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A ginástica e o esporte como sistematizações do exercício físico

CAPÍTULO IV Currículo escrito e a história da Educação Física no Brasil (1896-1929): o

4.2 A ginástica e o esporte como sistematizações do exercício físico

O corolário dos movimentos que emergem a partir do século XVIII, manifesta-se na

necessidades de determinados países europeus. Devido à importância que os chamados sistemas ginásticos39 e os esportes adquirem nas primeiras experiências de um exercício físico

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uma forma característica de organização sistematizada de exercícios físicos, surgida em alguns países europeus durante o século XIX. Destarte, salvo em citações diretas ou em paráfrases, tais termos devem ser lidos como sinônimos.

institucionalizado, em fundar algo que, no futuro, constituiria a Educação Física Escolar, analisamos suas principais vertentes e respectivas características.

A partir do início do século XIX, o desenvolvimento científico, baseado, principalmente, nas descobertas do campo biológico, permite que o conhecimento sobre os efeitos do exercício físico seja sistematizado e organizado em métodos. No contexto de uma sociedade progressivamente mais urbana e industrial, a Ginástica40surge como algo capaz de

corrigir desde os vícios posturais decorrentes das degradantes condições de trabalho, até os vícios morais de uma população carente de ordem e de disciplina.

Apesar de algumas particularidades em cada país, as escolas ginásticas tinham em comum as finalidades de: regenerar a raça pela eugenia; promover a saúde, mas sem alterar as condições de vida; desenvolver a vontade, a coragem, a força, a energia de viver, a serviço da pátria em guerras ou nas indústrias; e desenvolver a moral, intervindo nas tradições e nos costumes do povo (SOARES, 1994). Ressalta-se, também, que tanto a elaboração, quanto a institucionalização dos sistemas ginásticos possuem influência do nacionalismo europeu e a necessária e constante, em maior ou menor medida, preocupação com a guerra.

Com efeito, na Alemanha da transição entre os séculos XVIII e XIX, que ainda buscava a unificação do território, a necessidade de desenvolver um espírito nacionalista encontra, na Ginástica, a estratégia adequada para formar indivíduos saudáveis e fortes moral e fisicamente. Inspirada nas bases científicas do positivismo biologia, fisiologia, e anatomia e nas teorias pedagógicas liberais Rousseau, Basedow e Pestallozzi os idealizadores do sistema ginástico alemão desenvolveram um método formativo no qual o exercício físico possuía grande destaque (SOARES, 1994).

Considera-se que o movimento ginástico alemão se origina em 1774 com a fundação do

Philanthropinum, pelo reformista educacional, professor e escritor alemão Johann Bernhard

Basedow (1724-1790), pois nesta escola surge o primeiro programa moderno de Educação Física41(VAN DALEN; BENNET apud BETTI, 1991).

Outro idealizador da escola ginástica alemã, Johann Christoph Friedrich Guts Muths (1759-1839), professor e educador alemão, propôs, em 1784, uma Ginástica organizada pelo homens, mulheres e crianças como meio educativo fundamental da nação alemã, ao disseminar cuidados higiênicos tanto com o corpo,

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41 mpreendia corridas, saltos, arremessos e lutas semelhantes às que se praticavam na Antiga

Grécia: jogos de peteca, de bola, de pinos e pelota; natação; arco e flecha; marchas; excursões no campo, caminhada e suspensão em escadas oblíquas e transporte de sa

quanto com o espaço onde se vive. Dividindo as atividades em três classes

a proposta de Guts Muths

mais que o conhecimento, deveria ser o objetivo da educação.

Para além da saúde e da moral e influenciado pelas ideias do filósofo alemão Johann Fichte (1762-1814) sobre o papel decisivo da educação na salvação da nacionalidade alemã, Friedrich Ludwig Christoph Jahn (1778-1852), pedagogo e pedagogista alemão, defende um caráter militar para a ginástica, elegend verdadeira fonte de emulação social

Voltado à instrução das massas, Jahn reforça o caráter patriótico do método ao criar o Turnen, um movimento caracterizado por ser um grande evento de instrução física militar, capaz de promover disciplina na população, atendendo aos anseios práticos da burguesia.

Essa forma de instrução física militar, destinada às massas, embora disseminasse, do ponto de vista ideológico, a moral e o patriotismo, apresentava um forte conteúdo higiênico e tinha por finalidade primeira tornar os corpos ágeis, fortes e robustos. Em momento algum, a saúde física deixou de pontuar aquelas propostas, e o corpo anátomo-fisiológico sempre foi seu objeto de atenção. O viés médico-higiênico emprestava o caráter científico que, juntamente com a moral burguesa, completava o caráter ideológico. (SOARES, 1994, p. 67-68)

Tendo Guts Muths e Jahn desenvolvido o método para as massas, o ginasta e educador alemão Adolf Spiess (1810-1858) volta seu olhar para a utilização da ginástica nas escolas, propondo um período diário dedicado ao exercício físico para crianças de ambos os sexos. Segundo Accioly (1949 apud

indivisível, abraçando toda a natureza da criança e situando a ginástica como responsável pela perfeição do corpo que a por

com tratamento pedagógico de modo a integrar-se ao currículo escolar, Spiess teve maior êxito na introdução da Educação Física nas escolas da Alemanha pela grande ênfase na disciplina presente no seu método, conformando, na população, a submissão necessária para um regime autocrático. Nesse sentido, Roberts (apud BETTI, 1991) conclui que a Educação Física alemã se desenvolveu não apenas como um sistema escolar regular, mas como um sistema extracurricular, politicamente orientado, que se tornaria, décadas depois, no século XX, uma

42.

42Também conhecido como "Juventude Hitlerista" (em alemão, Hitlerjugend) era uma instituição obrigatória

Envolta por um sentimento nacionalista, que emerge logo após as guerras napoleônicas no início do século XIX, a Dinamarca possuía ambiente propício para adoção da Ginástica nos moldes germânicos. Assim, Franz Nachtegall (1777-1847), professor de treinamento físico dinamarquês, sob a influência de Guts Nuths e Basedow, consolidou a Educação Física dinamarquesa. Baseando-se no sistema ginástico alemão, a experiência deste território escandinavo destaca-

como uma matéria escolar, promover cursos de treinamento de professores e a editar manuais

De maneira semelhante, a escola ginástica sueca surge na reação patriótica diante da perda de território para os russos, em 1809. Pehr Henrik Ling (1776-1838), teólogo sueco, inspirado pelo trabalho de Nachtegall, começa a utilizar a Ginástica na Universidade de Lung, na Suécia, como meio de instigar o então enfraquecido povo sueco. Escritor, Ling produziu

desenvolvimento da Educação Física em diversos países. Apesar de Ling dividir a ginástica em a militar, a médica, a pedagógica e a estética o sistema ginástico sueco mantinha forte traço médico e militar. Mesmo assim, é importante ressaltar que

natomia e fisiologia, desperta o interesse dos meios intelectuais, que acabam justificando, seja pelo idealismo ou pela razão, a necessidade de sua prática. (SOARES, 1994, p.74)

O método ginástico francês surge em contexto sensivelmente diverso dos sistemas até aqui descritos. Segundo Roberts (apud [...] se os inimigos da França napoleônica desenvolveram em seus países sistemas de ginástica que visavam a preparação física do povo para a guerra contra o domínio francês, na França não houve a mesma

Amorós y Ondeano (1770-1848), tenha introduzido e desenvolvido a ginástica com fins militares no período entre a derrota de Napoleão, em 1815, e a proclamação da II República da França, em 1848, a escola ginástica francesa evolui após 1871, ainda sob os efeitos da derrota na guerra franco-prussiana.

Inspirada nos valores liberais clássicos dentre os quais o direito à educação recebe destaque o sistema ginástico francês amplia o método alemão, propondo não apenas práticas

crianças e adolescentes alemães de 6 a 18 anos de ambos os sexos para os interesses nazistas. Organizando os jovens em grupos e milícias paramilitares, a disciplina presente no método ginástico alemão, base da Educação Física naquele país, contribuía à doutrinação dos jovens pelo Estado. Ver Bartoletti (2006).

que os ideais burgueses, esvaziados de sua essência revolucionária, encontram, então, no exercício físico sistematizado, instrumento privilegiado para a manutenção da sociedade capitalista.

Toda essa gama de qualidades físicas, psicológicas e morais seriam desenvolvidas e aprimoradas por este mágico conteúdo que, para além de desenvolver vida e, consequentemente, o melhoramento da espécie humana. Tudo isso seria conseguido sem alterar absolutamente nada em relação à ordem política, econômica possível aumentar a riqueza e a força, tanto a do indivíduo quanto a do Estado. (SOARES, 1994, p. 76)

Betti (1991) entende que os sistemas ginásticos europeus do século XIX, base institucional da Educação Física moderna ocidental, forjaram-se ao influxo de duas influências supostamente contraditórias: a do pensamento pedagógico e a do nacionalismo político. Todavia, as conjunturas locais, envoltas pelo sentimento patriótico e beligerante, fortaleceram o viés militar e utilitário das práticas ginásticas, em detrimento de preocupações mais teóricas sobre a formação integral dos indivíduos. A consequência do predomínio desta orientação manifesta-se na postura pedagógica autoritária, caracterizada por certas práticas militarescas43,

ainda presente na Educação Física atualmente.

A análise conjuntural também permite compreender como, na Inglaterra, o desenvolvimento racional das práticas institucionalizadas do exercício físico, bem como sua posterior sistematização, resulta no aparecimento do esporte moderno. Faz-se necessário considerarmos duas particularidades inglesas.

Primeiro, resguardada por privilegiada condição geográfica e forte poderio militar marítimo, a vantagem de não sofrer ameaças claras de invasões de território poupa os ingleses da preocupação em formar as massas para a defesa nacional. A disciplina militar, associada à obtenção do vigor físico e a rigidez moral, através das enfadonhas repetições dos exercícios baseados na Ginástica, não seduzia uma sociedade que, na vanguarda da Revolução Industrial, passava à margem dos problemas geopolíticos do continente.

Segundo, a partir do século XIX, em virtude das transformações socioeconômicas produzidas na Revolução Industrial, a reivindicação de maiores privilégios educacionais pela classe média emergente resulta na criação escolas públicas (Public-Schools). Com isso, aquela

43Compreendem àquelas práticas transplantadas da caserna e envolvem durante as aulas a cobrança de atitudes,

ações e comportamentos do ambiente militar, indo desde apenas uma postura mais autoritária do professor na condução diretiva das aulas, até, em alguns casos, o extremo da utilização de formações em filas e colunas, execução simultânea de exercícios, marchas e evoluções.

atividade física, baseada na prática esportiva, que era restrita à aristocracia inglesa antes do século XVIII, difunde-se entre a população industrial e urbana, dentro e fora das escolas.

Betti (1991) com base nos estudos sobre a história da Educação física, realizados por Eyler (1969) e Rouyer (1977), verificou o uso do uso do esporte não somente como uma

aristocracia inglesa, Betti (1991) e, diante dessa constatação, sugeriu a existência de uma relação entre o aumento do tempo de lazer induzido pela Revolução Industrial e o -se acessível às classes trabalhadoras inglesas depois de ter surgido para a classe média, em decorrência de conquistas trabalhistas. Por volta de 1870, os trabalhadores passaram a reivindicar e obtiveram

No entanto, o pioneirismo inglês na utilização do esporte como meio educacional só se efetiva tardiamente, pois as políticas em apoio à Educação Física nas escolas mantidas pelo Estado são adotadas apenas na transição entre os séculos XIX e XX. Inusitadamente, o século XX começa instaurando a dualidade de sistemas na Educação Física inglesa. Enquanto, na

escola primária, impõe- -se

empreendimento e bons oficiais [na Escola Pública], e através da disciplina e dos efeitos fisiológicos do exercício sistemático,

apud BETTI, 1991, p. 46).

Observa-se que desde o século XIX e, principalmente, durante o século XX, tanto a força econômica, quanto a hegemonia cultural exercidas pelas nações mais desenvolvidas da Europa, favoreceram a difusão da Educação Física europeia sistematizada nas escolas ginásticas e no esporte, e materializada nos manuais44 por todo mundo ocidental. Devido ao

subdesenvolvimento e à grande dependência econômica e cultural, essa influência se mostra mais contundente nas colônias, como, por exemplo, no caso específico do Brasil.

44De acordo com Rotger (1997 apud CHOPPIN, 2009, p. 72), "Resulta que podemos, na nossa cultura ocidental,

distinguir dois períodos na história do livro escolar ou do livro de texto: aquele que se reporta aos séculos XVI, XVII e XVIII, e aquele que está ligado às mudanças que são produzidas nos séculos XIX e XX. No primeiro período, aparece a imprensa e a tecnologia que o torna possível, assim como o ensino, a extensão e a oficialização das línguas vernáculas. O segundo está associado à renovação das técnicas de impressão e ao reconhecimento do livro escolar como instrumento de base da difusão e da organização democrática do ensino". Com efeito, os manuais ginásticos se difundem durante o segundo período mencionado pelo autor.

4.3 A Educação Física europeia chega ao Brasil: currículo escrito, ideias