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1 OS CAMINHOS DA PESQUISA – SOBRE CONTORNOS E COMBINAÇÕES

1.2 A HERMENÊUTICA RICOEURIANA E A INTERPRETAÇÃO DE NARRATIVAS

Compreender os postulados de Paul Ricoeur, no que se refere às narrativas, foi uma tarefa complexa iniciada no período de elaboração do projeto, estendendo-se à escrita da tese. Retomar essa trajetória revela momentos significativos de discussão com os colegas de curso, que somados aos encontros de orientação possibilitaram o acesso ao material de estudo e a apropriação de conceitos importantes desenvolvidos pelo autor. A partir daí, desencadeou-se um processo crítico-reflexivo que conduziu para a adoção da hermenêutica ricoeuriana como postura filosófica para o trabalho. Passo a passo, esta ocupou um lugar de excelência quando ao analisar o conteúdo emergente das narrativas, estruturou-se progressivamente o corpus da pesquisa.

Estava diante de uma teoria do conhecimento que possibilitava agregar as concepções de realidade trazidas pelas vivências enquanto docente e pesquisadora com o desafio de propor contribuições formativas para os professores da educação profissional no âmbito dos Institutos Federais. Gamboa (2003) reflete essa relação entre o sujeito e o objeto de estudo

quando questiona: ―Como colocar de fora o sujeito, quando o objeto e o sujeito têm uma unidade de contrários, não pode existir um separado do outro?‖. Existe uma relação na qual esses dois elementos se encontram e se entrelaçam no itinerário investigativo que constitui a pesquisa.

Um itinerário constituído de muitas histórias passou a alimentar o corpus do trabalho. Ao narrar, muito mais que enumerar fatos, acontecimentos, os sujeitos construíam um enredo de sua vida onde pequenas histórias se interligavam em uma história maior.

De origem latina, a palavra ‗narrativa‘ deriva de narrare que significa relatar, contar uma história. Ao fazer isso, o sujeito encontra explicações, articula o pensamento, busca compreender aspectos vividos e sentidos. Ricoeur (2006) considera o ato de narrar como uma capacidade de o indivíduo projetar o mundo, colocando em correlação narratividade e temporalidade. Ao produzir um relato, o sujeito em processo autorreflexivo, elabora a si próprio com a identidade que lhe é particular. Na trama por ele produzida, estão presentes outros atores, explicações e contextos em uma organização temporal. Portanto, ao escutar as narrativas dos entrevistados, é possível compreender que estes as elaboram trazendo presente essa dimensão temporal implícita nas vivências e nas significações que as representam.

Conforme Paul Ricoeur (1994), o tempo não se resume a algo meramente cronológico, linear, mas sim, abarca um paradoxo entre o passado, o futuro e o presente, ou seja, do passado, trazemos as lembranças, a memória; do futuro, projetamos expectativas, antecipamos acontecimentos; e no presente, reunimos as duas coisas – as memórias e as expectativas. Sendo assim, o autor retrata que o presente é composto por um presente de coisas passadas, um presente de coisas presentes e um presente de coisas futuras – está aí estabelecido o paradoxo do qual trata Ricouer.

Atrelar a dimensão temporal da experiência humana às narrativas faz com que este tempo se constitua em um tempo humano, carregado de traços que permitem ao sujeito compreender o mundo. Ao considerar essas questões, reafirmo o quão complexa é a tarefa de retirar das narrativas, os substratos para a elaboração e/ou confirmação de uma tese. O autor ainda complementa: ―Seguir una historia es una operación muy compleja, guiada sin cesar por las expectativas relativas al curso de la historia, expectativas que corregimos poco a poco y a medida que la historia se desarrolla, hasta que alcanza su conclusión‖ (RICOEUR, 2006, p. 11)2.

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Tradução da autora: ―Seguir uma história é uma operação muito complexa, guiada sem cessar pelas expectativas relativas ao curso da história, expectativas que corrigimos pouco a pouco e à medida que a história se desenvolve, até que alcança sua conclusão‖ (RICOEUR, 2006, p. 11).

Diante de que o esforço de compreender a si próprio e ao mundo faz parte da hermenêutica interpretativa ricoeuriana, recorri a essa teoria a fim de fundamentar a escolha pelas narrativas como meio de captar os sentidos atribuídos pelos docentes de um Instituto Federal à própria docência e aos seus processos formativos.

Ao narrar, o sujeito coloca em jogo a arte de produzir, representar; nesta perspectiva, utilizei o conceito de mimese, explorado por Ricoeur (1994). Muito mais que simples imitação, réplica, o autor supõe o entendimento do conceito de mimese enquanto operações, ações dinâmicas por meio das quais os acontecimentos são reconstruídos, (re) produzidos. Assim, é possível afirmarque esta é uma imitação produtora de sentidos.

Logo, quando narra acontecimentos, constrói uma trama, o sujeito o faz em uma imitação inventiva, ou seja, até mesmo ao imitar algo novo é produzido, um fazer, um narrar diferente com peculiaridades relacionadas à sua vivência, linguagem, cultura, mundo interno. Isso torna a Hermenêutica Ricoeuriana um subsídio valioso para compreender as construções humanas reiteradas em lembranças, no imaginário explicitado de forma simbólica pelos sujeitos (RICOEUR, 1989). Estas lembranças relatadas, contadas por meio da narrativa são interpretadas por um processo circular explicitado pelo autor como a tríplice mimese. Esta supõe um movimento dinâmico, conectado, no qual as interpretações dos sujeitos adquirem sentido e se articulam concomitantemente. Passarei, então, a explicitar este movimento.

Figura 3 – Representação da Tríplice Mímese

Fonte: Elaborado pela autora.

O mundo da narrativa é evidenciado numa relação entre prefiguração, configuração e refiguração, ao que Ricoeur denominou de mimese I, mimese II e mimese III. Procurei estudar e caracterizar cada uma delas, já que serviram de sustentação para compreender e interpretar as narrativas obtidas por meio das entrevistas com os docentes.

Mimese I

Há um sujeito que habita o mundo e que traz uma experiência, ao mesmo tempo cotidiana e temporal; suas ações e interações irão produzir marcas do tempo vivido, bem como, da história ou da ficção. Compreendo ser este um mundo prático, ainda não explorado pela construção poética de quem narra, mas que já serve de referência para essa própria

construção. É um mundo pré-figurado que, embora ainda não pronunciado, entra em jogo para a representação da ação, constituindo-se assim em uma pré-narrativa.

Ricoeur (1994) caracteriza a mimese I como:

Vê-se qual é, na sua riqueza, o sentido de mimese I: imitar ou representar a ação é primeiro, pré-compreender o que ocorre com o agir humano: com sua semântica, com sua simbólica, com sua temporalidade. É sobre essa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se ergue a tessitura da intriga e, com ela, a mimética textual e literária [...] A despeito da ruptura que ela institui, a literatura seria incompreensível para sempre se não viesse a configurar o que, na ação humana, já figura (v. 1, p. 101).

Esse mundo simbólico concorre para descrever ações. São traços os quais compõem modalidades de discursos que podem ser chamados de narrativos, quer se trate de uma narrativa histórica, quer se trate de uma narrativa ficcional (RICOEUR, 1994). Logo, para interpretar a ação, existe uma convenção já instituída pela humanidade, são recursos simbólicos de um campo prático, empírico. O autor chama a atenção de que pré-existe um sistema de signos, regras e normas, fazendo com que a narrativa seja sempre simbolicamente mediatizada por estes referentes socialmente construídos. É, então, chegado o momento em que o sujeito compõe a narrativa. Uma série de episódios e acontecimentos são contados e ganham sentido numa sequência temporal. É a tessitura da intriga, ou mimese II.

Mimese II

A configuração da sucessão de episódios é concebida como intriga e apresentada, consoante Ricoeur, como o que dá acepção aos acontecimentos; tais acontecimentos, de forma desconectada, pouco sentido teriam. Neste caso, há um fio invisível de conectividade entre os fatos que compõem a narrativa de modo a tornarem-se compreensíveis.

O autor destaca a função mediadora da mimese II. Acrescenta que há uma ponte de ligação entre o mundo prático, pré-figurado (mimese I) e o mundo compreendido pelo leitor ou expectador (mimese III). Ricoeur (1994) justifica esta função da mimese II, apresentando:

1. a mediação entre o que acontece individualmente com o sujeito, ou seja, os acontecimentos individuais e a história como um todo; ao construir tal história, o indivíduo está dando sentido aos episódios, até mesmo na maneira como os apresenta e dispõe na trama construída (RICOEUR, 1994, v. 1, p. 103);

2. a mediação entre diferentes elementos: sujeitos, datas, objetivos, meios, conjunturas, condições;

- a episódica – reconhece que há um conjunto de fatos que caracterizam a história; - e, para o autor, a mais importante – a síntese configurante, a qual converte os meros episódios em narrativas. Nas palavras de Ricoeur, ―esse ato configurante consiste em ‗considerar junto‘ as ações de detalhe ou o que chamamos de os incidentes da história. Dessa diversidade de acontecimentos é extraída a unidade de uma totalidade temporal‖ (RICOEUR, 1994, v. 1, p. 104).

Verifico, a partir destes estudos, quão desafiadora se apresenta a reflexão por parte do pesquisador na compreensão desta dinâmica, na qual tantos elementos e relações estão envolvidos. Penso que a análise textual discursiva (ATD), a ser abordada no próximo segmento deste capítulo, constitui-se em um conjunto de procedimentos por meio dos quais procuro exercitar a compreensão dos elementos trazidos nas narrativas em face da Hermenêuica Ricoeuriana.

Mimese III

considerada o ponto de chegada do processo narrativo. Ela representa a conclusão de um percurso, não como algo acabado, esgotado, mas, sim, o ponto em que a narrativa pode ser interpretada pelo horizonte de quem a lê ou a escuta, conferindo-lhe sentido e significado além daquele atribuído pelo autor. Segundo o próprio Ricoeur (1994), Gadamer3 (1960) chamaria em sua hermenêutica filosófica como o momento da ―aplicação‖.

Diferentes mundos se entrecruzam; é assim caracterizada como a ―intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor. A interseção, pois, do mundo configurado pelo poema e do mundo no qual a ação efetiva exibe-se e exibe sua temporalidade específica‖ (RICOEUR, 1994a, p. 110). É muito interessante salientar que o leitor/ouvinte abre-se a uma realidade diferente da sua. Ao interpretar, apropria-se e deixa-se influenciar por um mundo que o transforma e é por ele transformado, mediante a sua capacidade de acolhimento.

O que é comunicado, em última instância, é, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projecta e que constitui o seu horizonte. Nesse sentido, o ouvinte ou leitor recebem-no segundo a sua própria capacidade de acolhimento que, também ela, se define por uma situação ao mesmo tempo limitada e aberta a um horizonte de mundo. O termo horizonte e aquele, correlativo, de um mundo aparecem assim duas vezes na definição acima sugerida de mimesis III: intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor (RICOEUR, 1994, v. 1, p. 351).

O entrecruzamento a que se refere o autor trata de uma fusão de horizontes distintos, ou seja, mesmo que leitor/ouvinte e escritor tragam aspectos históricos, temporais e culturais

diferentes, ao recebê-los e assimilá-los por meio do texto, reconstituem tais aspectos, apropriando-se deles (no sentido de tornar familiar e seu, o que era distante e desconhecido). Significa estar aberto a uma nova proposta de estar no mundo, compreender-se e compreendê- lo: ―...esta não está atrás do texto, como estava uma intenção encoberta, mas diante dele como aquilo que a obra desenvolve, descobre, revela. A partir daí, compreender é

compreender-se diante do texto‖ (RICOEUR, 1994, p. 353). Assim, o texto irá se revelando,

sendo desnudado na relação escritor e intérprete.

Como já retratado, esse é um processo que se encerra em si mesmo. ―Aprender a narrar-se é também aprender a narrar a si mesmo de outro modo‖ (RICOEUR, 2006, p. 115). Acredito que é um exercício o qual colabora para a [auto] compreensão dos sujeitos docentes sobre as suas trajetórias no contexto de um Instituto Federal. Ao compor e verbalizar as vivências adquiridas, a reflexão poderá ser importante prática para fomentar processos autoformativos4. Debruçar-me sobre as tramas construídas e compreendê-las demandava uma estratégia de análise que possibilitasse apreender os sentidos imersos nos discursos elaborados no campo narrativo. Para tanto, optei pela análise textual discursiva; por meio dessa reflexão, penso que se efetivou o movimento interpretativo de caráter hermenêutico proposto no trabalho.

1.3 A ANÁLISE DAS NARRATIVAS SOB O VIÉS DA ANÁLISE TEXTUAL