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1. Organização dos trabalhadores e transformação da tenossinovite em doença do trabalho

1.5 As comissões de saúde

As comissões de saúde nos estados foram outra estratégia vitoriosa apontada por Rocha no reconhecimento previdenciário da tenossinovite. Eram coordenadas por uma comissão nacional e organizaram-se a princípio nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Goiás e o Distrito Federal. Cinco meses após o Encontro Nacional, a "luta pelo reconhecimento da tenossinovite" já estava organizada em comissões sindicais de saúde em sete estados, contavam com várias assessorias (compostas por médicos, psicólogos, ergonomistas etc.) e o ponto de "maior preocupação" era o "reconhecimento pelo MPAS da tenossinovite como doença profissional" (ib.:116).

O trabalho da comissão estadual do Rio de Janeiro (CES/RJ) é pormenorizado por Rocha para ilustrar as reivindicações e articulações sindicais que culminaram com a emissão da Circular INAMPS de 07/11/86. Desde o final de 1985, a CES/RJ tentava sem sucesso um contato com a Coordenadoria de Acidente do Trabalho do INAMPS e com a Secretaria de Benefícios do INPS do Rio de Janeiro, que na época eram as instâncias de decisão máxima para esse assunto dentro da Previdência Social (ib.:124).

Em 26/01/86, o Jornal do Brasil publicou uma "reportagem que repercutiu em todo o Brasil, com artigos republicados nos jornais de outros Estados" (ib.:124). Após essa ressonância da doença na mídia, a categoria dos digitadores recebeu o "apoio de médicos do INPS, Federação dos Médicos, Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ) e de Advogados" do Rio de Janeiro (ib.: 124). Aproveitando-se do calor do assunto na

mídia, um grupo de digitadores doentes, que se reunia semanalmente na APPD/RJ, resolveu enviar uma carta ao Presidente da República que "descreve a situação dramática de estar com dor, sem esperança de cura, e com o INPS fazendo-os retornar ao trabalho" (ib.:124). No mês seguinte, uma comissão com cerca de trinta digitadores do SERPRO/RJ junta-se a um deputado federal para apresentar um projeto de lei que regulamentasse "a caracterização da tenossinovite como doença profissional" (ib.:125). Em abril, o SINDPD/RJ vai a uma audiência no gabinete do Ministro da Previdência, expõe "a necessidade do reconhecimento" e entrega uma "bibliografia com estudos realizados pelo Rio Grande do Sul e pelas centrais sindicais da Europa" (ib.:125). Mesmo assim, o Jornal do Comércio publica entrevista com o ministro, que afirma desconhecer o assunto. Em julho de 1986, "os digitadores lesionados do Rio de Janeiro enviam nova carta ao Presidente José Sarney, na qual expunham todos os contactos infrutíferos mantidos com as instâncias administrativas do MPAS” (ib.:126).

Nesse período, várias comissões estaduais de saúde começaram a agir nas instâncias regionais do INAMPS e do INPS. Elas procuravam as coordenadorias, "levando material bibliográfico no sentido de pressionar o reconhecimento do nexo trabalho- doença". A resposta a essas iniciativas foi positiva em alguns estados. Por exemplo, "em Minas Gerais, após estudos dos próprios técnicos da Previdência Social, eles começaram a reconhecer os casos, independente de uma normatização mais geral" por parte da Previdência (ib.:126).

O INAMPS, através de sua Coordenadoria de Programas Especiais (CPE), decidiu "estudar a reivindicação com maior profundidade", solicitou pareceres técnicos "da FUNDACENTRO, da DRT, do INPS e de profissionais do INAMPS da área de ortopedia e traumatologia" e, "paralelamente", fez "levantamento bibliográfico junto à OIT e FUNDACENTRO" visando enfim atender às reivindicações (ib.:127).

Na fase final dos entendimentos sobre a elaboração da Circular, entretanto, o SINDP/RJ e a APPD/RJ, que mantinham "contactos permanentes" com a CPE e que propõem "a designação da doença como Lesões por Esforços Repetitivos (LER), especificando os quadros clínicos abrangidos" (conforme resolução do Encontro Nacional), encontraram resistências "dos ortopedistas do INAMPS", os quais insistiam em definir a lesão apenas como tenossinovite (ib.:128).

Paradoxalmente, outro ponto de divergência foi o enquadramento da tenossinovite apenas como doença profissional dos digitadores. "A Coordenadoria compreendeu que esta patologia não era específica dos digitadores, relacionando-a aos movimentos repetitivos que ocorrem em outras ocupações". Para a definição dessa natureza ocupacional da nova doença, a Circular estabelecia que, se necessário, deveria ser feita a investigação nexo-causal com vistoria no local de trabalho.

A Circular nº 10 de 07/11/86 afirma, logo em sua primeira consideração, que seu objetivo é "dirimir dúvidas suscitadas por algumas superintendências" estaduais do INAMPS, que estavam adotando condutas regionais variadas sobre a relação entre tenossinovite e trabalho. A seguir, define a condição de acidente da doença:

A tenossinovite, quando resulte de movimentos articulares intensos e reiterados, equipara-se, nos termos do artigo 2º, §3º, da Lei nº 6367 de 19/10/76 a um acidente do trabalho, fazendo jus o segurado, nesta hipótese, às prestações do respectivo seguro (Circular INAMPS nº 10 de 07/11/86, citado de Rocha, 1989:244).

Ou seja, toda vez que o diagnóstico de um caso de "tenossinovite" pela clínica associar-se com "movimentos articulares intensos e reiterados" na ocupação do doente, esse conjunto resultante equipara-se, nos termos da Lei, a um acidente do trabalho, conforme foi sempre a reivindicação da categoria de processamento de dados. A instrução seguinte é como reconhecer essa tenossinovite. Nesse sentido, a tenossinovite é caracterizada, "em suas fases iniciais, por dor e impotência funcional,

sintomas a que, posteriormente, poderão agregar-se edema e crepitação". Assim, através de alguns sinais cardeais não específicos da inflamação, são definidos os termos da lesão. Pelo fato de a "tenossinovite reconhecer diferentes etiologias" para definir a relação com o trabalho, ou o nexo causal, a situação é mais complexa: deverá haver uma "detalhada anamnese profissional" e a informação do paciente deve "ser confirmada em vistoria do local de trabalho" (Circular nº 10 de 07/11/86, citada por Rocha, 1989:244). Essa vistoria deverá observar, "entre outros, os seguintes fatores, responsáveis, isoladamente ou em conjunto, pela ocorrência de tenossinovite traumática (ocupacional)”:

[...] intensidade e freqüência dos movimentos articulares necessários à realização do trabalho; inadequação dos instrumentos de trabalho, obrigando o emprego de posturas e movimentos anormais dos segmentos corporais comprometidos na execução das tarefas; remuneração vinculada à produção, induzindo o trabalhador a prorrogar a duração normal da jornada de trabalho ou não se utilizar dos intervalos para repouso previsto em lei (Circular nº 10 de 07/11/86, citado por Rocha, 1989:244-5).

Neste trecho acima estão expostas as concepções iniciais de sentido médico e previdenciário da etiologia da tenossinovite como doença do trabalho. Por outro lado, definida inicialmente apenas pelos seus sintomas iniciais agudos e subjetivos, "dor e impotência funcional", ou pelos sinais físicos mais objetivos porém mais tardios de "edema e crepitação", a tenossinovite é descrita pela Circular como uma afecção, ou melhor, como

[...] todas as afecções que resultem de sobrecarga das bainhas tendinosas, do tecido peritendinoso e das inserções musculares e tendinosas, sobrecarga essa que, entre outras categorias profissionais, freqüentemente se expõem digitadores de dados, mecanógrafos, datilógrafos, pianistas, caixas, grampeadores, costureiras e lavadeiras (Circular nº 10 de 07/11/86, citado por Rocha, 1989:245).

A Circular não evita o termo tenossinovite, mas não deixa de reconhecer que a sobrecarga dos tendões e inserções musculares, voltando ao texto supracitado, não pode ser considerada uma prerrogativa dos digitadores. Assim, ela não pode

particularizar uma única categoria profissional e abre a possibilidade etiológica da doença também para outras categorias profissionais que realizam atividades que envolvem sobrecargas musculares e tendinosas.

No parágrafo final, a Circular recomenda sua ampla divulgação entre as "equipes de acidentes do trabalho da SR [Superintendência Regional], da Divisão/Serviço local de Medicina Social e dos Serviços de Medicina Social e junto aos médicos de atendimento do INAMPS, inclusive os de empresas convenentes" (Circular nº 10 de 07/11/86, citado por Rocha, 1989:245).

Enquanto isso, certas mudanças políticas ampliaram as interações e as parcerias entre sindicatos e alguns estados. Por exemplo, em fevereiro de 1987, o SINDPD-SP publicou um manual intitulado Doenças profissionais em processamento de dados, destinada à orientação dos trabalhadores da categoria, que teve o apoio expresso da Secretaria Estadual das Relações do Trabalho do Governo de São Paulo. A secretária à época, Alda Marco Antonio, faz a apresentação desse manual, que demonstra uma abertura do Estado de São Paulo para as novas demandas sindicais de trabalhadores, sublinhando a emergência de uma nova política para a categoria dos digitadores:

[...] a luta de uma categoria "moderna", da era do computador, pelo reconhecimento e conseqüentemente prevenção de uma nova modalidade de doença profissional, a saber, a sinovite, tenossinovite e tendinite que ameaçam os trabalhadores em processamentos de dados, cerca de 90.000 em São Paulo (Marco Antonio, 1987:1).

Na ocasião, a secretária expressa seus "votos" de que aquele "manual pioneiro" "circule amplamente entre os trabalhadores da categoria, empresários e órgãos públicos e se transforme num instrumento eficaz na defesa da saúde dos trabalhadores em processamento de dados em nosso estado" (ib.:1). E de fato, a partir desse manual, milhares de digitadores em São Paulo recebem informações clínicas e

epidemiológicas, não só sobre a tenossinovite, mas também sobre outras formas de lesões musculoesqueléticas que podem caracterizar-se como LER:

As lesões por esforços repetitivos que mais atingem os digitadores são: sinovite, tendinite, bursite, tenossinovite. A tenossinovite é hoje o tipo de lesão que mais atinge e preocupa os digitadores, em virtude do elevado número de casos constatados (aproximadamente 30% dos digitadores e em virtude dos danos causados por essa doença, que consiste na inflamação dos tendões de dedos e mãos e pode levar à imobilidade) (Gonçalves, 1987:3).

A informação fornecida pelo manual concilia linguagem médica e senso comum, com explicações médicas ilustradas por cortes anatômicos que mapeiam o sofrimento dos digitadores através da exposição da anatomia da mão e do punho, numa leitura etiológica, patogênica e sintomatológica da enfermidade. Milhares de cartilhas circulam levando essas informações entre trabalhadores e gestores de centros de digitação, CIPA, sindicatos, médicos do trabalho, jornais, revistas etc. Enfim, em 06 de agosto de 1987, o Ministério da Previdência assinou a histórica Portaria nº 4.062/87, que reconhece a "tenossinovite dos digitadores" como doença ocupacional, sustentada em três considerações: A primeira afirma que esse reconhecimento é uma proposta das "Secretarias de Previdência Social e de Serviços Médicos" do Órgão, que ouviram "os pareceres técnicos do Instituto Nacional de Previdência Social e do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social", provocada por uma demanda originada "do Sindicato dos Empregados em Empresas de Processamento de Dados do Estado do Rio de Janeiro” (Portaria 4.062/87, citada por Rocha, 1989:246). A segunda diz que a lesão decorrente de "esforço repetitivo peculiar à atividade de digitador" também pode comprometer outras categorias profissionais, "como datilógrafos e pianistas, entre outros, que exercitam movimentos repetitivos do punho". A última considera a relação previdenciária estabelecida entre a síndrome e as "condições especiais em que o trabalho é realizado" e, desse modo, aponta para o disposto no parágrafo 3º do art. 2º da Lei 6367/76 para configurar uma "DOENÇA DO TRABALHO", em maiúsculas como no texto da Lei, "assim entendida

a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado" (ib:246).

Após essas considerações, a Portaria determina medidas administrativas que devem regulamentar sua decisão. Entre elas, define a competência de estabelecer o nexo da lesão com o trabalho, nos moldes do acidente do trabalho, aos "setores médicos assistenciais do INAMPS e médico-pericial do INPS". Aponta também para os procedimentos médicos que deverão constar da investigação diagnóstica, assim como o exame do paciente no início da atividade e a avaliação das condições de trabalho, através de informações "obrigatoriamente fornecidas pela empresa a que pertencer o segurado, complementadas, se necessário, pelos setores competentes do INAMPS e/ou INPS". Essas informações devem incluir "carga horária, tempo na atividade, número de movimentos articulares por unidade de tempo, condições ambientais e materiais de trabalho" (Portaria 4.062/87, conforme Rocha, 1989:246).