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Tomados pelos constructos epistemológicos de Weber (1991) e inspirados na leitura crítica de Boltanski e Thévenot (2006), pode-se assumir que Estados Soberanos, tal como indivíduos e instituições passam a fazer uso de ‘orientações’ (Weber, 1991), ou justificações (Boltanski&Thévenot, 2006) de modo a expressar as relações de acordo e discórdia sem recorrer a violência física; e, os modos pelos quais são construídas essas relações produzem acordos mais ou menos duradouros.

A modernidade ocidental não só deriva da diferenciação da economia capitalista e do Estado, mas também de uma reordenação racional da cultura e da sociedade. Interessa a estes propósitos que as denominações de Weber sobre a racionalidade formal são constituídas pelas convenções em torno da calculabilidade e predicabilidade dos sistemas jurídico e econômico. A racionalidade formal está presente, por exemplo, em aparelhos como o contábil e o burocrático que implica regras, hierarquias, especialização, treinamento.

Em um mundo de incertezas, pluralidades, discórdia e assimetrias, cabe a essa lógica racional restituir a forma simétrica e pacificada. Ocorre que, a intervenção dessa ordem de justificação, performática, inspirada na racionalidade formal, adere fortemente em especial daqueles inseridos nas comunidades financeiras (sejam elas públicas ou privadas). Há, sem dúvida, ocorrência de posições institucionais e de interesse competindo por uma relativa autonomia e dominação do espaço, mas essa competição está mais centrada na forma, ou

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seja, nas dimensões e critérios que descrevem e explicam logicamente os fenômenos, e menos na dimensão valorativa intrínseca aos modelos.

Bill Maurer has recently argued that leaving intact ‘the black box of the mathematical model’ endows financial derivatives with ‘indexical power,’ understood as their ‘power to point towards and refer to the truth value of some other phenomena’ (2002: 29; cf. MacKenzie 2001). In other words, the representation of the mathematics behind derivatives and financial risk- modelling as ‘beyond culture . . . allows derivatives to take on their putative stability as financial entities’ and grants them power as economically logical instruments that refer unproblematically to probabilities in the real world (Maurer 2002: 19–20). Instead, Maurer agues, it is necessary to recognize the religious and moral history of financial mathematics and understand that the stochastic models which underpin derivatives are a modern (and poor) way of dealing with ‘radical contingency’: ‘[T]he stochastic side of the coin is . . . inseparable from religion, and contemporary invocations of Lady Luck in Las Vegas and grain futures on the Chicago Mercantile Exchange are merely variations on the character of the unknowable’ (2002: 29 citado por GOEDE, 2004: 199).

Essa característica, de uma ordem apaziguada entre os agentes de mercado em uma relação de interação entre vendedores e compradores que envolve obviamente as dimensões de disputa e troca, cria aquilo que Vargha (2013), extrai da tese etnometodológica de Garfinkel (1967): a interação das partes produz uma ordem moral da situação, mesmo que esta interação possa se tratar, objetivamente, de uma disputa de interesses.

Um breve paralelo pode ser feito com o espaço acadêmico. Há uma homologia estruturante que enquadra o espaço científico nessa mesma lógica performática de disputa presumida e apaziguada por um conjunto de padrões e convenções de métricas de avaliação. Ainda que mantenha o aspecto principal da forma, este conjunto só se torna de fato legítimo ao envolver em sua consecução uma elaboração de demonstrações factíveis. Do ponto de vista científico, são as provas. O propósito está centrado na digressão de convencer a audiência, mas, mais ainda em recrutar novos membros “para a causa”:

The Social Studies of Science have described how specialized experts in science prove theorems to other experts and to lay audiences (Latour 1988;

48 Livingston 2005; Rosental 2008). Separately, sociologists have been

interested in how salespeople are exploited by standardization (Leidner 1993; Ritzer 1995) and in turn, how salespeople exploit social conventions, psychological mechanisms, and thereby consumers (Cialdini 1993; Goffman 1959). But in neither field has interaction been studied as the confluence of the two aspects: expert “transmission” that is at the same time an effort to sell. The dictionary, too, distinguishes two main meanings of demonstration: “an act, process, or means of demonstrating to the intelligence: a (1): conclusive evidence: PROOF (2): DERIVATION b: a showing of the merits of a product or service to a prospective consumer” (Merriam-Webster Online 2012). I suggest that at least in the case of finance, both definitions refer to one and the same act VARGHA, 2013: 35)

Duas adições importantes devem ser contabilizadas ao debate. Em primeiro lugar, há que se atentar para o efeito despolitizador da modelagem matemática, seja no espaço das finanças, seja no ambiente escolástico: o aumento da abstração matemática, e o interesse pela essência da forma, carregam o debate e as narrativas para além da compreensão do debate público. Em segundo lugar, há nessa soma um efeito rentável da modelagem matemática: as metrologias e modelos estocásticos podem ser uma maneira despretenciosamente vazia de lidar com as contingências, mas tornaram possível a comercialização altamente lucrativa, por exemplo, das métricas de classificação de riscos no espaço das finanças.

E são justamente esses alguns dos pontos que esta pesquisa também se esforça para tocar a fundo – a disseminação e legitimação de pressupostos normativos relativos à natureza, tempo e calculabilidade da noção de risco financeiro. Uma maneira de questionar a "grande ciência financeira", é fornecer uma perspectiva genealógica, histórica e culturalmente situada, que demonstre, por exemplo, a contestabilidade inerente aos compromissos normativos sobre a definição, mensuração e gerenciamento de risco financeiro moderno.

Foi realizado um levantamento não exaustivo, mas que ilustra de modo minimamente satisfatório, os esforços de parte da comunidade científica, especialmente entre economistas, estatísticos, matemáticos e atuários em firmar um campo de estudos especializado no aprimoramento das formas de controle e mensuração de riscos no espaço

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financeiro; ao mesmo tempo acenando para as preocupações oriundas da propagação de uma maior interdependência dos mercados e de um crescente contínuo de operações financeiras em nível internacional, operando em complexos sistemas computacionais interligados.

Embora no século XVIII não existisse uma distinção conceitual precisa entre, por exemplo, jogos de azar e as práticas financeiras16, pois ambas eram estratégias para lucrar

com um futuro incerto, foi com o conceito de risco que se assentou a possibilidade de uma linha de demarcação menos nebulosa entre jogos e finanças (HACKING, 1975; 1990)17. Os

riscos passam a ser identificados como naturais, por um lado, mas humanamente calculáveis por outro, e, portanto, proporcionando legitimidade política e moral para uma variedade de instrumentos financeiros, incluindo contratos futuros e outras negociações especulativas.

O escopo mainstream de pesquisadores dos campos da economia, matemática e estatística que se dedicam aos estudos das finanças contemporâneas – e que não por acaso, possuem um “núcleo duro” epistemológico comum – propõem que a noção de risco tenha uma denotação específica, ou seja, a probabilidade de não obter o retorno esperado em um investimento realizado. Em termos estatísticos, pode ser definido como a própria variância do retorno. Isto significa que quanto maior a amplitude do desvio, maior será o resultado exigido para compensar o risco assumido (CAPELLETTO, CORRAR, 2008). Nesta

16 As metáforas são sem dúvida dotadas de poderes históricos e epistemológicos. A perspectiva analítica da qual esta tese é tributária assume a importância das metáforas como artefatos culturais e históricos, mas que não se encerram em si. Dessarte, “toda metáfora é um relato figurado; o que se ganha em consciência perde- se em precisão conceitual” (ORTIZ, 2000), e certamente, as metáforas são exemplos interessantes de como se transmuta e reconcilia o estranho para o familiar, ou seja, elas nos fornecem um sketch de uma realidade ainda não suficientemente cristalizada, reconhecida e codificada e, portanto, ainda em disputa (GRÜN, 2010). 17 Sobre esse debate em torno de uma distinção conceitual entre jogos de azar e práticas financeiras no século XIX ver a produção da pesquisadora Marieke de Goede (2004). A autora tem o grande mérito de oferecer uma construção condensada, porém ricamente explorada e bem ilustrada dos obstáculos à legitimidade das práticas financeiras. Subjacente ao trabalho está, por exemplo, as tensões suscitadas em relação aos especuladores profissionais. Ainda no século XIX se intensificaram as acusações de que eram apostadores. O argumento animoso que pesava contra tais indivíduos, nada mais era senão que suas recompensas vinham sem esforço ou trabalho árduo, lucrando com o trabalho dos outros, particularmente os agricultores (GOEDE, 2004).

Na contemporaneidade, como parte dessas críticas, ainda reverbera com frequencia a comparação entre especulação e jogo de azar. Adere à essa retórica as ideias de que a maioria dos especuladores financeiros compram e vendem promessas, deslocados de uma base produtiva. Há também a culpabilização das especulações finaceiras como as grandes produtoras de desigualdade de renda.

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chave, a negociação do spread soberano, implica que o mercado está “quantificando o risco de crédito desse país e, portanto, atribuindo expectativas quanto à trajetória futura da capacidade de pagamento do país medida através de seus fundamentos econômicos” (MOREIRA et al, 2008: p.12).

A rotinização da mensuração e a divulgação de informações promovem a difusão de uma linguagem comum em torno destas categorias analíticas construídas pelas estatísticas e ajuda a estabilizar e corporificar uma realidade a primeira vista pictórica, descrita fundamentalmente pelos dados. Trata-se, portanto, da objetivação de percepções e avaliações, sintetizadas em um conjunto definido de signos, resultando na criação de uma nova forma de transmissão e comunicação que definitivamente não se encerra em si. Podemos supor que no mercado de bens linguísticos, as estatísticas, ratings ou escalas e modelagens se tornaram a língua franca, o ‘idioma’ legitimado pelos mundos científico e estatal, e positivamente incorporado pelo campo das finanças como um bem cultural (DESROSIÈRES, 2008).

Desta analogia entre as estatísticas enquanto língua18, ou seja, desta capacidade de

traduzir o mundo em um conjunto de signos compartilhados, há uma dimensão que dificilmente pode ser esquecida: a língua só tem a função de ser franca e não há essência em si mesma (SAUSSURE, 1969; LABOV, 2008; ORTIZ, 2015). Em outras palavras, o arbitrário cultural do signo só nos permite pensar em termos relacionais, ele não existe em abstrato. A língua é, portanto, a manifestação, a materialização de uma cultura em determinado tempo e espaço, logo também pertence ao domínio da história (SAHLINS, 1990). Como não existe apenas como estrutura, é necessário contextualizar seu uso. e são as situações concretas que determinarão os domínios em que este dispositivo cultural se desenvolverá (ORTIZ, 2000).

18 Ortiz (2015) esclarece a distinção que linguistas fazem em relação à língua e linguagem. Tomando Saussure para elucidar sua proposição, nos lembra que linguagem diz respeito à uma capacidade inerente à condição humana, ao passo que língua é “o conjunto de formas concordantes que este fenômeno assume numa coletividade de indivíduos e numa época determinada” (SAUSSURE, 2004 citado por ORTIZ, 2015: p.16).

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Tal constatação, além de permitir a fuga de uma possível leitura ontológica ou normativa do fenômeno, abre a janela de compreensão sociológica a partir da clássica pista durkheimiana da transformação da morfologia social (GRÜN, 2008), questiona o contexto histórico que permitiu a maturação da crença nesta ‘língua’, do campo teórico, dos métodos, e fundamentalmente das disputas que a conformaram, bem como das novas categorias explicativas que passam a se vincular a ela, alterando o estatuto do pensamento social.

Nos termos desse raciocínio, poderíamos avançar sobre o caso das recentes crises econômicas e financeiras. Nesse argumento, grande parte destas produções científicas, e think tanks influentes, são percebidos num primeiro plano como resultado do efeito nocivo de um sistema liberalizante e pouco atento aos instrumentos de classificação, fiscalização e controle. Por outro lado, em menor escala, também pipocaram ordens discursivas, autonomeadas libertárias, que propõem uma virada de sentido nessa construção. No viés de alguns desses think tanks liberais (como a Cato Institute) a leitura prevalecente é de que os mercados estão tão atravessados e ‘poluídos’ por muitas instituições disputando com Estado a primazia pelo controle e fiscalização, que o empenho nessas disputas paralelas ganha tamanha autonomia que o sentido inicial de controle se perde, produzindo efeitos nocivos e disfuncionais aos mercados.

Convergentes ou não, o mais instigante em todos os casos é a primazia da narrativa em torno dos dispositivos de avaliação e controle. Seja a favor ou seja contra, há presente um imperativo dessa narrativa, especialmente, após eventos de crise e instabilidade o reforço de um ordenamento discursivo, público, de reforço ao controle, mas também de repressão aos produtores e consumidores dos mercados financeiros (FRIEDEN, 2016) que assumam exposições acima de standards19, ou seja, métricas e padrões convencionados

que estabelecem as noções de segurança e perigo. Aceitar disposições acima dos standards passa a implicar objetivamente a aceitação do risco e dos perigos aos governos, mas também a própria continuidade de instituições financeiras e mercados (OECD, 2004,

19 A definição dos limites ou patamares aceitáveis, os standards, também se tornam objeto de discussão e disputas entre agentes envolvidos nos mercados.

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2005,2007,2008,2009). Por si, essa se torna uma evidência robusta que dá mostras do exercício de uma a governança20 das métricas. O debate em torno da noção de risco no

espaço econômico financeiro tende a se complexificar quando esferas paralelas e autônomas, como taxa de juros, câmbio, liquidez e, mais recentemente até a ideia de risco operacional ingressam na massa de critérios que forjam a percepção dos especialistas sobre as métricas e standards.

O fato é, independentemente do nível de complexidade e sofisticação dos sistemas, caminhamos para a instauração de novos dispositivos que não apenas reúnem um corpus de conhecimento, mas que estabelecem convenções cognitivas sobre como pensar economia e finanças, e, fundamentalmente também política e questões sociais – que vão desde a elaboração de projetos políticos macroeconômicos, do modo como os mercados são regulados e fiscalizados, até mesmo na gestão da economia doméstica em âmbito familiar (DAVIS, KIM, 2015). E a eficácia dos dispositivos reside justamente em criar uma comunicação média que perpassa e atinge o imaginário de distintas unidades sociais.

É precisamente da tentativa de apresentar um tratamento epistemológico a essa intervenção arbitrária que se exerce sobre Estados e mercados – a elaboração de uma representação do risco de crédito soberano. Por representação de risco de crédito soberano se quer dizer um modelamento, uma espécie de língua franca, produto disputado por distintas ordens culturais e políticas locais - em competição e cooperação - em busca de otimização de suas performances e resultados que marca as dimensões teórica e empírica deste trabalho. Onde os efeitos das notações produzidas pelas agências de classificação de risco de crédito, ao menos nesta primeira aproximação, mostram-se

20 Em paralelo a ideia de Governamentalidade que penetra a tese central deste trabalho, cabe ressaltar o uso que se faz do termo ‘governança’. Baseada na definição desenhada por Kruck (2011), o trabalho assume uma interpretação especifica do conceito. Ou seja, ele diz respeito aos mecanismos propositivos que orientam os sistemas sociais para seus objetivos. Estes mecanismos podem assim ser entendidos como processos de criação e implementação intencional de ordem política, isto é, sistemas de regras que facilitam a coordenação e a cooperação de atores sociais e, ainda, determinar a distribuição dos custos e benefícios da ação coletiva. Em termos mais restritivos, pode ser considerada uma ação coletiva que reivindica autoridade e tem como objetivo lidar com problemas comuns e produzir bens públicos. A governança, deste modo, trata da identificação de abordagens promissoras e sustentáveis para resolver problemas societais, traduzindo essas abordagens em regras de conduta, assegurando a adesão a essas regras e, quando necessário, ajustando essas regras às circunstâncias em mudança.

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eficientes artefatos simbólicos, especialmente na produção de uma governança financeira global. A alquimia instituída nas notações e ratings, ao que parece, transcendem a necessidade de agudas intervenções regulatórias ou sanções econômicas por parte de outras nações ou instituições multilaterais.

Assim, essa síntese, expressa de modo esquemático sobre o debate em torno da noção de risco nas ciências sociais e exatas, pode parecer por ora uma obviedade, desfocada da real preocupação do trabalho. Contudo, a coleta e sistematização de uma ampla literatura em torno das delimitações de fronteiras sobre o termo e o mapeamento de tentativas de elaborações mais sofisticadas conformaram parte importante da fundação da tese. Com esse ferramental foi possível lapidar o prisma pelo qual a noção de risco de crédito soberano, foi construída, observada e analisada.