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Capítulo 1: Os Quilombos e o Cenário Nacional

2.1. O lugar do negro e a questão racial no pensamento Brasileiro

A escravidão foi uma realidade no Brasil durante quase três séculos. O trabalho de negros africanos, aprisionados e tornados escravos foi uma das bases sobre as quais se sustentou a economia da colônia e do império durante todo esse tempo. No século XIX a instituição da escravidão passa a ser questionada e perder a legitimidade em vários países, e passa a se configurar em um problema não apenas no sentido econômico e social, mas algo digno de atenção dos intelectuais.

De acordo com Seyferth (1989), a questão racial precede as Ciências Sociais no Brasil, as quais se constituíram plenamente influenciadas por doutrinas evolucionistas, que definem o negro como um problema a ser resolvido, um entrave ao desenvolvimento do país, portanto, algo a ser superado. Ao acreditar na inferioridade das raças não brancas, a solução para o problema seria embranquecer a população.

Cabe ressaltar aqui que o negro já aparece no pensamento brasileiro como problema. Os questionamentos à escravidão se dão, especialmente pelo fato desta ser uma instituição ultrapassada que impedia o desenvolvimento do capitalismo. Os escravos apareceram, como ressalta Seyferth, como uma

consequência desagradável desse processo. A partir de 1880, ao projeto imigrantista se une um pensamento explicitamente racista, que vê nos negros, como raça inferior, e na mestiçagem, um problema para o país, que precisava ser resolvido através da imigração europeia. Os projetos oficiais de colonização não consideravam a possibilidade do negro ser incorporado em posição de proprietário de terras e, nos poucos lugares que ainda aceitaram o trabalho dos negros, era apenas reforçando sua posição servil.

A defesa do “branqueamento” da população dominava as análises pós abolição e nas primeiras décadas do século XX. Sylvio Romero, em 1888, sistematiza a tese do branqueamento, influenciado pelos evolucionistas europeus e crença no darwinismo social. Considerava a população brasileira fundamentalmente mestiça, e acreditava que, através da seleção natural, as características indígenas e negras iriam sucumbir e o fenótipo branco iria dominar. Euclides da Cunha, com sua obra “Os Sertões” (1902) considera a mestiçagem como causa da decadência da população. João Batista de Lacerda, na primeira década do século XX, vai ao Congresso Universal das Raças, em Londres, e apresenta o “branqueamento” como solução para o problema das relações raciais. Acreditava que seria possível “embranquecer” o país em três gerações, através da seleção sexual que levaria os mestiços de mais destaque a buscar o casamento com pessoas de pele mais clara, em um contexto no qual se consolidaria a imigração europeia.

As ideias racistas foram propagadas de forma mais veemente por Oliveira Viana (1923), que buscou demonstrar a superioridade da raça branca. Acreditava que no Brasil colonial e imperial havia uma aristocracia rural ariana e a que a plebe era composta por bastardos mestiços. O poder deveria ser exercido pelos “arianos” como meio de chegar a uma nação “branca”.

Raimundo Nina Rodrigues é considerado o pioneiro dos estudos antropológicos sobre o negro no Brasil. A sua obra substitui a utopia do “Brasil branco” pelo pessimismo do “problema negro”. Buscou justificativas biológicas para a desigualdade considerando a raça negra responsável pela inferioridade do povo brasileiro e argumentava ter a mestiçagem privado o país do progresso.

É com Gilberto Freyre que se inicia uma reação ao racismo e uma tentativa de desmistificar esse “racismo científico”. Com a publicação de Casa

Grande e Senzala (1933), claramente influenciado pelo culturalismo de Franz Boas propõe uma análise histórico-cultural das relações entre as raças no Brasil, abandonando e desqualificando análises biológicas. Esse autor assume a posição das elites ao negar a existência do racismo no Brasil e que aqui as três raças convivem harmoniosamente em uma democracia,

Ao negar a existência de uma questão racial ele “positiva” os efeitos da miscigenação e alimenta o mito da democracia racial que, em suas análises, é sustentado por noções como a tendência à miscigenação dos portugueses, a constituição de uma escravidão mais branda no Brasil, sem relações hierárquicas demarcadas entre senhores e escravos, senhores de escravo paternalistas e a facilidade de ascensão social de mestiços. Segundo Freyre (1933) o problema racial fora resolvido pela abolição da escravidão, as desigualdades seriam sociais e não haveria conflitos raciais, pois, as três raças conviveriam em “harmonia”.

Seyferth (1989) analisa que esse mestiço – celebrado nessa teoria – não é um elemento menos racista. Ele tem por base uma estética branqueadora e uma suposta sensibilidade dos portugueses em obter escravos de regiões consideradas mais desenvolvidas no continente africano, além da crença nas tendências paternalistas que os levaram a desenvolver uma escravidão mais branda e maiores possibilidades de aceitação e ascensão social dos mestiços.

Nessa mesma época se desenvolve no Brasil uma Antropologia Cultural que torna o negro e sua cultura objeto de estudos. Autores como Arthur Ramos e Edison Carneiro constroem trabalhos que destacam a contribuição dos negros para a construção do Brasil através de elementos como a culinária, a religião, o folclore. Apesar da forte influência culturalista esses trabalhos são marcados por um viés evolucionista, pois o negro é estudado através de sobrevivências culturais e embora não mais considerado inferior, essas sobrevivências deixam clara a crença de que a cultura negra é mais atrasada e destinada à aculturação.

Esses estudos procuram demonstrar que o problema do negro seria o das classes pobres e a cor não é central, pois a miscigenação permitiria a formação de um povo mulato. Essa reação ao racismo ajudou na construção de uma visão idealizada da realidade racial brasileira perpetuadora de mitos como a existência de relações afetivas entre senhores e escravos, a

escravidão mais branda em comparação a outros países e a facilidade de ascensão independente da cor da pele.

A partir de 1940, os estudos das relações raciais tomam um novo rumo e se ampliam através da mobilização de militantes e cientistas negros. Com autores como Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos, através do Teatro Experimental do Negro (1944), há uma tentativa de desmascarar o preconceito de cor e a discriminação racial. Esse grupo vai de encontro às análises sociológicas e antropológicas ao apontar a falácia da democracia racial e ao assumir posturas combativas frente ao racismo presente nos escritos dos intelectuais consagrados.

Na década de 1950, a realização de um projeto patrocinado pela UNESCO, com pesquisas realizadas no Nordeste e Sudeste, busca compreender, de forma mais ampla, a situação do negro no país. Intelectuais como Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Roger Bastide e tantos outros conseguem perceber que a situação dos negros no país não sustenta as ideias de democracia racial. As pesquisas de Florestan Fernandes sobre a integração dos negros na sociedade de classes formada no período pós abolição apontando para a noção de que, no Brasil, o preconceito de raça foi substituído pelo preconceito de classe.

Oracy Nogueira, em 1954, realiza uma análise comparando a questão racial no Brasil e nos Estados Unidos, considera que no país norte americano a situação do negro, o preconceito e a discriminação ocorrem pela descendência, o filho de um negro sempre será negro. No caso brasileiro, a cor da pele e as características físicas são muito mais importantes, tendo em vista que são fundamentais para a pessoa ser percebida ou não como negro, do que sua descendência.

Embora pesquisadores como Florestan Fernandes e seus alunos e seguidores tenham creditado os preconceitos existentes no país à questão de classe, em suas obras fica clara a discriminação de raça e de cor que existe. E deixam claro que na sociedade brasileira, a cor da pele é indicador de classe e base para preconceitos e discriminações.