uma leitura menos superficial pode, no entanto, facilmente recuperar” (BARCELLOS, 2006, p. 134). Esse tipo de triangulação vai nos interessar bastante, sobretudo nas análises dos textos que apresentam relações entre iguais.

Evidentemente que pensar a relação triangular significa problematizar os aspectos morais convencionados socialmente, que postulam o erro por meio da inclusão do terceiro elemento. Nesse sentido, o triângulo amoroso clássico seria aquele que desarmoniza uma relação entre dois. Essa tem sido a regra e o que verificamos como dominante na produção literária. Não podemos negar, no entanto que existem textos que propõem uma triangulação autorizada ou assentida, isto é, a participação não causa desequilíbrio, ao contrário, é vista com uma forma de fortalecer/apimentar/construir novas histórias a partir da participação do outro. Essa forma de desenhar a relação a três é considerada exceção à regra.

Nesse sentido, podemos dizer que, de um modo geral, a abordagem cultural que é feita do triângulo amoroso aponta para uma perspectiva negativa, tendo em vista que, como afirmamos anteriormente, há na cultura brasileira resquícios da tradição cristã, legitimada pela sociedade burguesa, que condena qualquer tipo de relação que fuja do padrão monogâmico estabelecido previamente como prática aceitável.

Evidentemente que a presença e influência da tradição judaico-cristã não é a única responsável pela manutenção da visão engessada do que é permitido, ou não, para as relações. Existe, por exemplo, visões provenientes da biologia que, independentemente da religião, atestam ser natural o encontro dos corpos para a procriação, não para o prazer, considerando, assim, as relações sexuais como um aspecto relativo às questões reprodutivas. Essa visão considera apenas o corpo biológico e as marcações físicas inscritas no mesmo.

Diante disso, percebemos que para pensar e problematizar o triângulo amoroso é preciso caminharmos por diversas áreas do saber, indo muito além da questão quantitativa, ainda que

essa seja a nossa premissa para que possamos revisitar as relações triangulares na literatura. Dessa forma, apresentamos neste primeiro capítulo um panorama sobre a presença, na literatura, das relações formadas por três indivíduos.

Nesse primeiro momento, o nosso intuito é o de discutir as obras e as respectivas relações triangulares estabelecidas, para que possamos nos debruçar sobre cada uma, entendendo sua especificidade e desestabilizando um pouco a fixidez típica da geometria euclidiana que, muitas vezes, é evidenciada através das metáforas na literatura.

Nessa perspectiva, partimos da forma inicial do triângulo amoroso, para constatarmos sua presença e, em seguida, exteriorizaremos suas especificidades. Esse caminho será entrecruzado pelas concepções matemáticas sobre as figuras geométricas, pautando-nos nos princípios basilares, apregoados por Euclides, para repensar suas configurações enquanto metáfora para a literatura.

O nosso percurso inicia-se a partir de concepções que surgem das impressões e vivências do cotidiano, podendo ser consideradas do senso-comum, por assim dizer, por constatarmos que, muitas vezes, a Academia se propõe a problematizar algum termo ou conceito, mas não leva em consideração o modo como as concepções já estão sendo pensadas e utilizadas pelas pessoas que vivem e observam, socialmente, tais relações. A tese construída não é abstrata: parte de conceitos matemáticos e culturais para pensar as relações de afeto e sexo vividas por nós e por pessoas que não apresentam nenhum problema cerebral que afete a libido, o campo do desejo, das projeções, ou seja, as figuras geométricas só são metafóricas porque no dia a dia não há como se desenhar, entre as pessoas, as formas abstratas que se materializam em figuras.

Destacamos essa relação entre utilização social e representação literária por entender que ambas caminham juntas e estão intimamente relacionadas. Segundo Candido (2000, p. 6), “O externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se assim, “interno”. Assim, podemos dizer que os triângulos amorosos que são vivenciados na chamada vida social são objetos de observação pela literatura.

Diante do que foi posto, tanto no que se refere aos postulados da Geometria Euclidiana quanto pelas proposições para a construção dos triângulos amorosos, podemos dizer que essa dominante na literatura brasileira precisa ser observada com acuidade, através de um olhar que questione as análises engessantes para as relações triangulares, assim como considerem as subjetividades das personagens envolvidas, pois um mesmo dominante pode ser constituído de modos distintos.