• Nenhum resultado encontrado

A hipótese de mudança na percepção de sintomas endêmicos

1. Repetitive Strain Injury: a epidemia australiana e a teoria iatrogênica

1.1 A hipótese de mudança na percepção de sintomas endêmicos

Hall e Morrow defendem a hipótese de que a RSI é "um comportamento epidêmico" de certos sintomas que já estão presentes de modo endêmico entre pessoas de uma determinada comunidade. Assim, o aumento de sua incidência pode estar relacionado ao trabalho. Ao considerar esse comportamento epidêmico de sintomas endêmico da RSI, afirmam, "precisamos explicar porque eles despertam tanto a atenção pública quanto a atenção médica e por que eles produzem uma incapacidade substancial naqueles que sofrem tais incômodos" (ib.: 646).

Essa hipótese parte da prevalência geral dos sintomas de RSI em estudos epidemiológicos de populações ocidentais, os quais sugerem que cerca de 10% da população sofre de dores nas extremidades superiores do corpo em grau suficiente para interferir em suas atividades cotidianas, inclusive no próprio trabalho (ib.:646). Estudos com trabalhadores cujas ocupações envolvem movimentos repetitivos ou posições forçadas do corpo obtêm prevalências bem maiores. Por exemplo, pesquisas escandinavas mostraram que a prevalência de cérvico-braquialgia entre operários da indústria pesada, assim como entre operadores de caixas registradoras, chegava a 45% dos avaliados; pesquisas americanas sobre a prevalência de queixas de dores, dormências e formigamento em membros superiores nos últimos 12 meses mostram valores entre 42% e 22%, respectivamente, em trabalhadores da indústria de vestuários e de hospitais; levantamentos dessas queixas na Austrália mostraram índices de 49% (dor no pescoço), 33% (dor no punho) e 23% (dor no ombro) entre digitadores. Outro estudo com músicos mostrou uma prevalência maior, especialmente entre os adeptos dos instrumentos de corda e teclado (ib.: 646).

Conciliando-se esses argumentos, quais seriam então os fatores que promovem o aumento da visibilidade dos sintomas de RSI? Os autores afirmam que "o diagnóstico de RSI foi o grande fator que desencadeou a atenção médica para os

sintomas endêmicos" na Austrália. RSI era um rótulo "demasiado amplo e mal definido que incorporava uma teoria causal pela qual os sintomas seriam uma lesão decorrente do excesso de movimentos repetitivos". Por outro lado, "essa criação dá legitimidade às queixas dolorosas e aos incômodos dos pacientes", pois lhes "fornece uma razão para ausentarem-se do trabalho", ao tempo em que "fundamenta suas reivindicações de benefícios indenizatórios" (ib.: 646).

A popularização do termo RSI deveu-se em grande parte à convergência de certos fatores sociais. Primeiro, a RSI foi "adotada" pelo "movimento emergente de saúde ocupacional" que ocorreu na Austrália, no início dos anos 1980, que se utilizava de temas de saúde para intervir nas condições de trabalho (ib.: 646). Do mesmo modo, o então recém-criado Worksafe "teve uma grande contribuição em promover essa desordem ao priorizar, inadvertidamente, as ações sobre a asbestose e a RSI" em seu âmbito nacional de ação, inclusive porque protagonizou e divulgou amplamente um guia de diagnóstico e condutas para "os casos de RSI" (ib.: 647). Segundo, a introdução de novas tecnologias na Austrália, como o uso massivo do computador, que produziu novos modos de organização do trabalho, desemprego e antipatias, que se expressavam e reverberavam através de manifestações e campanhas sindicais. Terceiro, a repercussão que a LER teve na mídia, que superestimava a prevalência de casos e enfatizava o caráter incurável da doença. Ao caracterizar a publicidade da LER como uma doença com estágios especulativos de sintomas, "a mídia ajudou a disseminar a visão de que a LER progredia inexoravelmente desde sintomas leves e passageiros até a incapacidade e a invalidez".

Desse modo, não é surpreendente, segundo afirmam Hall e Morrow, que grande quantidade de trabalhadores com dores nas extremidades superiores do corpo procurasse avaliação médica para saber se não estariam sendo vitimados pelo "terror" da doença. Enfim, concluem, "uma situação socioeconômica e política combinou-se para elevar e redefinir sintomas pré-existentes" em uma forma de

doença cujo modo de contágio era o local de trabalho, que se tornou conhecida pela publicidade ampla dada a um padrão de sintomas, os quais a tornavam aceitável e legítima em sua relação com o trabalho (ib.: 647).

Outro aspecto que essa teoria destaca são os fatores que concorrem para tornar crônicos os sintomas e a incapacidade. A maior diferença entre as dores endêmicas de membros superiores e a RSI é que as primeiras curam-se, com ou sem tratamento, no máximo em até um mês, enquanto as crises dos casos de RSI superam esse tempo. Entre os fatores que, combinados, fazem com que os casos tornem-se crônicas e "puxem ou empurrem a RSI para a incapacidade", estão os "processos iatrogênicos" em todos os níveis, pois "a contingência que opera dentro do sistema médico legal reforça a persistência dos sintomas". Iatrogenia, advertem os autores, não se refere apenas às doenças provocadas ou agravadas em virtude de condutas médicas, mas também "às conseqüências sociais e psicológicas dos modos pelos quais as enfermidades de pacientes são investigadas e conduzidas" pelos médicos (ib.: 647).

Prosseguindo em sua análise, os autores ressaltam que, naquele momento, a atitude dos médicos perante o paciente com dor teve, provavelmente, um papel importante nos estágios iniciais da epidemia. Desde antes, Ferguson, por exemplo, afirmava, a partir dos casos que ele observou em 1971, que uma preocupação excessiva por parte do médico contribuía para a invalidez do paciente (Ferguson, 1971, citado por Hall e Morrow, 1988:647).

Num segundo momento, no cerne da epidemia, "quando se desenvolveu certo cepticismo com a RSI", principalmente nos meios jurídicos, "muitos pacientes foram obrigados a demonstrar a sinceridade de suas queixas nas mãos de médicos preparados para exaurir todas as avenidas da investigação de um diagnóstico". O recurso de muitos deles era expor seus pacientes a orientações muitas vezes

conflitantes, com todas as conseqüências iatrogênicas decorrentes dessas condutas (ib.: 647).

Outro aspecto crítico referia-se ao tratamento, especialmente ao repouso, a conduta terapêutica mais comum e que parece ter contribuído sobremodo para piorar o curso da doença. A recomendação rotineira de repouso completo ou a imobilização das partes afetadas das extremidades tinham como efeito inicial a exacerbação das dores e o aparecimento de depressão; como efeitos mais tardios, crescia para alguns doentes a convicção, cada vez mais forte, de que estavam destinados a tornarem-se inválidos (ib.: 647).

Esse regime de repouso completo, associado a uma atribuição falsa de que o trabalho era "a" causa da doença, cria uma contingência de reforço muito importante. A recomendação de que o empregado só deveria retornar ao trabalho apenas quando estivesse completamente livre dos sintomas podia inquietá-lo ou desmoralizá-lo ainda mais, e de modo algum o protegia de voltar a sentir dores quando efetivamente retornasse ao trabalho. Após alguns ciclos de dor, repouso e dor, períodos de trabalho e afastamentos, muitos trabalhadores desenvolvem insegurança, medo e perda completa da auto-estima (ib.:647).

No momento em que começa a receber um benefício, o trabalhador reforça o sentimento de sua invalidez, no sentido de que recebe uma compensação por uma lesão provocada por seu trabalho. Não que essa concepção considere que os sintomas sejam inventados para fins de vantagens econômicas, e sim que "a situação difícil do trabalhador lesado e as possibilidades de um processo médico-legal conspiram para promover maior incapacidade". O manuseio médico dos doentes aumenta o período de absenteísmo, o que dificulta ainda mais a aceitação da volta ao trabalho. Essas dificuldades fazem com que os empregadores prefiram demiti-los, ou não admiti-los, contribuindo para que os empregados considerem o litígio

judiciário como a principal alternativa, tanto para "prover o sustento de sua família" quanto para "justificar suas queixas de lesão e incapacidade". Uma vez envolvido numa situação litigiosa, o doente deve percorrer um itinerário não terapêutico de situações em que ele "tem que demonstrar sua enfermidade e sua incapacidade durante os longos anos em que transcorrerem a ação" (ib.: 647).

Hall e Morrow reconhecem que medidas ergonômicas implementadas amplamente nessa época no país para controlar a epidemia foram importantes na melhoria das condições de trabalho e contribuíram bastante para reduzir a dor ocupacional, mas "a epidemia de RSI persistiu até que se desenvolvesse o cepticismo médico sobre sua existência" (ib.:647). Nesse sentido, certas pesquisas em psicologia que investigam como os seres humanos atribuem causas aos eventos ajudam a entender essas mudanças na percepção médica da doença:

No início da epidemia, acreditava-se que sintomas dolorosos em extremidades superiores era algo universal entre trabalhadores de certas ocupações e que se distinguiram inicialmente como sintomas de trabalho repetitivo, para ser associado posteriormente a movimento repetitivo. Com o desdobramento da epidemia, tornou- se claro que, embora esses sintomas fossem algo comum, a síndrome incapacitante da RSI era incomum. À medida que visões alternativas da síndrome foram recebendo publicidade, desenvolveu-se uma concepção de que somente alguns indivíduos estariam susceptíveis à doença e, desse modo, a RSI passa a ser vista como uma responsabilidade pessoal do próprio trabalhador afetado (Hall e Morrow, 1988:648).

Com a mudança de percepção sobre as causas da doença, muitos críticos culpam o próprio nome RSI pela epidemia e sugerem a sua substituição. Martin Hadler, por exemplo, a partir de autoridade em ortopedia defende que as dores de membros superiores sejam uma forma de fadiga que remite com o repouso e com melhores condições de trabalho, mas "sem implicar que o trabalhador tenha sido lesionado" (Hadler, 1986, citado por Hall e Morrow, 1988:648).

Esses argumentos foram aceitos pelo Royal Australian College of Physicians em 1986 que imediatamente "recomendou que o termo RSI fosse substituído pelo termo mais descritivo de 'síndrome da dor regional'". Assim, em decorrência de críticas desse tipo, o termo RSI deixou, aos poucos, de ser usado no meio médico (ib.: 648).

Para finalizar, Hall e Morrow afirmam que "a grande lição para o especialista da profissão médica é ser cauteloso ao criar rótulos diagnósticos na ausência de evidências confiáveis". É excepcionalmente perigoso quando esses rótulos são amplos e abrangentes demais, quando tentam incorporar de modo explícito teorias etiológicas que não são testáveis e, principalmente, quando lidam com sintomas endêmicos em determinadas comunidades. No caso da RSI, uma publicidade equivocada criou a expectativa de que a incapacidade fosse uma conseqüência comum dos sintomas. Em conclusão, do ponto de vista dos cuidados médicos, todo médico tem algo a aprender sobre epidemias, principalmente se estas forem também decorrentes de uma causa iatrogênica:

Os perigos de uma desordem iatrogênica são muito minimizados caso o médico, desde o primeiro contato com o paciente, exclua a possibilidade de uma doença séria, assegure com autoridade que a condição não é incapacitante para ele, assim como o proteja dos riscos de uma investigação especializada. Essa opinião será mais balizada se for acompanhada por conselhos sensíveis sobre a condução dos sintomas, por exemplo, a recomendação para que acentue suas práticas desportivas, reduza o stress, principalmente nos locais de trabalho (ib.:648).

1.2 Cumulative Trauma Disorders e Repetition Strain Injury: uma