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Capítulo 4. Os desafios do cenário do autorreconhecimento em Matão:

4.3. Mulheres negras quilombolas em Matão

Neste momento faremos o seguinte percurso: inicialmente, destacaremos a importância dos estudos feministas para as ciências sociais e tentar situar, no campo da antropologia, algumas reflexões sobre o feminismo. A partir disto traremos algumas análises sobre o trabalho de Judith Butler tendo em vista seu protagonismo atual na crítica aos estudos de gênero vigentes e suas abordagens inovadoras dos estudos de gênero, feminismo e sobre a mulher. Outro ponto essencial para as nossas discussões é a busca por compreender o papel da mulher e como se dá sua socialização no contexto de

Matão. Para tanto, percebemos a importância das análises de Michel Foucault sobre o micropoder e o seu exercício cotidiano no intuito de formar corpos adequados, corpos “dóceis” e disciplinados. Por fim, não podemos perder de vista que tratamos de mulheres no âmbito do que consideramos o mundo rural. Para tanto, traremos análises de mulheres no contexto rural e a busca pela compreensão do mundo quilombola e a influência das transformações que a questão quilombola traz para a vida dessas mulheres.

Lucila Scavone (2008), ao pensar o campo dos estudos de gênero, observando-os no contexto das ciências sociais, demonstra que ganham espaço tendo claramente projetos políticos, surgem no diálogo das lutas feministas com as teorias sociais. Ela defende a ideia de que os estudos de gênero nas ciências sociais surgem alicerçados nas lutas feministas e é nelas que surgem as condições para a crítica feminista que influenciou as pesquisas científicas. Luta política e social em constante diálogo com a teoria e a análise social.

A década de 1960 representa uma mudança de paradigma. As teorias se encaminham no sentido da desconstrução de um sujeito universal. Essas rupturas acontecem concomitantemente aos chamados “novos movimentos sociais” que dão voz a distintos e diversos atores, novas vozes e reivindicações que se centram em particularidades, que antes os movimentos sociais não contemplavam. É nesse contexto que os “Estudos sobre Mulheres” vão se consolidando, apoiados também num feminismo na Europa e nos Estados Unidos. Scavone destaca alguns trabalhos que foram importantes para a construção do campo de estudos dessa época, dentre eles, merecem destaque as obras de Margatreth Mead do final da década de 1940, de Madeleine Guilbert de 1946 e, especialmente, a obra de Simone de Beauvoir “o Segundo Sexo” (1949). Esta obra representa uma nova dimensão dos estudos de gênero e um feminismo que passa a ser centrado na mulher enquanto sujeito, além de politizar e trazer à tona para a discussão questões antes consideradas como parte do domínio privado, como a contracepção, o sexo, o aborto, etc.

Estes estudos são marcados pelas lutas e demonstram um comprometimento com a transformação das relações de dominação e poder masculinos. Apesar das demandas não serem lineares e apresentarem sujeitos múltiplos e nômades, esse diálogo das lutas com problemas sociológicos traz

contribuições relevantes ao olhar da sociologia sobre o mundo. Abre espaço para o questionamento da ordem sexual, considerada natural por muitos. Dessa forma o olhar do gênero passa a ser trazido para os problemas, há a percepção de que questões tradicionalmente investigadas pela sociologia (religião, trabalho, saúde, etc.) são marcadas pelas relações de poder e dominação entre os sexos.

Este diálogo entre o feminismo e a teoria social traz a “descoberta” de um mundo que também é dividido por gêneros. As questões de gênero, e os conceitos que ajudam em sua análise, estão sendo definitivamente incorporados nas ciências sociais no estudo de ampla gama de fenômenos. A teoria feminista, no âmbito das ciências sociais, chama a atenção para o fato de que a ciência também é dividida em gêneros. Cabe ressaltar o que Scavone considera como um dos pontos importantes destes estudos: ao denunciar uma sociedade sexista, abre caminho para práticas de liberdade.

Michele Rosaldo (1995) faz uma reflexão sobre a contribuição da pesquisa feminista para a antropologia. Ressalta que, apesar de passarmos a maior parte de nossas pesquisas ouvindo e observando as mulheres, nos trabalhos e nas análises, nossas interpretações são limitadas e não dão vozes a essas mulheres, estão presas a estruturas interpretativas vigentes e restritas. Fazendo um rápido panorama da análise antropológica e da pesquisa feminista, ela demonstra que as problematizações falham ao se centrarem em dicotomias e perceber o gênero como algo dado, fruto de características biológicas e não como algo fruto de relações, interações e expectativas que os indivíduos cultivam dentro das sociedades nas quais vivem.

A antropologia, em geral, abandonou a busca evolucionista pelas origens. Contudo, alguns trabalhos clássicos feministas têm usado a antropologia para entender reivindicações modernas e compreender as “origens” de algumas questões, por exemplo, da submissão feminina. Esta abordagem é construída sobre uma imagem do “primitivo” como aquele que possui as necessidades mais básicas do ser humano, portanto seria o ponto de partida para a análise. Rosaldo (1995) demonstra o problema ao ressaltar que a busca pelas origens se sustenta e alimenta uma crença em universais e, em última instância, se pauta num condicionamento biológico que define o que homens e mulheres são ou não podem ser. Ao enveredar por esse caminho

acabam por reproduzir uma ciência social masculina, à qual pretendiam se opor, pois observam o gênero como fruto de distinções biológicas entre homens e mulheres e não como produto de relações sociais.

Rosaldo (1995) sustenta o argumento de que, mesmo sendo encontrada em todas as culturas já estudadas certa predominância masculina, essa dominação não pode ser encarada como um conteúdo universal. Mesmo as tarefas dos homens sendo investidas, em sua maior parte, de dignidade pública, há sempre mulheres nestes contextos que fazem valer suas vozes e investem suas tarefas de valor e dignidade. A dominação masculina não deve ser encarada como um reflexo das diferentes capacidades ou interdições físicas de homens e mulheres, mas como um conjunto de relações que possuem sua base na maneira pela qual grupos de pessoas significam suas vidas, suas expectativas e oportunidades. Gênero, portanto, deve ser entendido em termos políticos e sociais e com referência a formas específicas de relações sociais.

Rosaldo se preocupa em demonstrar que, sempre que o olhar se volta para as mulheres, a fisiologia sexual é colocada como ponto a ser discutido, o mesmo não acontece ao observar o comportamento masculino. O fato dessas questões serem sempre pensadas, demonstra o quanto os pesquisadores naturalizam as divisões e desigualdades ao falar de sexo, parecem esquecer ou não perceber que essas assimetrias são, bem como tudo o que elas implicam, criações frutos das relações, expectativas e vivências dos seres humanos em sociedade.

Nesse contexto, de percepção das assimetrias e, principalmente, de crítica à naturalização dos papeis sociais, sexuais e de gênero de homens e mulheres, uma figura central na análise é a de Judith Butler. Butler merece destaque pelas transformações que suas análises trazem para o campo. Suas teorizações permitem a crítica à própria teoria feminista, propondo uma maneira distinta pensar as relações entre os gêneros.

Com uma escrita bem complexa, Butler procura se libertar em todas as suas análises de qualquer dualismo que as leituras sobre gênero possam conter. Seus trabalhos, bem como sua forma de escrever, são complexos, pois, para ela, assim o são as relações sociais nesse sentido. Ela percebe que o gênero é um processo, mas não possui começo e fim.

Butler busca inspirações em grandes filósofos como Hegel ao empreender uma discussão dialética buscando compreender as categorias através das quais o sujeito é construído e desconstruído, perceber os porquês das atuais configurações do sujeito e, desta forma, sugerindo que ele pode ser construído de modos alternativos. Salih (2015) ressalta a importância do questionamento para a obra de Butler. A busca pela compreensão da construção das identidades, do gênero não significa que ela possua ou apresente todas as respostas para as questões que levanta ao longo dos seus escritos, ou seja, o processo de questionar, refletir, desconstruir é fundamental. A dialética é, para ela, um processo em aberto.

O francês Michel Foucault é também fundamental na construção do seu pensamento. Suas análises sobre o poder, suas formulações sobre como o sexo e a sexualidade são mutáveis ao longo do tempo, são centrais para as análises de Butler sobre gênero, sexo e sexualidade. A desconstrução das categorias é influenciada também por Jacques Derrida e sua teoria pós- estruturalista da linguagem.

Pelo diálogo com Foucault e Derrida, muitos classificam Butler como pós-estruturalista. De fato, essa “escola” é muito importante na construção do seu pensamento, contudo, há outras influências em seu pensamento que não remetem diretamente a essas ideias. É o caso da teoria feminista, a psicanálise e o marxismo. Contudo, pelo tipo de análise que desenvolve, não se pode enquadrar Butler em qualquer uma dessas linhas de pensamento.

Em “Problemas de Gênero” (2008), Butler inicia de forma decisiva ao problematizar a relação entre a teoria feminista e a ação política feminista. Esta relação pressupõe que a mulher seja o sujeito do feminismo e é alvo de sua desconstrução em vários sentidos. Inicialmente critica o feminismo baseado na representatividade de uma identidade única o que, para Butler, é problemático já que ela questiona o que constitui a categoria mulher. Esse é um problema teórico, pois ela se preocupa em demonstrar como o sujeito não pode ser pensado como a última entidade da representação, na verdade, ela percebe que o sujeito é construído discursivamente. É também um problema político, pois, esse feminismo repousa na ideia de que o termo mulher represente uma identidade comum.

O feminismo, de acordo com Butler, constrói um sujeito – a mulher – para fundamentar suas reivindicações e falha ao não perceber que essa categoria foi construída. Mesmo visando uma emancipação, a ideia de que há uma base universal para o feminismo na identificação de todas as mulheres como algo único, acaba por ser opressora, pois dita o que é ser mulher. Isso representa uma reificação das relações de gênero. Suas análises se encaminham no sentido de repensar as identidades e a representação, uma busca de crítica à teoria feminista no intuito de livrá-la dessa necessidade de uma base única.

O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes. É significativa a quantidade de material ensaístico que não só questiona a viabilidade do “sujeito” como candidato último à representação, ou mesmo à libertação, como indica que é muito pequena, afinal, a concordância quanto ao que constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. (BUTLER, 2008, p. 18)

Nesse processo de crítica traremos a análise de Butler a respeito do gênero como essencial na sua obra e, especialmente, com elementos que nos ajudarão a observar a realidade da nossa pesquisa. É em “Problemas de Gênero” (2008) que Butler elabora o processo de construção do sujeito e o modo como a identidade de gênero é construída no e pelo discurso.

“Problemas de Gênero” é uma obra bastante impactante para os estudos sobre gênero e feminismo. É nessa obra que Butler demonstra como rompe definitivamente com a ideia de sujeito. Ela desconstrói o sujeito de Hegel e passa a descrevê-lo como um sujeito em processo, construído permanentemente no discurso pelos atos que executa. O questionamento do sujeito coloca em suspeição a categoria de identidade que pressupõe uma “base comum” entre as pessoas envolvidas. Como dito anteriormente, não há, para ela, uma definição clara do que a categoria mulher possa representar. Na verdade, uma possível identificação das mulheres, é menos fruto de uma coerência ou continuidade do que de normas socialmente construídas e mantidas (BUTLER, 2008, p. 38). A mulher é esse processo. Ser mulher é um processo que não tem origem nem fim, ela está em permanente construção.