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A ideia do gerenciamento dos riscos corporativos (em inglês “entreprise risk managment” – ERM) deslancha de fato a partir da década de 1990, com o crescimento

conspícuo de textos e normativos e técnicos tratando do tema. Power (2005) traça um diagnóstico das pressões convergentes, porém distintas que levaram ao aumento e disseminação do discurso do ‘ERM’, lembrando que as origens estão no controle corporativo50.

49 Ao cabo, “Em uma cultura e em dado momento, só existe uma epistéme, que define as condições de possibilidade de todo saber” (FOUCAULT, 1966, p. 179). A epistéme remete a um quadro referencial de pensamento, como aponta Koyré, ou seja, há um campo de pensamento que mostra como os saberes estão relacionados, por mais diferentes e diversificados que pareçam ser. Para Foucault, a epistéme de uma época não é a “soma de seus conhecimentos”, mas indica o “afastamento, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seus múltiplos discursos científicos” (FOUCAULT, 1972, p. 60). Este campo “indefinidamente descritível de relações”, este campo de saber possível de uma dada época, possibilita apontar para a relação entre a concepção da Microfísica e a nova abordagem sobre o poder realizada por Foucault (Tradução literal de POWER, 2011).

50 Para um aprofundamento das discussões sobre as transformações em curso no campo organizacional ver ZILBOVICIUS, 1997 e GRÜN, 1999.

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A primeira pressão, de acordo com Power, Davis e Kim (2015), está relacionada a uma mutação do conceito de “shareholder value” (valor para o acionista) em ‘ERM’, que envolve um aumento, tanto institucional quanto técnico, no mensuramento da dimensão risco e da relação risco-retorno sobre o valor do acionista. A segunda fonte de pressão emerge da revolução que a Governança Corporativa (GRÜN, 1999; 2003) promove no início da década 1990 e da formalização da ideia de controle interno – que se torna o exemplo de uma “boa organização”.

Estas duas fontes de pressão expressam a retórica positiva embutida neste “novo gerenciamento do risco” em que os ideais de maximização do valor para o acionista se reconciliam com os objetivos societais para uma boa governança corporativa e alocação mais eficiente de capitais e um mercado de capitais mais ordenado (POWER, 2000 citado por POWER, 2005). Assim, ERM passa a ser definido como:

[...] a process effected by an entity’s board of directors, managment and other personnel, applied in strategy setting and across the enterprise, designed to identify potential events that may affect the entity, and manage risks to be within its risk apetite, to provide reasonable assurance regarding the achievement of entity objectives (COSO, 2003: p.3 citado por POWER, 2005: p.251).

Alinhada a este movimento de disseminação das boas práticas de gestão do risco, ainda na década de 1980 tem início um movimento coletivo das reguladoras de títulos das Américas do Norte e Sul, lideradas pela SEC, com a disposição de se criar uma associação regional interamericana com corpo de cooperação internacional, culminando com a criação da International Organization of Securities Commissions (IOSCO) em 198351. Em 1998 ocorre

a aprovação de um conjunto abrangente de objetivos e princípios do Regulamento de Valores Mobiliários (Princípios da IOSCO), agora reconhecidos como os marcos regulatórios internacionais para todos os mercados de valores mobiliários.

51 Neste primeiro momento 11 agências estavam reunidas na IOSCO. Um ano depois, os reguladores de valores mobiliários de França, Indonésia, Coréia e Reino Unido tornam-se as primeiras agências não americanas a se unirem à nova organização. Em julho de 1986, IOSCO realizou a sua conferência anual em Paris, o primeiro fora das Américas e onde os membros concordaram em criar uma Secretaria Geral permanente.

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A unicidade promovida pela criação desta instituição, não apenas aproximou reguladores mobiliários situados em distintos níveis de desenvolvimento, mas também estabeleceu um novo espaço unindo culturas diferentes e historicidades diferentes. Obviamente se trata de pessoas, representantes de Estados, agindo a partir de perspectivas distintas, com pesos e poderes diferenciados, com propósito de objetivar suas interpretações e alcançar diferentes conclusões. Os efeitos dos consensos elaborados não são necessariamente passiveis de incorporação pelas sociedades e Estados.

Em primeiro lugar, para que se mantenham no campo do poder, a narrativa das agências precisa se sustentar em um aparato que lhe dê sentido e legitime suas ações. Na verdade, é a governança corporativa, considerada o artefato cultural por excelência, a responsável pela imposição da lógica financeira nas sociedades modernas, das quais as agências obtêm este respaldo legítimo (GRÜN, 2003, 2010, 2016).

Dito de outra forma, duas frentes de análise são importantes para pensar este fenômeno. A primeira relacionada a esta nova forma de dominação cultural das finanças trabalhada por GRÜN (2004a, 2004b). A segunda relacionada a imbrincada relação que as agências criam com Estado e Governos na assimilação e institucionalização desta nova lógica.

Pode-se pensar que este crescente fenômeno, a governança financeirizada, tem gerado uma tensão entre estabilidade política e ganho financeiro e as agências de rating como agentes críticos na fomentação desta batalha (SINCLAIR, 2005; Goodman, 1968, citado por POON, 2013). Mas este fenômeno não é tão óbvio e não se faz de modo tão simples como alguns autores tendem a pontuar. Trata-se de um dispositivo refinado, gradualmente constituído, mas que não deixa de ser vigoroso e que, ao realizar um casamento harmonioso com “governança corporativa” (GRÜN, 2013), - torna-se mais complexo do que arranjos de controle anteriores.

The effect “on national policy autonomy” is an affront to state sovereignty, a breach that is only exacerbated in countries “where the rating agency is not domestically owned and controlled” (Sinclair 2005: 119). This balance of power was captured in Friedman’s infamous 1995 quip: “We live again in a

94 two-superpower world. [. . .] The U.S. can destroy a country by leveling it

with bombs; Moody’s can destroy a country by downgrading its bonds” (Friedman,1995). Friedman’s somber advice to politicians the world over: “Don’t mess with Moody’s (POON, 2013:285).

A contribuição de Foucault (2003) é fundamental para pensarmos como operam estes dispositivos no mundo das finanças. O primeiro passo é descartar a concepção tradicional de poder, baseada na noção de interdição, de negatividade, como próprio Foucault o fez (AVELINO, 2010), justamente por não se mostrar suficientemente robusta como lente para enxergar e descrever as práticas no mundo moderno.

[...] conduziu a uma crítica extremista do poder – visto segundo um modelo repressivo – pela esquerda [...]. Uma análise fechada das disciplinas oposta às teses marxistas da exploração econômica como princípio para compreender os mecanismos do poder não era suficiente, e reclamou a investigação de problemas globais de regulação e ordem na sociedade, bem como as modalidades para a conceitualização deste problema. Daí a questão do governo – termo que substituiu gradualmente a noção de “poder”, considerada por Foucault uma palavra muito ambígua (Pasquino,1993, p. 79 citado por AVELINO, 2010: p.141).

A estratégia empregada por Foucault, agora aplicada neste trabalho, foi a busca de uma nova terminologia para olhar e descrever as relações contemporâneas – definida por governamentalidade. Neste processo de construção, Foucault chama a atenção aos equívocos e incúrias – que em geral levam a intercambiabilidade entre as noções de poder e dominação. Fundamentalmente, não se deve reduzir as relações de poder às formas de dominação. É preciso fugir das concepções ordinárias e pré-acabadas, “[a]os esquemas prontos” (FOUCAULT, 2003), muito comum aos anos 1970, que induzem a uma associação imediata entre a palavra poder e “uma estrutura política, um governo, uma classe social, no mestre diante do escravo, etc” (FOUCAULT, 2003).

Propõe, ao contrário, certo número de precauções de método. Insiste, por exemplo, em não tomar a dominação que o poder pretende perenizar como “fato maciço de ‘uma’ dominação global de uns sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro”, mas percebê-la como “múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade”. A dominação

95 não deve ser compreendida como “o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas”; não é “a soberania em seu edifício único” que a sustenta, mas são, sobretudo, “as múltiplas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social” (FOUCAULT, 2001 pp. 31-32 citado por AVELINO, 2010: p. 142).

Uma das estratégias foucaultianas no desenvolvimento de sua construção analítica é a invocação da chamada “hipótese Nietzsche”, ou seja, a disputa, a guerra, a luta, o enfrentamento é tomado como princípio e motor do poder político nas sociedades (AVELINO, 2010). Em grande medida essa proposição flerta com as disposições bourdiesianas, nas quais o campo de produção de conhecimento e verdades é um campo de lutas, tal como afirma Bourdieu (2013):

A história social da produção do homem que se realiza por meio da luta pela produção da verdade sobre o homem é uma forma – senão a forma por excelência – do conhecimento de si. E a genealogia do conhecimento encontra seu prolongamento lógico numa “genealogia da moral”. Explorar de um lado os limites sociais do conhecimento ou, o que dá no mesmo, as condições sociais de possibilidade do conhecimento – notadamente do mundo social – que nos fornecem os “saberes-poderes” e as disciplinas, explorar de outro lado os limites sociais da moral, a gênese histórica desse “sujeito” que o antropocentrismo da filosofia clássica aceitava como um começo absoluto: eis aí duas realizações da mesma intenção crítica. Nos dois casos, a reflexão sobre o limite introduz uma reflexão sobre os limites da reflexão (BOURDIEU, 2013:6).

Nessa passagem é possível notar, tanto em Foucault (2003; 2008) quanto em Bourdieu (2013), uma mesma disposição metodológica: a despeito de cada caso é fundamental a definição dos agentes em luta, o que está em disputa, como ela desenrola, o tempo e o lugar e com quais instrumentos e de acordo com quais racionalidades esta luta está se dando. Tal concepção aparece bem desenvolvida e refinada nos trabalhos de GRÜN (2003; 2004a, 2004b, 2005a; 2007, 2008a, 2008b, 2009, 2010, 2013) em sua concepção de “Guerra Cultural”.

Em síntese, trata-se de tomar a noção de poder não como um vetor, mas como um campo múltiplo e móvel de correlações de forças, em que se produzem efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis de dominação (FOUCAULT, 2003). Nesta chave explicativa,

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a concepção de uma financeirização (DAVIS, KIM, 2015) ou usando a concepção de dominação cultural das finanças (GRÜN, 2007), propiciam a resignificação deste novo ferramental de controle: as métricas e classificações de risco. As noções de governança corporativa e sharehold value são outras dimensões chave deste mesmo fenômeno.

Se este novo dispositivo sintetiza as pressões para o exercício do controle contábil e financeiro e transparência, na medida que passam a avaliar e classificar o próprio Estado, passam a encarar uma situação conflituosa entre os interesses dos gestores públicos e agentes dos mercados: “Linking ratings to capital requirements in Federal law had been a measure to protect “investors”; however, linking ratings to interest payments on government bonds was costing ‘citizens’ Money” (POON, 2013: p. 281).

Diante desta cultura, deste “financescape” governado pelos ratings restaria, para as organizações dependentes de crédito, reconhecer as práticas contábeis e gerenciais, que trazem em sua essência um conjunto de valores que caracterizam um regime cada vez maior de controle financeiro (POWER,2005). Ou seja, simplesmente admitir que, por meio dos ratings, os governos também são confrontados pela ambiciosa lógica financeira, com seus juízos de investimentos onipresentes e avaliações.

Uma leitura possível diria que este é o ponto crítico ao qual se escancara a polarização entre os interesses dos mercados e Governos, na qual uma primeira situação trata de impor prudência financeira em benefício de um bem maior: a estabilidade das forças de mercado – e a proteção do patrimônio privado (rule of law) – desembocando em uma segunda consequência, que pode ser encarada como um entrave ao bom funcionamento democrático da sociedade com a inviabilização de políticas públicas na medida que vultuosos volumes de recursos são dispendidos para amortização de dividendos.

O downgrade norte-americano em 2011 escancarou este debate – principalmente entre intelligentsia americana - e mostrou que se trata de uma questão mais complexa e conflitante do que se supunha; ainda mais quando descemos ao nível cognitivo dos agentes – gestores públicos – socializados em uma cultura específica e dotada de discurso próprio. Sob a perspectiva de um gestor público, o apelo ao aos ratings e às ferramentas “embutidas

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no pacote” podem não surtir efeito, ou mesmo fazer sentido, por ter de desviar montantes de recursos financeiros para pagamentos de juros em detrimento de serviços sociais básicos (GOODMAN, 1968: p. 59, citado por POON, 2013: p.281), do ponto de vista econômico, trata-se de uma externalidade negativa ao bem-estar social, com um custo social elevado. O fato é que surge uma condição nova e altamente instigante das agências de classificação de risco: elas passam a se valer da condição de mestres do discurso, dispondo de um trunfo formidável de poder, que é o de fazer crer aquilo que dizem. Sua autoridade, inclusive supra estatal, lhes permite dizer e fazer como verdadeiro aquilo que lhes interessa. Parafraseando Bourdieu (2014), ao fazer crer que é verdade para os que têm o poder de fazer existir o verdadeiro (os poderosos), as agências podem tornar real aquilo que dizem. Contam com a parametragem como discurso de âmbito universal e dispõem da capacidade profissional de fornecer razões, ou melhor, de converter evidências em arrazoados, pelo apelo a princípios universais, pelo recurso à história, aos precedentes, aos arquivos, à casuística e às demais fontes da jurisprudência. A construção do Estado se revela, portanto, indissociável da emergência de corporações que nele se enraízam (BOURDIEU, 2014).

2.4 Perspectiva ideal e discurso oficial: os motivos pelos quais estados soberanos usam