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Capítulo 3: O Reconhecimento do Território e da Comunidade de Matão.

3.2. Memória e identidade: a história de Matão

3.2.3. A história de Matão e o lugar das mulheres

Nosso trabalho de dissertação (SOUZA, 2012) foi construído tendo como foco a noção de honra e sua relevância na construção de um padrão social que, mesmo não sendo reproduzido por todos, está lá como guia. Despertamos para essa análise a partir dos discursos sobre a história e vida no lugar que sempre se construiu e reproduziu a partir do olhar dos homens. Manoel Rufino chegou nesta terra acompanhado de um irmão e uma irmã, seu irmão, Antônio não casou. A sua irmã mal aparece na história, depois de várias vezes que perguntamos, nos disseram que ela se chamava Edwiges. A mulher de Manoel Rufino, igualmente não aparece, ele era casado (ou casou depois que chegou) e tinha filhos, mas sua mulher não possui destaque na memória.

Ao observarmos as migrações (SOUZA 2009, 2012), percebemos que o discurso masculino reproduzia a ideia do homem provedor e mantenedor, do

homem viajante. O tema migração despertou sempre para o lado masculino, só depois de certo tempo conseguimos perceber que as mulheres também migraram e migram, seja para acompanhar seus maridos, seja para trabalhar sozinhas, mas essas mulheres não eram guardadas na memória como a figura dos que migram para ajudar o trabalho da família. Quando encarávamos o processo migratório como estratégia para a manutenção da vida neste lugar, como uma forma de investir no trabalho agrícola, as mulheres que também migraram não foram citadas.

As mulheres estão em uma situação bem ambígua. Miguel nos disse, na situação narrada de sua passagem pelas terras do fazendeiro vizinho, que uma mulher andando com seus filhos pequenos pelos caminhos não causaria problema algum. Com isso pensando na ideia de honra que pode oferecer uma forma de ler esse universo social.

Pitt-Rivers (1979) analisa as noções de honra nos distintos sexos através do costume de oferecer asilo. O costume de pedir e conceder asilo, comum em um mundo no qual não é a lei escrita, mas a tradição que determina que é a ofensa. Analisando o costume árabe, quando um homem que necessitava de asilo entrava no recinto das mulheres – terminantemente proibido aos homens, principalmente estranhos – e implorava a hospitalidade. A entrada no recinto das mulheres torna o hóspede semelhante a elas: despojado de seu poder de ataque, de ofensa e de defender sua honra. O hóspede submete-se ao dono da casa em troca de proteção.

Através da divisão do trabalho – e da honra – o homem possui a autoridade e a mulher, a pureza. As atividades das mulheres são voltadas ao lar, pois são elas as guardiãs da honra masculina. Os hóspedes, de modo semelhante às mulheres, não possuem autoridade, são dependentes dos desejos dos homens (anfitriões). O respeito devido a eles é espelho daquele que é devido ao dono da casa, além disso, hóspedes e mulheres possuem o perigoso poder de influenciar a honra dos homens responsáveis por eles. Desta forma, conceder asilo, confere honra ao anfitrião, mas a ofensa cometida por um hóspede ou a um hóspede deve ser resolvida de maneira correta pelo anfitrião, caso contrário corre o risco de ser desonrado.

Da mesma forma, Dória (1994), ao analisar o modelo mediterrâneo ou ibérico de honra, ressalta o papel diferenciado da mulher no que concerne à

honra. Apesar de subordinada, a mulher é perigosa, pois pode atrair a desonra. Há, nos homens, o medo de se ligarem às mulheres erradas e serem desonrados. Até mesmo um homem considerado honrado se não conseguia conter suas mulheres nos limites do comportamento virtuoso decai no reconhecimento social, pois é preciso considerar que a reputação pública da mulher compõe parte da honra do homem responsável por ela.

Ressalta que é através da mulher que a “mancha” se instaura e macula o sangue, a família e o nome. Exemplifica no Nordeste do Brasil com a ocorrência de estupros e raptos arquitetados pelos cangaceiros. Ao deflorar as mulheres ou ainda raptá-las, envergonhava os homens, ao lhes obrigar a conviver com a ofensa e demonstrar publicamente seu fracasso em protegê- las.

Os padrões estabelecidos das pessoas honradas são ideais a serem atingidos, pois, na reprodução cotidiana da vida, dificilmente são observados. É o caso do casamento, da ausência de escândalos, da observância de um de comportamento sexual, pois são elementos que fogem ao controle em alguns momentos. O controle dos pais sobre seus filhos ou do marido sobre sua esposa. Apesar disso, os padrões são presentes e regulam a vida das pessoas e as distinguem e a honra é elemento central desta análise.

Desta forma, as mulheres, neste universo estão sempre numa situação de ambiguidade. Trabalham, migram, participam de forma efetiva da vida em comunidade e associativa, contudo o seu comportamento deve refletir um padrão moral, duramente imposto, de tal forma que limita muitas de suas ações.

Uma mulher poder passar na fazenda vizinha com seus filhos, não é indicativo de liberdade de andar por onde quiser, mas demonstra que enquanto mãe, cumprindo seu papel social de cuidado com os filhos, ela continua a reproduzir o padrão de vida que é esperado dela. Talvez uma mulher sozinha deva evitar certos caminhos.

É justamente essa ambiguidade, no que se refere à situação no campo da honra, que coloca a mulher que migra em suspeição e a impede de figurar como protagonista nas histórias contadas em Matão. Quando a mulher sai do ambiente doméstico, seus pais perdem o controle e a vigilância sobre ela,

portanto quem pode garantir que ela continua seguindo as regras e padrões morais impostos?

Quando começamos a falar cobre a autonarrativa dos moradores de Matão, analisamos sua história e, através delas perceber que lembrar e esquecer são determinantes na construção do lugar. Quem é ou não lembrado diz muito a respeito dos papéis e lugares ocupados pelas pessoas. Encontramos mulheres que, diante de anos de relacionamento diário ainda não são consideradas de Matão, ou não são da família. Apenas moram ou estão no Matão. Semelhante ao que Woortmann (1995) encontra entre os colonos do Sul do país, onde as mulheres que vêm através do casamento, apesar de viver entre a família, não são consideradas da família.

Este é o caso de Gabriela, citado no primeiro capítulo, uma mulher que casa com um homem muito mais velho, cuja união não é legitimada pelas pessoas que impedem a construção de sua casa nos limites de Matão, mesmo esse homem possuindo o direito ao chão de casa. Gabriela não é uma mulher desconhecida. Seus pais foram moradores de uma fazenda vizinha a vida inteira. Duas de suas irmãs são casadas com homens de Matão. Seus pais receberam Maurício em casa por ele ser idoso e demandar cuidados. Contudo, o casamento dela não recebeu aceitação social. Não recebeu porque a atitude dela foi encarada como motivada por interesse nas terras e benefícios que pode conseguir em Matão devido à “questão quilombola”. Quando ela casou com Maurício, já tinha dois filhos de uma união anterior e depois viveu alguns anos sozinha como moradora da fazenda que seus pais viviam, recebeu a censura pública também porque Gabriela não é uma mulher que, durante sua vida, cumpriu os padrões de honra esperados e impostos às mulheres.

Capítulo 4. Os desafios do cenário do autorreconhecimento em