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2. O BRASIL E A GRANDE GUERRA

2.1. UMA GUERRA EUROPEIA?

2.1.3 A Grande Guerra e a América Latina

Na época da Grande Guerra, das vinte nações da América Latina, oito declararam guerra contra a Alemanha: Brasil, Costa Rica, Cuba, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua e Panamá. A Bolívia, o Equador, o Peru, a República Dominicana e o Uruguai decidiram romper relações diplomáticas com aquele país. Salvador114, por sua vez, declarou-se em neutralidade benévola em favor dos Estados Unidos, permitindo o uso de seus portos e águas pelos navios dos norte- americanos e Aliados. As seis nações restantes (Argentina, Chile, Colômbia, México, Paraguai e Venezuela) permaneceram neutras até o fim do conflito115. Os posicionamentos de rompimento ou de declaração começaram a ser tomados por estes países somente após 1917, entretanto, a guerra iniciada em 1914 foi envolvendo progressivamente a América Latina.

Para além dos aspectos diplomáticos, a guerra também mobilizou os latino- americanos. Muitos deles, preocupados com o destino e a situação dos cidadãos europeus, criaram uma rede de apoio material e pecuniário que enviava ajuda para a Europa. Curiosamente, a situação encontrada aqui se alinha muito com a noção de “fronts invisíveis” criada por Gérard Canini. Canini116

aponta que, para além das batalhas que se realizavam dentro das trincheiras, existiam, também, “os fronts

112

Para mais detalhes sobre a entrada do Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial e, especialmente, sobre o episódio do telegrama Zimmermann ver TUCHMAN, Barbara W. O

Telegrama Zimmermann. Rio de Janeito: José Olympio, 1992.

113

MOUGEL, François-Charles; PACTEAU, Severine. História das relações internacionais

Séculos XIX e XX. Portugal: Publicações Europa-América, 2009. p. 60.

114

Atual, El Salvador.

115

BARRETT, John. Latin America and the War. Special Memorandum. Washington: Pan-American Union, 1919. p. 3.

116

CANINI, Gérard. Les front invisibles. Nourrir-Fournir-Soigner. Nancy: Presses universitare de Nancy, 1984.

invisíveis”117. Estes fronts eram aqueles que mobilizavam uma grande quantidade de pessoas para promover assistência aos grupos beligerantes. O “front invisível” que se localizava, por vezes, distante dos combates, se dedicava a três tarefas principais: alimentar, abastecer e cuidar. As complicadas tarefas de alimentar, abastecer e cuidar de milhões de soldados ficavam mais difíceis a medida que a guerra avançava: cada vez mais homens eram mobilizados e, com isso, surgia a necessidade de consumir mais recursos e produtos. Mais homens exigiam mais cuidados.

Mesmo esta ideia de um front estendido não está presente em grande parte da nova literatura no que diz respeito à América Latina. Mesmo assim, sabemos que países latino-americanos colaboraram com esta tríade (alimentar, abastecer e cuidar) através de algumas ações pontuais. Participaram, em alguma parcela, subsidiando com alimentos, matéria-prima ou dinheiro os horrores da guerra e, também, os cuidados com feridos. Jornais locais demonstram que já no primeiro ano da guerra, demonstram o impacto da guerra na região sul do Brasil, nos países vizinhos, e também a mobilização da população para levantar dinheiro para auxiliar os necessitados europeus. Estes auxílios foram arrecadados por imigrantes de países em guerra, clubes sociais (étnicos ou não) e casas de comércio. Não pretendemos afirmar que a América Latina sustentou a guerra do outro lado do Atlântico. Entretanto, não é possível negar o papel, mesmo que pequeno desempenhado por estas ações. Neste mesmo sentido, Philip Dehne, no artigo “How important was Latin America to the First World War?”118, a partir de uma perspectiva da guerra econômica e da alimentação, reforça o papel do abastecimento das tropas com forte apoio dos países latino americanos. Para o autor “A América Latina desempenhou um papel importante ao permitir que os Aliados mantivessem suprimentos razoáveis, particularmente no ano crítico de 1918”119. O ano de 1918 ficou conhecido pelas fortes ofensivas alemãs que avançavam pelo território francês. O papel da economia latino-americana para prover alimentos foi importante naquele contexto: “a comida latino-americana melhorou tremendamente a capacidade das forças armadas e sociedades britânicas e francesas de resistir às ofensivas alemãs

117

No original, “les front invisibles”.

118

DEHNE, Philip. How important was Latin America to the First World War? Iberoamericana, Berlim, Vol. 14, Núm. 53, p. 151-164, 2014.

119

Tradução livre de “Latin America played a big role in allowing the Allies to maintain reasonable

durante o crucial ano final da guerra”120. No caso brasileiro, foram veiculadas, sistematicamente, notícias relacionadas à guerra e que afetavam o dia-a-dia da população, inclusive do Rio Grande do Sul. Algumas notícias, em outubro de 1914, já tratam do envio de banha e charque enlatado provenientes do estado para países em guerra121. O carvão, por sua vez, era um bem essencial para a guerra, devido a sua importância para a indústria bélica, baseada em fundição de metais, e também para alimentar navios. O conflito, que se tornou industrial, exigia cada vez mais este produto. Em 1914, os argentinos, por sua vez, comercializavam carvão e víveres com navios alemães o que causou certo embaraço junto as autoridades diplomáticas aliadas122, uma vez que, oficialmente, a Argentina mantinha-se neutra. Existem, ainda, relatos do aquecimento de vendas de carvão de pedra das minas gaúchas de São Jerônimo para o mercado externo.

Os horrores da guerra ainda mobilizaram cidadãos, associações e até casas comerciais a organizarem eventos para arrecadar fundos para “cuidar” de feridos na Europa. A documentação diplomática apresenta, através de notas, telegramas e cartas enviadas para o Ministro francês Paul Claudel, inúmeras ações de assistência realizadas através de bailes, festivais, missas ou campanhas. Na documentação analisada, é possível perceber envio de auxílio pecuniário e material de cidades brasileiras para os aliados da França em guerra. Belgas, franceses, sérvios, russos, italianos, portugueses, ingleses, todos estes receberam auxílio de seus compatriotas que viviam no Brasil ou mesmo de cidadãos brasileiros123.

Nas regiões com grande concentração de imigrantes, seja do lado dos Aliados ou dos Impérios Centrais, as comunidades se organizavam em apoio aos seus companheiros étnicos em conflito. Em Porto Alegre, na Rua dos Andradas, a “Casa Coates” realizou campanha de arrecadação com lucros a serem convertidos em prol dos belgas que haviam sido invadidos pela Alemanha124. Conforme Antonio

120

Tradução livre de “Latin American food tremendously improved the ability of the British and French

militaries and societies to resist the German offensives during the pivotal final year of war”. Cf. Ibid.

121

XARQUE para a Europa. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 out. 1914. Não paginado.

122

TELEGRAMMAS. Correio do Povo, Porto Alegre, 18 out. 1914. p. 1

123

Conforme documentação diplomática do Archive Diplomatiques de Nantes: Rio de Janeiro Legation. Série A 573PO-A 238.238/3; Rio de Janeiro. Legation. Série A 573PO-A 238.238/4.

124

SOLIDARIEDADES. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 out. 1914. p. 3. Nesse sentido, no município de Caí, no Rio Grande do Sul, o salão Turner Verein organizou, em outubro de 1914, uma confraternização em benefício da Cruz Vermelha Austro-Alemã. Cf. PARA a Cruz Vermelha Allemã.

de Ruggiero, os ítalo-brasileiros organizaram-se em comitês (o mais conhecido era o Comitê Pró-Patria), arrecadando “forte contribuição pecuniária” em toda a região colonial. A colônia italiana possuía também sua própria organização de assistência étnica: a Cruz Vermelha Italiana, que tinha como delegado Carlo Lubisco125.

Outra contribuição da América Latina para o conflito ainda não totalmente explorada ou estudada foi a adesão de voluntários deste lado do Atlântico. De acordo com Michäel Bourlet, os voluntários latino-americanos no exército francês se enquadravam em duas categorias: existiam aqueles de origem francesa que habitavam nas américas e aqueles de nacionalidades latino-americanas. Assim, para aqueles que possuíam admiração pela França, a Legião estrangeira era uma opção de engajamento. Os números não são precisos, mas o engajamento de voluntários latino-americanos não atingia mais do que algumas centenas nos primeiros anos da guerra, incluindo brasileiros126. Em toda a América Latina, os imigrantes voluntários aderiram aos exércitos de suas pátrias que entravam em guerra. No caso do Brasil, “pode-se dizer que foram cerca de 12.000 no Brasil inteiro os jovens que se apresentaram às armas”, em sua maioria, provenientes de São Paulo127.

Apresentamos aqui, brevemente, através da noção de um “front invisível”, alguns elementos que apontam que a Guerra não era somente “europeia”; percebe- se que ela afetava e envolvia, indiretamente, os países latino-americanos mesmo antes de qualquer declaração de guerra ou de neutralidade assumida por estes. Assim, seria possível pensar em uma América Latina não tomando parte na Guerra? É possível falar em uma Guerra sem efeitos para a América Latina? Pensando o Brasil dentro deste contexto, apontamos, a seguir, alguns aspectos sobre a inserção do país no conflito.

125

RUGGIERO, Antonio de. “Ouro e Sangue pela Pátria”: a contribuição dos ítalo-brasileiros na Primeira Guerra Mundial. In: RUGGIERO, Antonio de; FAY Claudia Musa; GERTZ, René E.

Vivências da Primeira Guerra Mundial: entre a Europa e o Brasil. São Leopoldo: Oikos; Editora

Unisinos, 2015.

126

BOURLET, Michaël. Les volontaires latino-américains dans l’armée française pendant la Première Guerre mondiale. Revue historique des armées, Paris, n. 255, 2009. p. 1-11. Disponível em: <http://rha.revues.org/6759>. Acesso em: 24 fev. 2016.

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