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CAPÍTULO II – GÊNEROS E RECEITAS CULINÁRIAS

2.5 A história do gênero receita culinária

Neste momento, atemo-nos à função histórica do gênero receita culinária, sua prática social, histórica e sua relação de poder, a fim de realizar a

correspondência entre a cultura popular e os textos culinários que a refletem, assim como

O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo. É no comer que essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si. (BAKHTIN,1993, p.245)

A relação do homem com a alimentação nasce junto com o surgimento da humanidade, visto que, a ingestão de alimentos inicia-se na vida intrauterina, pois se trata de uma necessidade fisiológica e vital. Segundo Cascudo (1983), o homem necessita de sua alimentação, gorduras, sais, proteínas, água, hidratos de carbônio, os quais se encontram em carnes, vegetais e minerais. Inicialmente, o homem se alimentou de raízes e frutos, imitando os animais e mesmo quando passou a se alimentar de carne, digeria- a em seu estado natural. Somente, muito depois, passou a cozinhar os alimentos, decorrendo de métodos mais rudimentares até chegar aos nossos dias, deparando-se com sofisticas receitas culinárias, envolvendo a ciência da nutrição.

Nas civilizações antigas, o homem era nômade, caçava, pescava e mudava-se em busca de alimentos. Foi evoluindo e aprendeu a cultivar seus alimentos e a criar os animais, assim como, após a descoberta do fogo (500 mil a.C.) aprendeu a cozer, como indicam ossadas carbonizadas que

acompanham os primeiros vestígios de fogueiras (FLANDRIN & MONTANARI, 1998).

Segundo Flandrin & Montanari (1998), as receitas mais antigas conhecidas são da Mesopotâmia, do segundo século A.C. Acredita-se que os mesopotâmios tinham seus motivos para registrarem sua alimentação. No entanto, necessitavam de alguém que soubesse escrever para poder fazê-lo. Dessa forma, contaram com a ajuda dos egípcios que as registravam. Nota-se, desde então, a possibilidade de preocupação com a arte culinária e com seus registros. Brota, assim, o despertar da relação entre a cultura e a linguagem escrita, sugerindo o início de um futuro gênero textual: receita culinária.

De acordo com os autores, no período paleolítico, o homem já tinha conhecimento de diversos modos de conservação de alimentos, assim como de preparo, passa a escolher como e do que se alimentar, a partir de preferências culturais, que provavelmente, são passadas de geração em geração. Ou seja, já notamos, nesse momento, o surgimento da receita. Sabe- se também, no Egito antigo, a existência de legendas em hieróglifos que citam a receita de bolos especiais preparados com farinha de tubérculos de junça, a partir de uma cena da tumba tebana de Rekhmire (vizir do faraó Tutmósis III, 1504-1450 a.C.).

Os hábitos alimentares vão se transformando e adequando-se às necessidades do ser humano, além de modificar sua relação com os outros, ampliando suas experiências individuais para o coletivo, a alimentação deixa de ser apenas uma necessidade fisiológica, pois

O homem civilizado come não somente por comer (e menos) por fome, para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas, também, (e sobretudo) para transformar essa ocasião em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação: “Nós não nos sentamos à mesa para comer – lemos em Plutarco – mas para comer junto”. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p.108)

Assim, surgem os banquetes. Ou seja, as refeições passam a ser feitas em grupo. Com isso, muda-se a relação entre as pessoas, fortalecendo laços; embora, o comer junto, pode não só unir, como também desunir, excluir, marcando diferenças sociais e revelando poder. A alimentação se torna importante meio para reuniões. Então, passam a existir banquetes mais complexos e, consequentemente, aparecem os cozinheiros como uma nova profissão. Com essa nova tarefa e somado a tudo isso, elaboram-se regras para se fazer uma refeição civilizada.

Os hábitos alimentares e o modo de preparo dos alimentos variam muito de um povo para outro, ainda que sejam os mesmos alimentos. Isso dependerá do estilo de vida de cada um deles, seja no aspecto social, tecnológico, religioso ou econômico. Essas variações sociais podem ser notadas em uma receita culinária a partir de pistas deixadas no texto, como por exemplo, além dos ingredientes, suas quantidades abundantes ou não, os utensílios apresentados, a escolha lexical e outros.

Além disso, a partir das receitas, nota-se troca cultural entre nações, tanto em alimentos quanto em língua:

No curso dos séculos XIV e XV, na Europa, os livros de cozinha apresentam um internacionalismo e um sincretismo evidentes. Essa homogeneidade, que transparece principalmente na denominação dos pratos e saladas, é flagrante nas cozinhas francesa, inglesa, italiana e catalã. A exemplo da língua, a cozinha é o fruto de um

substrato inicial e de diversas influências posteriores. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p.374)

O registro de uma receita nos permite fazer relações sobre a cultura, modo de vida, economia, enfim, sobre características de um grupo social, que mostraremos em nossa análise. Por meio do próprio título da receita, já se tem uma informação valiosa, pois se pode inferir a sua origem, mas é claro que somente esse dado não é suficiente, é necessário, também, fazer uma análise de seu conteúdo, seu vocabulário, sua sintaxe, seu modo de preparo, os ingredientes e os utensílios. Ou seja, colher e examinar o máximo de informações que o texto traz.

Além das diferenças entre os povos, conseguimos perceber nas receitas, por meio de um estudo diacrônico, as evoluções e transformações de uma mesma sociedade, que com o surgimento de novas tecnologias e práticas, adotam modos de preparo e conservação distintos, como antes e depois do surgimento do refrigerador ou do liquidificador, que apresentaremos na adequação teórica, em que comparamos as receitas examinadas de 1843 às receitas do século XXI.

Ressaltamos, até aqui, uma visão ampla da história inserida no domínio discursivo da esfera de alimentação, para demonstrar o longo trajeto do gênero receita culinária, apontando as primeiras influências sociais recebidas e como ele está extremamente vinculado à prática cultural.

A culinária é considerada uma arte normativa e sua forma de divulgação e fixação são por meio das receitas. Dessa forma, é a partir da

língua, de um gênero discursivo, que a sociedade manifesta sua cultura e reflete a vida cotidiana de sua comunidade, retratando sua época.

Consideramos, a partir desses estudos, que a manifestação do gênero receita culinária é um dos mais antigos encontrados; visto que, a preocupação com a alimentação iniciou-se juntamente com a presença do homem, mesmo que por meio de listas envolvendo a agricultura, esta não se dissocia da intenção de se alimentar e da primeira parte de uma receita, os ingredientes. Com isso, percebemos os indícios de seu surgimento desde a antiguidade: As plaquetas de barro do templo da Cidade de Uruk, feitas aproximadamente seis mil anos atrás, com listas de cereais e cabeças de gado, são as formas de escrita mais antigas encontradas. (HORCADES, 2007)

Como já mencionado, além de listas, vimos que foram encontrados, também, legendas em hieróglifos (1504 a.C.) com receitas de bolo. Ainda, existem livros referentes a receitas culinárias escritos há muito tempo, como alguns exemplos de obras que citamos abaixo. No entanto, consideramos, aqui, apenas os mais antigos e os de origem europeia:

- Hedypatheia de Arkhestratus da Grécia clássica. (384-322 a.C);

- Deipnosophistai, obra de Athanaeus, escrita por volta do ano 200; - De re coquinaria é uma coletânea de 468 receitas, verdadeira

colcha de retalhos, que se desenvolveu a partir de um núcleo central e que foi recebendo acréscimos através dos tempos. Por tanto, a rigor, é obra de vários autores. (final do século XV);

- O Livro de cozinha da infanta d. Maria, o primeiro manuscrito em português, escrito no século XVI;

- Le cuisinier François foi publicada por François Pierre de La

Varenne (1650), obra fundadora da moderna cozinha europeia; - Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues (1680)- primeiro livro de receitas editado em Portugal;

- Cozinheiro Moderno de Lucas Rigaud (1785);

- Cozinheiro imperial, de R.C.M., cozinheiro-chefe da corte, o primeiro livro de receitas editado no Brasil, publicado no Rio de Janeiro (1840);

- Cozinheiro nacional de autor anônimo (século XIX) – décima edição publicada em 1910.

Importa-nos aqui, o livro Cozinheiro Imperial de Portugal, de R.C.M (1843), que, como já mencionado, será o objeto de análise desta pesquisa. Foi escolhido por ser o primeiro livro de receitas editado no Brasil, salientamos que este é a segunda edição, pois a primeira foi em 1840.

Ao realizarmos nosso exame, notamos que a estrutura das receitas era um pouco diferente das atuais, de início apresentava o título, seguido da instrução de como preparar o alimento, não possuía a lista de ingredientes no início (ver exemplo 1). O texto, no entanto, era do tipo injuntivo, com verbos no imperativo, como são atualmente. A utilização dos verbos, com essas características, já era uma prática antiga, até mesmo para asseverar a autoridade de quem falava (o cozinheiro imperial). Seu objetivo, porém, ia além do já esperado, era o de sustentar políticas linguísticas para assegurar a

identidade cultural portuguesa aqui no Brasil, como explanaremos mais adiante.

Para ilustrar algumas transformações desse gênero, retiramos duas receitas culinárias de Canja de galinha, a primeira delas, de um livro escrito pelo cozinheiro imperial em 1843 e a outra do Site da Dona Benta4 de aproximadamente 1990.

Exemplo 1:

Caldo para doentes e para sãos

Mettão em uma panella de barro, dous arrateis de polpa de vitella, e uma gallinha, deitem-lhe canada e meia de agua, escume-se, quando for tempo, tempere-se depois de sal, deitem-lhe uma cebola com dous cravos, e deixe-se ferver pouco e pouco; cozida a carne e a gallinha, e o caldo reduzido a ametade, passa-se este pelo peneiro, tire-se-lhe a gordura, e sirvão-se d’elle segundo for necessario.

Arrátel – é a libra portugueza, igual à libra brasileira no pezo.

Exemplo 2: Canja de Galinha Ingredientes - 1 xícara (chá) de arroz 4  Dona Benta é o nome de um tradicional livro de receitas culinárias, lançado em 1940, é uma obra de referência da culinária brasileira. É da Companhia Editora Nacional e tem mais de 70 edições. O livro ensina sobre culinária, disposição da mesa, utensílios de cozinha, cardápios para festas e outros detalhes referentes à culinária. Agora, também, encontra‐se as receitas no site http://www.donabenta.com.br.

- 1 galinha caipira

- 3 colheres (sopa) de óleo ou banha - Cebolinha verde a gosto

Modo de Preparo

Cortar a galinha em pedaços. Temperar. Fritar, corando um pouco, e passar os pedaços para uma vasilha à medida que se corem. Escorrer o óleo ou gordura. Juntar um pouco d´água e levar ao fogo. Quando a galinha estiver cozida, tirar os pedaços, desossando-os e desfiando-os. No caldo que ficou na panela, cozinhar o arroz. Juntar a galinha desfiada e, se preciso, mais água. Quando a canja ficar pronta, servir em prato fundo (sopa).

É incrível a riqueza da diferença entre essas receitas para exploração e comparação, pois podemos notar o estilo da época como em:

panella de barro / vasilha, as formas linguísticas em uso: gallinha/ galinha, a

gramática discursiva: tire-se-lhe a gordura / escorrer o óleo ou gordura, os empréstimos e as pistas textuais que demarcam uma realidade sociocultural:

sirvão-se d’elle segundo for necessário (aqui, podemos inferir abundância).

Podemos observar que os livros de receita culinária são bastante antigos, o que marca a longevidade deste gênero. Segundo Marcuschi (2010), os gêneros acompanham as atividades socioculturais, suas inovações tecnológicas; surgem para atender as necessidades humanas; são instrumentos flexíveis, dinâmicos e plásticos; e são integrados funcionalmente à vida cultural e social.

Essas características, também, estão presentes nas receitas culinárias; à medida que pesquisamos sua natureza histórica e observamo-las em diferentes contextos e época. Notamos que, muitas vezes, exercem diferentes papeis. Comentamos outros exemplos que, igualmente aos anteriores, ilustram essa plasticidade do gênero receita culinária.

Houve uma época, na fase da ditadura, que as receitas culinárias apareciam em evidência nos jornais mais conceituados do país. Para que algum conteúdo fosse censurado, os jornais publicavam naquele espaço uma receita culinária. Desse modo, a receita apresentava-se em outro sistema de atividade e com outro propósito comunicativo, porém mantinha a mesma forma, estrutura, estilo e conteúdo. 

O gênero estudado, também aparece em outra disposição, por exemplo, como em um concurso no Twiter promovido pelo jornal Folha de São

Paulo: “As melhores receitas em 140 caracteres”. No qual, os participantes

deveriam escrever uma receita no espaço disponível, com a devida quantidade de caracteres. Além disso, foi permitido o uso de algumas abreviações, conforme descritas nas regras de participação. Novamente, aqui, encontramos o gênero receita em uma situação diferenciada com outro propósito comunicativo: ganhar a premiação. Vimos ainda que a forma, a estrutura e o estilo utilizados também foram outros, pois os participantes tiveram de se adaptar àquela situação, conforme modelos5 abaixo, das receitas vencedoras:

5 Modelos extraídos de http://www1.folha.uol.com.br/comida/964958‐concurso‐as‐melhores‐

1º - FRUTAS ASSADAS, de @jpesce

Picar 3 peras, 3 goiabas, 3 maçãs. Cobrir c/ 75 g açúcar mascavo, 50 g açúcar refinado, 125 ml mel, 250 ml suco laranja. Assar 30 min

2º - BATATAS, de @FernandaDolci

500 g baby potato, 20 dentes de alho-roxo com casca, alecrim, pimenta-do-reino, sal, azeite de oliva. Forno até dourar

3º - PENNE REFOGADO, de @rmsa73

2 alhos-poró gr. refogados, 500 g ricota, passas brancas e azeite a gosto. Junte 1 pacote de penne já cozido. Quente ou frio (Rafaella Stallone)

Conforme os exemplos citados de receitas culinárias, mesmo em diferentes ocasiões, com propósitos comunicativos distintos e estruturas diversas, ou seja, sofrendo algumas alterações, notamos que as receitas continuaram concebidas como sendo o mesmo gênero. 

Os gêneros podem sofrer diversas alterações, variando de acordo com o sistema de atividade no qual estão inseridos, modificam-se a fim de atender às necessidades das pessoas, não são estagnados e prontos simplesmente para serem seguidos, são construídos por e para a sociedade, além de ser uma forma de comunicação aceita e reconhecida por uma comunidade discursiva.

Sendo assim, para contemplar o objetivo proposto e considerar a questão que foi levantada, utilizamos os três princípios metodológicos sugeridos por Koerner (1995) e estudamos a trajetória do gênero receita, como já mencionamos, privilegiando o entrelaçamento entre a história, a língua, o gênero e a cultura presentes nas receitas culinárias.

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