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Capítulo 3: O Reconhecimento do Território e da Comunidade de Matão.

3.1. O Reconhecimento de um quilombo: medição e políticas públicas

3.1.2. Políticas públicas e os quilombos paraibanos

Como um suporte de todas essas mobilizações em torno da condição quilombola, não podemos perder de vista que há a presença de um cenário nacional92, que de certa forma, têm encaminhamentos mais efetivos tomados a

partir do Decreto 4.88793 de 20 de novembro de 2003. No ano de 2003 a

Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) coloca as questões étnica e racial enquanto questões nacionais, focando-se nos segmentos negros da população, na precariedade que se encontram e procurando construir a promoção de uma justiça social. Os quilombolas são grupos de referência para essas políticas com a criação do Programa Brasil Quilombola (PBQ) em 2005, o primeiro (e único) programa nacional destinado especificamente aos quilombolas. (SILVA, 2014)

A mobilização se constrói tendo em vista também um cenário propício para as reivindicações. As políticas públicas que são construídas para os quilombos, especialmente após 2003, quando se inicia o primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), marcando uma mudança política, se constituem como elementos de transformação na vida dos quilombolas.

O território em Matão, apesar de uma reivindicação legítima, em alguns momentos causou desconfortos e tensões internas, tanto acerca dos limites da terra, quanto da legitimidade da reivindicação. Lutar por regularização fundiária implica em desafiar o poder tradicionalmente construído dos fazendeiros vizinhos e toda uma gama de relações de respeito/medo, submissão e obediência construídas ao longo da existência. A luta pelo território é ainda algo que, durante muitos anos, figurou de forma distante no horizonte desses

92 Discutimos esse cenário no Capítulo 1.

93 O decreto: “Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,

demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. Fonte:

moradores, as reivindicações pela inclusão nas políticas e programas sociais do governo eram mais próximas e traziam resultados mais imediatos de transformação das condições de vida.

Marta Arretche (2003) ressalta que o aumento de interesse pelas políticas públicas por parte dos estudiosos é devido às mudanças na sociedade brasileira e no campo da política a construção de programas governamentais. Destaca como dificuldade na própria institucionalização do campo, e inclusive como necessidade teórica, o perigo da proximidade com a agenda dos governos. Destaca esse campo de estudos como aquele que tem por objetivo analisar a ação do Estado:

tem como objeto específico o estudo de programas governamentais, particularmente suas condições de emergência, seus mecanismos de operação e seus prováveis impactos sobre a ordem social e econômica. (ARRETCHE, 2003, p. 8)

Nesse contexto há a necessidade de vigilância constante do pesquisador, é preciso cuidado com essa proximidade para que o pesquisador não se torne apenas reprodutor do que estuda. É um desafio constante, a compreensão de que as políticas públicas, sendo elaboradas pelo Estado, possuem diversos elementos que se prestam a críticas.

Antonio Carlos de Souza Lima e João Paulo Macedo Castro (2015) buscam refletir a respeito dos estudos sobre políticas públicas, de forma crítica, tendo em vista o impacto desse campo de estudos sobre o fazer da antropologia e as diversas atuações dos antropólogos especialmente as que dizem respeito ao trabalho em situações promovidas pelo Estado. Os antropólogos se voltam para as políticas governamentais, tendem a trabalhar com políticas sociais com a percepção, o uso e os ‘mecanismos de defesa’ com que os setores de classes populares encararam os serviços de Estado. o que distancia a investigação do campo da ciência política.

Para que este esforço consiga dar conta das realidades estudadas é preciso problematizar algumas noções enraizadas, como a de que as políticas governamentais são automaticamente públicas, ou seja, todas possuem focos na promoção de efeitos positivos sobre as pessoas alvo. No entanto, é preciso analisar os espaços de poder.

Sugerimos que as políticas governamentais devem ser entendidas como planos, ações e tecnologias de governo formuladas não só desde organizações administrativas de Estados nacionais, mas também a partir de diferentes modalidades de organizações que estão fora desse âmbito, mas que exercem funções de governo. Pensamos aqui em ONGs e movimentos sociais, assim como em organismos multilaterais de fomento e de cooperação técnica internacional para o desenvolvimento. (LIMA & CASTRO, 2015, p. 35)

Os planos de ação do governo se dão em múltiplas escalas e ambientes que muitas vezes não possuem claramente conexões conhecidas. E é preciso também reconhecer que atravessamos nossos objetos de estudo através desse olhar plasmado pelo Estado.

O Estado que possui, como nos afirma Bourdieu (2011), o poder oficial da nomeação, de produzir e impor as categorias de pensamento que nós utilizamos para todas as coisas existentes. Como este detentor da palavra autorizada produz os problemas e também as soluções para eles. E vivemos nesta complexa situação de construir crítica a partir de categorias que foram construídas nesse âmbito ou ainda encararmos como problema porque assim o Estado o fez.

Lima e Castro (2015) apontam que o pesquisador não deve perder de vista que uma antropologia das políticas públicas não representa um fim em si mesmo, mas sim uma via de aceso para o estudo da ação do Estado e das lutas sociais.

Em suas análises, Vianna (2013) demonstra, através de situações etnográficas distintas que se remetem à busca de direitos, como a busca por pessoas desaparecidas, o trabalho com jovens portadores de HIV, ou ainda a luta contra pedofilia (situações apresentadas nos artigos do livro organizado por Vianna) que as tensões e as distinções entre Estado e Sociedade são variáveis.

Os atores envolvidos nessas causas apresentam posições mutáveis que dependem do momento no qual estão, da rede de relações e das próprias reivindicações. Em determinados momentos, criticam a atuação do Estado, sua morosidade e falta de interesse em resolver os problemas, denunciam interesses por trás da dificuldade em acessar seus direitos. Em outros

momentos, se envolvem em situações nas quais trabalham com representantes do Estado, nos mais variados níveis e, é evidente, recorrem a ele. Nada disso deslegitima as reivindicações, apenas demonstra as fronteiras mutáveis nesses cenários. Essas relações ambíguas entre estas pessoas que se constroem enquanto mediadores e as suas reivindicações são complexas e muitas vezes os investem de autoridade devido ao seu engajamento.

Uma das experiências de reivindicação diante de várias instâncias do Estado e do governo do Estado da Paraíba, além da legitimação de agentes dos movimentos sociais e membros dos quilombos foi a realização, em 2011, na cidade de João Pessoa, do I Seminário Estadual de Políticas Públicas para Comunidades Quilombolas do Estado da Paraíba. Esse seminário, de acordo com Eulália Bezerra Araújo (2016), foi uma tentativa de melhorar e avaliar a situação paraibana no cenário de atuação diante dos quilombolas. O Seminário ainda de propôs a auxiliar na construção do Plano Estadual de Políticas Públicas para as Comunidades Quilombolas e estabelecer condições de atuação do Programa Brasil Quilombola (PBQ).

O Seminário foi promovido pela Secretaria do Estado da Mulher e da Diversidade Humana (SEMDH) e contou com a presença das lideranças das comunidades quilombolas da Paraíba e constatou que a atuação do Governo do Estado da Paraíba era incipiente, demonstrando em vários níveis desconhecimento das demandas quilombolas. Araújo aponta que desde a realização do seminário houve algumas inciativas para pactuar o PBQ com os municípios nos quais se registra a ocorrência de quilombos.

Depois do seminário, outra experiência que podemos elencar como importante no caso paraibano foi a realização do Estudo Censitário da População Quilombola da Paraíba (ECPQ-PB), publicado no ano de 2012. Foi realizado pela AACADE e mapeou 38 comunidades paraibanas a partir de critérios socioeconômicos e ecológicos94. Na realização deste Censo merece

ainda destaque a participação efetiva dos quilombolas de todas as comunidades investigadas, pois todos os 50 recenseadores eram moradores destas comunidades, sendo que todas tiveram representações na equipe.

94 O estudo contou com o apoio da CECNEQ-PB, do Banco Mundial, do Projeto Cooperar, e do

O censo ainda de propôs, de acordo com o relatório final, ser diferente do censo tradicional ao priorizar o elemento do parentesco como definidor da questão quilombola. A definição de quem é ou não quilombola é polêmica, pois pode causar conflitos dentro das comunidades e com os mediadores. Essa questão causou discordâncias na condução do estudo, pois ainda despertou o medo de que os que não fossem, por algum motivo, considerados quilombolas, seriam excluídos de qualquer benefício que, porventura chegasse. Por fim, depois de reuniões em todas as comunidades e com os representantes, no censo se definiu que são quilombolas: “os descendentes dos troncos familiares que deram origem às comunidades e o de a elas pertencer efetivamente por nelas se encontrar residindo na data base estabelecida”. Parentesco, descendência e residência são, em conjunto, os elementos utilizados pelo estudo para a definição de quilombolas. (AACADE, 2012, p. 19).

Traremos alguns desses elementos para compreender quais projetos e políticas públicas que chegam até às comunidades, além de perceber as suas maiores dificuldades. O ECPQ-PB ainda representa a atuação dos mediadores e membros dos movimentos sociais demonstrando as articulações realizadas entre comunidades e organizações não governamentais, as comunidades e o Estado, as comunidades entre elas mesmas e internamente com as relações de pesquisa e a dificuldades de realização do trabalho.

A escolha dos recenseadores reflete as ações da AACADE e suas articulações. Visando a valorização do trabalho dos quilombolas, a importância da proximidade e conhecimento prévios da realidade, foi decidida que os recenseadores fossem membros das comunidades.

Iniciou-se, então, um delicado processo de articulação e convencimento para a formação deste quadro. Dois elementos foram decisivos para alcançar os objetivos desta etapa. O primeiro foi a confiança das lideranças comunitárias na AACADE, por esta ter orientado e acompanhado os processos de auto-reconhecimento na maioria destas comunidades. O segundo, foi a reunião realizada em cada uma das 38 comunidades recenseadas, no início do Estudo Censitário, onde foi apresentada e discutida a proposta para as famílias além de se desenvolver um diálogo direto com os possíveis recenseadores, ressaltando a importância de sua participação no Estudo Censitário, já que muitos não se sentiam totalmente responsáveis para desenvolver as atividades da coleta de dados. (AACADE, 2012, p. 47)

Esse censo conseguiu demonstrar a situação de vulnerabilidade social das populações quilombolas95. Quase 25% da população quilombola paraibana

encontrava-se em situação de extrema pobreza96, 76% dos domicílios é

considerado de baixo poder de compra. As pessoas indagadas sobre os problemas sociais vivenciados relataram que quase 40% das famílias sofre com desemprego e mais de 20% possui problemas financeiros. O relatório destaca a situação da região Sertão do estado da Paraíba, na qual 95% dos domicílios recenseados indica a presença de desemprego e/ou problemas financeiros.

As políticas públicas, programas e projetos sociais têm papel fundamental na transformação da vida nesses lugares. As principais atividades econômicas identificadas foram a agricultura (40,9%) e a pecuária (30,8%), contudo apenas 56% dos agricultores afirmaram a posse da terra, sendo que apenas 51% deles possui a escritura. Um dos eixos do PBQ é o acesso à terra, que ainda é um dos maiores problemas existentes nos quilombos. Os outros eixos procuram atender diferentes necessidades e são: Infraestrutura e Qualidade de Vida; Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local; Direitos e Cidadania97.

O ECPQ-PB aponta que 30% das comunidades não possuíam projetos comunitários. Os projetos existentes são, em sua maioria (56,8%), voltados para a infraestrutura: construção de cisternas (24,1%), habitações (15,5%), banheiros e privadas (8,6%).

Um número reduzido de comunidades possui unidades de saúde dentro do território, as que possuem não contam com infraestrutura adequada. Em 58,7% não existe unidade de saúde funcionando, os moradores são atendidos em comunidades vizinhas ou nos municípios próximos. Os problemas se estendem às escolas, que possuem infraestrutura precária, 53,8% relata que o número de salas de aula não atende às necessidades. Além da infraestrutura inadequada, com falta de sala dos professores, cantina, quadra de esportes, etc. há ainda déficit na presença de equipamentos eletrônicos.

95 No capítulo 1, o mapa 03, sinaliza todos os quilombos da Paraíba.

96 É considerada em extrema pobreza a população com renda familiar per capta mensal de até

R$ 70,00.

Araújo (2016), ao analisar a luta por reconhecimento das comunidades quilombolas na Paraíba destaca a importância da atuação das lideranças quilombolas e das entidades, especialmente a AACADE, nesse cenário. As políticas públicas desempenham um papel importante na luta pelo reconhecimento e melhoria das condições de vida nos quilombos paraibanos, portanto ressalta a dificuldade de pleno desenvolvimento dos eixos do PBQ na Paraíba, devido especialmente à necessidade de pactos e parcerias locais (municipais e estaduais) para que estas ações sejam desenvolvidas.

A necessidade de responsabilidade compartilhada entre diversas organizações e articulações em vários níveis é uma das responsáveis pela morosidade da ação do Estado, pois expõe todo o aparato burocrático e interesses conflitantes. A morosidade é percebida pelos líderes das comunidades e incorporada ao discurso de reivindicações:

E também a gente precisa de uma conscientização do governo municipal, tanto daqui como nas outras comunidades a gente sente isso. É preciso que eles despertem pra isso. Que eles têm uma comunidade que tem um histórico diferenciado, que tem uma luta diferenciada e que precisam da ajuda deles também. Então precisa que realmente se faça presente essa... essa parceira entre o governo federal, governo do estado e governo municipal e comunidade local e que realmente as coisas passem, de fato, a acontecer não fique só naquele existe isso existe aquilo e, de fato, a gente não vê acontecer nada de diferente na realidade. Então a gente precisa ver que meios, que caminhos, que atitudes a gente pode buscar até pra é... tornar isso mais, mais acessível, tornar isso mais possível, né? (André, 1986)

Infelizmente a mobilização que existe com as organizações que trabalham com a causa quilombola nem sempre se reflete no âmbito municipal. No caso de Matão ainda há a questão da pertença geográfica / política que fica, em determinados momentos, confusa, histórica e geograficamente o território pertence ao município de Mogeiro98. Contudo, é em Gurinhém que

conseguem a assistência à saúde, escolar, etc.

98 Em uma de nossas viagens de pesquisa, no ano de 2010, funcionários da prefeitura de

Mogeiro foram até Matão para se informar sobre o fato de serem um quilombo. Seis anos depois da emissão da certidão é que alguns representantes do município demonstram algum interesse.