• Nenhum resultado encontrado

Literatura colonial canônica: em que armário estão as vivências?

4 FIGURATIZAÇÃO TRIANGULAR: RELAÇÕES AFETIVAS E

4.2 Literatura colonial canônica: em que armário estão as vivências?

Conforme discutimos, não é possível ler toda a produção literária nacional, no entanto, para manter a perspectiva do panorama histórico-literário, a proposta inicialmente pensada era que tivéssemos pelo menos um exemplar de texto de cada período, para que fosse permitido

visualizarmos o dominante nas relações verticalizadas. Assim, a abordagem adotada na análise dos textos inseridos no rol dos “textos de qualidade” e a tentativa de trazer uma quantidade ampla de textos literários produzidos em períodos distintos foram possíveis, pois há relações triangulares em muitas obras dessa alta literatura, como discutimos. Entretanto, ao nos debruçarmos sobre a produção literária desautorizada pela crítica, encontramos alguns entraves para delimitar o material que seria o corpus de análise. O primeiro ponto que destacamos foi a dificuldade em localizar textos que tematizassem as relações interpessoais envolvendo um terceiro indivíduo igual, configurando assim um relacionamento de base LGBTI+. Como aventamos anteriormente, a dificuldade de localização, que está relacionada à desautorização, pode também estar relacionada à necessidade de ocultar as práticas de um “amor que não ousa dizer seu nome” (WILDE, 1876).

Sabemos que o tipo de amor discutido nesse capítulo tem passado por um longo processo para encontrar o seu lugar, uma vez que as relações que estão fora do rol da heterossexualidade, durante muito tempo precisou ser escondida, ocultada, encarcerada por expor sujeitos e performances que, socialmente, são observados como anormais, como aquela que se encontra no limbo, em um espaço por vezes não fixado, dito – pelos outros – como sendo transitório.

Percebemos que há uma oscilação no que refere ao movimento de revelar e ocultar as relações e as práticas dos sujeitos LGBTI+. Historicamente, essa oscilação passou pelo espaço do “sair do armário”. Segundo Sedgwick (2007, p. 21), no seu texto “A epistemologia do armário”:

A epistemologia do armário não é um tema datado nem um regime superado de conhecimento. Embora os eventos de junho de 1969, e posteriores, tenham revigorado em muitas pessoas o sentimento de potência, magnetismo e promessa da autorevelação gay, o reino do segredo revelado foi escassamente afetado por Stonewall. De certa maneira, deu-se exatamente o oposto. Para as antenas finas da atenção pública, o frescor de cada drama de revelação gay (especialmente involuntária) parece algo ainda mais acentuado em surpresa e prazer, ao invés de envelhecido, pela atmosfera cada vez mais intensa das articulações públicas do (e sobre o) amor que é famoso por não ousar dizer seu nome.

O armário, como metáfora para as relações entre iguais, marca um lugar de poder e de controle sobre os corpos e as subjetividades dos indivíduos que não se adequam ao padrão. Há, desta forma, um duplo movimento que problematizamos com o seguinte questionamento: Quem coloca ou retira o indivíduo LGBTI+ do armário? Essa é uma saída por opção ou por imposição? Ainda que a década de 60 tenha sido um período marcado por uma maior liberdade sexual, não podemos afirmar que essa exposição seja somente uma visibilidade escolhida, pois, em certa medida, há um discurso de controle que subjaz tal saída.

Além disso, mesmo que seja uma escolha do sujeito, no contexto social em que estão inseridos, “Mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas” (SEDGWICK, 2007, p. 22). Nesse sentido, compreendemos que esse não é um movimento de caráter apenas particular, uma vez que muitas pessoas acabam por assumir uma postura de manter-se ou sair do armário diante de suas necessidades pessoais, sejam elas de cunho afetivo, profissional, religioso, dentre outros.

É essa movimentação que encontramos nas produções literárias que abordam tal temática. Por mais que saibamos da presença dessa produção, nem sempre é fácil localizar, tendo em vista que há também um armário que escondeu, durante muito tempo essa produção que, para uma sociedade marcada por uma heteronormatividade, exige um esconderijo para tais práticas e produções. Há uma necessidade de não dizer o nome, as práticas, nem as obras.

No que se refere à produção brasileira de uma literatura marcada pela presença dos sujeitos LGBTI+, de um modo geral, vamos encontrar uma discussão que problematiza quais aspectos devem ser considerados ao nomear uma produção de “literatura gay”31, tal como uma

gama de pesquisas que se propõem a inventariar essa literatura que ficou ocultada, para ponderar sobre a construção de um cânone formado por textos marcados por esta minoria.

Nessa perspectiva, a ausência de textos, neste caso, marcada pela não localização, que abordem os triângulos homoafetivos nos textos literários do contexto colonial brasileiro nos direciona a problematizar um dado: a não existência de textos, bem como o acesso a estes textos poderia estar relacionado à ausência de práticas?

Entabular uma discussão em torno das relações entre iguais passa pelo contexto social. Desse modo, não podemos desconsiderar a obra Devassos no paraíso (2011), de Trevisan, em que o autor apresenta um minucioso relato, baseado em dez anos de pesquisas e muita reflexão acerca da homossexualidade no Brasil, tão antiga quanto o próprio país. Segundo o autor, as práticas homossexuais já estavam presentes entre os índios, antes mesmo dos portugueses chegarem.

A obra de Trevisan (2011) traz um panorama que inicia a partir de 1591, com a atuação do Santo Ofício em punir os sodomitas; além de abordar a formação dos conceitos de pecado e desvio de conduta em relação à homossexualidade e, partindo disso, analisa os esforços de políticos, autoridades policiais, juízes, higienistas e psiquiatras para entender e tentar conter a pederastia nos séculos XIX e XX.

Nessa perspectiva, podemos afirmar que as práticas afetivas entre iguais estão presentes em todas as civilizações desde seu surgimento, ainda que pouco expostas ou invisibilizadas. Segundo Silva (2014), tais práticas estão inseridas no mundo grego e romano, influenciando outros contextos culturais:

O mundo grego antigo com suas mitologias, deuses e modos de fazer política exerceu fascínio e influência em outras sociedades posteriores a ponto de práticas culturais como a pederastia serem adotadas em outros contextos culturais – como Roma o fez. [...]

Uma das práticas culturais que ainda tem exercido grande influência no campo artístico das culturas letradas do Ocidente contemporâneo é a recorrência à pederastia, conhecida por amor grego, ‘amor que não ousa falar o nome’ (aforismo wildiano). Embora deslocada em sua ideia base, constituía, por assim dizer, um comportamento ‘tolerado’ e institucionalizado na Grécia antiga, envolvendo a relação afetivo- educacional entre o erastes (homem mais velho) e o erômenos (homem mais jovem) (SILVA, 2014, p. 61).

Consequentemente, ainda que as práticas estivessem em pleno exercício e influenciando as atividades culturais ocidentais, sabemos que, por questões de ordens diversas, sobretudo diante de uma manutenção de valores socialmente impostos, houve, e ainda há, um processo de invisibilização das produções que tematizam as práticas LGBTI+.

No que concerne à produção literária brasileira, é “relevante, do ponto de vista político, a historicização dos textos que formam o “cânone gay brasileiro”, uma vez que a visibilidade dos sujeitos homoeróticos, nas atuais sociedades, ultrapassam os direitos adquiridos nos foros jurídico-legais” (SILVA, 2012, p. 86).

Assim, corroboramos o pensamento do autor ao sinalizar essa necessidade de construção de um amplo cânone que “não ousa dizer o nome”, para reconstruir a história dessas produções, bem como dessas representações. Ainda que haja um grupo de pesquisadores e críticos que, através dos estudos culturais estejam despontando para essa área de estudo, temos um vasto caminho a percorrer.

Estamos apresentando um sentido mais amplo, abordando as relações iguais. Ao delimitarmos mais as relações observadas, enfocando nos relacionamentos entre iguais que se distanciam do um para um ou uma para uma, a dificuldade de localizar os textos literários aumenta e esse fato está mais ligado à repressão, ocultação de práticas e ao binarismo do que a não vivência das mesmas.

Nessa perspectiva, é inegável que durante muito tempo as relações afetivas e amorosas LGBTI+ foram sequestradas das produções literárias. Precisamos destacar que, por mais que se apresente um discurso de que os sujeitos são livres para as práticas e vivências diversas, o contexto histórico e social é que de fato determina como devemos nos portar em sociedade.

Concomitantemente, quaisquer experiências que não estejam inseridas no padrão social passam por um julgamento, seja no contexto real ou no contexto representativo/artístico.

Acreditamos que, para a época, tratar de temáticas como essa significaria denunciar uma sociedade que estava em seus primeiros passos de formação, fortemente influenciada pelos costumes e ingerências dos colonizadores, como também dos demais povos que foram fazendo da Terra de Vera Cruz seu espaço. Outro aspecto importante está relacionado ao grupo de escritores que, à época, era restrito.