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1.5 O enfoque sociológico

1.5.2 A herança familiar e a escola

A família exerce uma importante função na conservação da ordem social, no processo de reprodução não apenas biológica mas da estrutura do espaço social e das relações que nele se processam. É ainda um dos lugares fundamentais para acumulação dos diferentes tipos de capitais, bem como de sua transmissão para as gerações posteriores. Atua como principal agente das estratégias de reprodução (BOURDIEU, 1996).

A ideia de uma cronologia ordenada de experiências, na qual a família se apresenta como primeiro espaço de socialização da criança é bem elucidada na seguinte citação:

O habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares (em particular, da recepção e da assimilação da mensagem propriamente pedagógica), o habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (por exemplo, da recepção e da assimilação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural ou das experiências profissionais) [...] (BOURDIEU, 1994, p. 80).

A família, vista nesse contexto proposto por Bourdieu, é um princípio de construção da realidade social, o qual é socialmente constituído e comum a todos os agentes socializados. É, por assim dizer, um dos elementos que compõem o habitus, essa estrutura mental, individual e coletiva (BOURDIEU, 1996).

O processo pelo qual o habitus passa, ao ser assimilado pelo sujeito, pode ser percebido nas primeiras experiências no ambiente escolar, quando a criança é posta em contato com novas formas de pensar e de agir, novos costumes, novos valores. Enfim, quando uma nova cultura é posta diante dela. É, portanto, um momento de novas aquisições e a escola torna-se um espaço onde as experiências evidenciarão sua forma de ver, encarar e se expor ao mundo. No decorrer de sua trajetória social, no entanto, essas condutas, sofrem alteração, podendo ser transformadas ou confirmadas, involuntariamente.

Assim, o indivíduo recebe influências do meio, mesmo de forma inconsciente, as quais vão determinando seu habitus, que converge para uma reprodução do contexto no qual foi incorporado durante sua história. Esse complexo de relações no ambiente escolar pode ser percebido ao observar o ingresso de alunos no sistema de ensino. Independendo da classe a qual pertençam os aprendentes, em geral, são alocados em um mesmo nível. No entanto, as distinções irão se manifestar, entre estes, nos procedimentos, nos costumes, e na própria forma de recepção dos conteúdos. Isso denota a apreensão de um capital anterior ao escolar, uma herança cultural, transmitida pela família e que é ajustada segundo seu nível sócio- econômico. Nesse aspecto, o modo como o indivíduo assimila a cultura familiar influi na forma de sua aquisição da cultura escolar (erudita) (BERTOLETTI E AZEVÊDO, 2006). Ou seja, um habitus primário dando forma a um habitus secundário.

Em síntese, todo indíviduo, no princípio de sua vida dá início à constituição de um

lhe são transmitidos pela família. Isto pode acontecer de forma intencional na inculcação de habitus culturais como a leitura, a frequência a teatros, a museus e outros comportamentos ensinados. Também de forma indireta, pelo contato com determinado tipo de gosto, de postura, dos quais o indivíduo vai se apropriando sem mesmo perceber. Além do capital

cultural na sua forma “incorporada”, outros componentes da herança familiar podem ser

postos a serviço do sucesso escolar. São estes, o capital econômico, na forma de bens e serviços a que ele dá acesso, também o capital social, entendido como o círculo social de relações influentes que a família mantém e o capital cultural institucionalizado, formado basicamente por títulos escolares. Nogueira e Nogueira (2002) acrescentam que:

O capital econômico e o social funcionariam, na verdade, na maior parte das vezes, apenas como meios auxiliares na acumulação do capital cultural. No caso do capital econômico, por exemplo, permitindo o acesso a determinados estabelecimentos de ensino e a certos bens culturais mais caros, como as viagens de estudo. O benefício escolar extraído dessas oportunidades depende sempre, no entanto, do capital cultural previamente possuído (p. 22).

Assim sendo, a tradição familiar ou a herança cultural, bem como costumes e hábitos que fazem parte do cotidiano doméstico, seja da cultura dominante ou dominada, são determinantes na relação escolar dos sujeitos e definem suas ações e a forma como se apropriam das mensagens culturais transmitidas pela escola. A esse respeito Bourdieu afirma que:

Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e de um certo ethos, sistemas de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as atitudes face ao capital e a instituição escolar.A herança cultural, que difere, sob dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e, consequentemente, pela taxas de êxito (BOURDIEU, 2007, p. 41, 42).

Esse capital cultural ao qual Bourdieu se refere é produto da incorporação de uma cultura familiar, resultado de inculcação e assimilação, tendo o tempo como principal esteio. É, pois, um trabalho de investimento pessoal, que passa, portanto, a fazer parte do indivíduo como um só corpo integrando o ser. Considerando o tempo como principal fator de aquisição, não pode ser transmitido sem levá-lo em conta. Está propenso a funcionar como capital simbólico, exercendo um efeito de reconhecimento no mercado de bens culturais. O ethos, por sua vez, refere-se à atitude do sujeito quanto às expectativas futuras ou a interiorização de um futuro em condições objetivas atribuídas aos membros de uma mesma classe. Desta forma,

desenvolve-se a lógica do processo de interiorização que transforma as oportunidades objetivas em esperanças ou desesperanças subjetivas (BOURDIEU, 2007). Esse movimento de interiorização de estruturas exteriores é completado pelo habitus e exteriorizado pelas práticas dos agentes.

Nesse contexto, o habitus é entendido como matriz de pensamento, que orienta as práticas dos agentes. É, por assim dizer, o princípio ordenador das decisões que os sujeitos tomam sobre seu destino, suas expectativas, suas alternativas, sem que este se dê conta do que o guiou em suas escolhas.Assim:

As experiências (...) se integram na unidade de uma biografia sistemática que se organiza a partir da situação originária de classe, experimentada num tipo determinado de estrutura familiar. Desde que a história do indivíduo nunca é mais do que uma certa especificação da historia coletiva de seu grupo ou de sua classe, podemos ver no sistema de disposições individuais variantes estruturais do habitus de grupo ou de classe, sistematicamente organizadas nas próprias diferenças que as separam e onde se exprimem as diferenças entre as trajetórias e as posições dentro ou fora da classe (BOURDIEU, 1994, p. 80,81).

Isso significa afirmar que cada grupo, de acordo com as condições objetivas que assinalam sua posição na estrutura social, compõe um habitus que rege suas ações, como um conjunto de arranjos e predisposições incorporados pelos indivíduos. Logo, ao acumularem em sua história experiências de êxito e de fracasso, esses grupos vão construindo um conhecimento prático da realidade objetiva, na qual se encontram inseridos. E, assim, conforme a posição do grupo no espaço social, e dos tipos de capital acumulado (econômico, social, cultural e simbólico), os agentes vão se apropriando de táticas de acesso a determinados bens, que os levam num movimento de transformação das condições objetivas. Nesse processo de ajustamento, entre investimentos e as condições necessárias a sua atuação, os sujeitos se apropriam das adequadas estratégias mais adotadas pelos grupos, como parte de seu habitus. Esse pensamento, aplicado ao contexto da educação, revela que o investimento dos pais na carreira dos filhos, calculado em tempo, energia e recursos financeiros, é feito a partir de estimativas inconscientes, quanto à possibilidade de êxito dos mesmos. Esse permanente processo de socialização familiar se difunde como parte de seu habitus familiar ou de classe (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004).

Esse conjunto de experiências peculiares provenientes da posição ocupada pelo sujeito na estrutura das relações objetivas se solidifica dando forma a um habitus. Este, faz com que

o sujeito aja nas mais variadas situações, não como um indivíduo simplesmente, mas como um representante de um determinado grupo ou classe social. Essa atuação, conquanto inconsciente, colabora para a reprodução das características de seu grupo social de origem, bem como da própria estrutura das posições sociais em que ele se constituiu. Dito de outra forma, há uma sutil participação dos agentes, através de suas ações cotidianas, na perpetuação de uma estrutura social baseada em multíplices relações de luta e dominação entre grupos e classes. Essas atitudes refletem o aprendizado adquirido durante sua socialização no âmbito de uma posição social que confere aos próprios atos um sentido objetivo, o qual extrapola uma percepção subjetiva e intencional.

Para um melhor entendimento de todo esse esquema de ação e perpetuação da estrutura objetiva, convêm, ressaltar a visão de Bourdieu sobre as três formas de estratégias de investimento escolar, que em geral são abraçadas pelas classes populares, pela pequena burguesia e pelas elites.