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CAPÍTULO III – ANÁLISE SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DE KOERNER

3.2.1 A receita como gênero

A receita culinária é um gênero primário, pois segundo Bakhtin (1997), conforme visto anteriormente, os gêneros primários são aqueles que fazem parte da vida cotidiana, pertencem à comunicação verbal espontânea, tem relação direta com o contexto imediato e são simples. A receita culinária, normalmente, é de fácil compreensão e faz parte do uso diário da vida doméstica, embora, também, seja utilizada por grandes chefs em restaurantes, hotéis ou qualquer outro tipo de situação que envolva a alimentação. Parece- nos familiar, pois a utilizamos em nossos lares, trocamos receitas oralmente em reuniões informais. Ou seja, apresenta, ao mesmo tempo, grande emprego caseiro.

Marcuschi (2011), como já mencionado, explica que os gêneros têm uma função e um propósito muito claro que os mantém em uma determinada esfera de comunicação. No caso das receitas, julgamos como principal propósito comunicativo o ensinamento de como preparar um alimento, mesmo que em muitas situações não seja o único a ser estimado. No entanto, ainda assim, não perde sua característica de receita culinária, apresenta estabilidade institucional definida e seu papel já é fixado.

Em relação à estrutura composicional, conforme Bakhtin (1997), notamos que o gênero receita comumente adota estrutura e forma fixa que é composta por duas partes. Na primeira, logo após o título, há ou não a presença do subtítulo ingredientes, colocado no alto, seguido pelos alimentos

que serão utilizados, escritos em forma de lista, um embaixo do outro. Na segunda parte, temos a apresentação de um novo subtítulo modo de preparo, ou com versão parecida modo de fazer, que é composto pela explicação do que deverá ser realizado. Normalmente, são textos curtos com períodos curtos. Os subtítulos podem ou não estar em evidência. No entanto, de acordo com nosso conhecimento sobre tal gênero, ainda que não apareçam, já sabemos do que se trata. Algumas receitas trazem foto para ilustração; outras trazem, ainda, algumas informações extras, como grau de dificuldade, tempo de preparo, número de porções, calorias, sugestões sobre o modo de servir ou de decorar o prato.

Ainda fundamentado em Bakhtin (1997), quanto ao estilo verbal do gênero, escolhas lexicais e estrutura sintática, observamos que nas receitas há pouco espaço para a manifestação do estilo individual. Visto que é um texto meramente informativo/explicativo, o vocabulário é simples de cunho culinário, a estrutura sintática é formada por períodos simples e em ordem direta. As orações iniciam-se com o verbo no imperativo com sujeito elíptico, no infinitivo ou na terceira pessoa do singular.

O conteúdo temático, para o mesmo autor, como já visto, é o modo de versar o assunto no texto. No caso das receitas, a escritura é bastante específica, e sempre se trata de como realizar algum prato, a fim de orientar as pessoas interessadas no preparo de algum alimento. Aborda um texto voltado especificamente à culinária, seja para o uso doméstico ou institucional.

O gênero receita culinária, por referir-se a práticas sociais de alimentação, situa-se no domínio discursivo de esfera da saúde (MARCUSCHI,

2011), que é o que guia, organiza, determina as formas de ação e elege as estratégias acertadas para alcançar o fim pretendido.

Após a elucidação da receita culinária como gênero discursivo, visto a partir de seus elementos, conteúdo temático, estilo verbal e construção composicional, de acordo com Bakhtin (1997); partimos para o item que trata da apreciação das receitas do início do século XIX, conforme a gramática da mesma época.

3.2.2 Análise das receitas de acordo com a Grammatica Philosophica de Jerônymo Soares Barbosa

O livro O cozinheiro imperial, de R.C.M. (1843), conforme explanamos, está inserido em um contexto histórico e linguístico de muitas transformações. De um lado, o Brasil colônia lutando por sua independência e, de outro, Portugal colonizador esforçando-se para manter seu poder. Concomitante a isso, no campo linguístico, a língua é utilizada como forma de domínio, sua transmissão representa vitória.

A Grammatica philosophica da pípar portuguesa, de Jerônimo Soares Barbosa (1822), é obra de um dos gramáticos mais estudados do início do século XIX, na qual, encontramos subsídios que contribuem para o estudo da língua da época e são pertinentes para o exame do Cozinheiro Imperial (1843), visto que pertencem ao mesmo período.

A gramática é dividida em partes: A primeira faz observações sobre a fonética (orthophoepia); a segunda trata sobre os sinais das letras (orthographia); a terceira aborda sobre a espécie das palavras (etymologia) e a quarta versa sobre a coordenação e disposição das palavras no discurso de modo que tenham sentido (sytaxe).

Nessa época, os gramáticos possuem muita preocupação com a fonética, com o modo de falar e utilizam como modelo os nobres, que são aqueles que devem ser seguidos.

Entre as píparaes pronunciações, de que usa qualquer nação nas suas píparaes províncias, não se pode negar que a da Corte, e território, em que a mesma se acha, seja preferível ás mais, e a que lhes deva servir de Regra. (BARBOSA, 1822, p.50)

O gramático considera a corte como exemplo, pois segundo o autor, embora a linguagem usada pelos nobres não fosse a do povo, era das pessoas mais civilizadas e instruídas. Esse pensamento retrata o período de domínio de povos, no qual os dominantes têm o intuito de preservar e assegurar sua língua e sua cultura.

Notamos essas características, também, no Cozinheiro Imperial (1843), que já a partir de seu título podemos fazer inferências sobre esse poder exercido dos mais abastados sobre o povo. A utilização do vocábulo Imperial vem reforçar a ideia de império, visto que o Brasil passava por uma fase de desestabilização, de contrariedade do povo. Como vimos, o imperador ainda estava em formação apesar de declarada sua maioridade, a nação era nova e precisava se afirmar. Sendo assim, era bastante interessante apoiar-se em modos e comportamentos da corte europeia para formar essa nação jovem.

Na introdução do Cozinheiro Imperial (R.C.M., 1843), o autor traz informações sobre a cortesia e comedimento que se deve observar à mesa o bom gastrônomo; e as regras para trinchar e servir. Neste trecho, a concepção da classe dominante ser o modelo de bom e correto, igualmente, está presente.

“... Qualquer d’estas cousas, que parecem bagatelas, se alguem as executa mal e torpemente, provas dá de não ser criado em casa onde há taes pratos, e por conseguinte filho ser de paes pobres e humildes, ou que foi educado com tal deleixo que não sabe comer em mesa pípara, e ignora a arte que exerce.” (R.C.M., 1843, XIV)

Notamos a valorização dos hábitos dos nobres que supostamente são bem educados e sabem comportar-se adequadamente à mesa e a desvalorização dos pobres. Além disso, observamos a intenção da troca ou imposição da cultura.

A ideia de troca cultural é ressaltada, do mesmo modo, quando analisamos as páginas iniciais do livro Cozinheiro Imperial:

“ Esta he a sciencia culinaria, cuja feliz influencia, ao mesmo tempo que concorre para o estado saudavel do nosso corpo, estreita os laços da Sociedade, multiplica as relações, augmenta o commercio e a industria, suavisa os costumes, e reúne os homens em assembléas festivas e fraternas.(...) As nações as mais adiantadas em industria e civilização cultivão assiduamente esta nobre sciencia, e fazem apparecer os seus misteres em numerosas publicações, que formão o Manual dos Artistas em cozinha. Ao Brasil faltava ainda um tratado especial da arte culinaria.” (R.C.M., 1843, V)

Neste excerto, observamos a preocupação dos portugueses em tentar manter relações amistosas e de festividade com os brasileiros. Por meio da alimentação, incentiva-se a aproximação social, estimula-se a realização de reuniões para fins comerciais ou industriais. Ou seja, voltando-se para

negociações, incita a saúde e avigora a intenção de intercâmbio cultural, amenizando as diferenças de costumes.

Sustentamos, de acordo Hollanda (1997), que nesse período, em meio a crise do Brasil devido a abdicação de D. Pedro I até o golpe da maioridade, ainda existia forte influência Lusitana. Portugal continuava tentando se manter no poder, conforme o mesmo autor afirma com a citação de Herculano: “a nossa melhor colônia é o Brasil, depois que deixou de ser colônia nossa” (HERCULANO apud HOLLANDA, 1997, p.211).

Para Leite (2006, p.50), pela metalinguagem purista, “é possível recuperar posições ideológicas dos falantes diante de certos fatos que implicam a defesa e a preservação da história e da cultura do homem, pela língua que usa.” A divulgação e fixação da língua é uma forma de manter poder e assegurar a identidade cultural. Utilizar esse recurso a partir de um livro de culinária, além de persistir o uso de sua língua, favorece a assimilação de sua cultura de modo velado.

Posto isto, O cozinheiro imperial, traz consigo o peso da corte portuguesa, por ser considerado um livro escrito pelo cozinheiro da família real. Assim, influencia o povo a querer se comportar como os nobres europeus, seguindo o conhecido modelo do dominante e do dominado. Valida o comportamento da corte, que é considerado o belo e apropriado, reforça-se a imagem da nobreza com a escolha dos ingredientes, pois se sugere o consumo de alimentos que não são de fácil acesso, como é o caso da galinha, que era considerada uma carne nobre e cara.

É nesse conjunto de fatos que as receitas selecionadas são publicadas e, neste momento, serão examinadas, conforme já mencionado, ponderando as considerações da gramática de Jerônymo Soares Barbosa (1822).

Apresentamos a seguir as receitas:

a) Sopa de leite de gallinha. (Gemmada.)

Deita-se em uma escudela, ou pequena terrina, tres a quatro onças de assucar em pó, tres gemmas de ovos, e meia colher de água de flor de laranjas; bate- se este mixto até que fiquem as gemmas dos ovos branquejando; quanto mais forem batidas, melhor será. Vasa-se, pouco a pouco, sobre esta mistura, um quartilho de água a ferver, voltando-a depressa, para que os ovos se não coalhem. Assim se faz o leite de gallinha; bebe-se o mais quente possivel.

b) Manjar branco.

Depois que um peito de gallinha estiver meio cozido, desfiado, e desfeito em um tacho, com a colher se lhe deita duas canadas de leite, dois arrateis de assucar, e arratel e quarta de farinha de arroz; mechendo-se ao cozer deitando-se-lhe pouco a pouco meia canada de leite, para se refrescar, e um arratel de assucar; quando estiver cozido (o que se pôde conhecer mettendo- lhe a ponta de uma faca, e esta se despegando lizo), deita-se-lhe água de flor, tira-se do lume, e corta-se em pelles. Do mesmo modo se faz de Peixe, ou de Lagosta em lugar de gallinha

Pegai numa gallinha morta, que esteja bem limpa, gorda e branca, arrancai-Ihe as coxas, depois as azas, puxando com as mãos desde que a articulação estiver cortada, a fim de não esfarrapar os peitos. Cortai-lhe. O pescoço em dous pedaços, separai o peito interior, e dividi a rabadilha do costado, retorcendo-a para cima. Cortai com as tesouras as pontas das costelas, das azas e algumas pelles. Separai as coxas das pernas, cortando-as por cima da articulação.

Encurtai as carnes da coxa e das azas, cortai os ossos salientes.

Ponde água a ferver, deitai-lhe dentro todos os pedaços e deixai-os entezar alguns minutos. Tirai-os depois e ponde-os a escorrer sobre uma toalha lavada. Deitai numa cassarola meia quarta de manteiga com uma colher de farinha, e fazei-a derreter, revolvendo-a sempre. Tanto que estiver derretida, ajuntai-lhe um quartilho d’agua a ferver, sal, pimenta, raspas de noz moscada. Um ramo sortido de cheiros , um dente de alho , seis cogumelos partidos, o sumo dum limão, e depois deitai-lhe dentro os pedaços da gallinha. Fazei ferver tudo tres quartos de hora, e tirai-lhe então o ramo de cheiros. Deixai apurar o caldo até ao ponto conveniente, e depois desfazei num prato tres gemmas de ovos com uma colher de nata ; tirai os bocados todos, collocai-os num prato em fôrma de pyramides; deitai as gemmas de ovos desfeitas no molho da cassarola , tendo- a tirado do lume ; e remechendo tudo muito bem, deitai-o por cima da gallinha. Póde-se suprimir os cogumelos, mas não é tão bom.

Adiante, segue a análise adotando a ordem assumida na Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (SOARES, 1822).

3.2.3 Da Orthoepia ou Boa Pronunciação da Lingua Portugueza

Nesta parte, Soares Barbosa (1822), refere-se à pronúncia e aos sons das palavras, ou seja, a fonética. O gramático cita a parte mecânica de como falar, as entonações, as diferentes articulações e modificações de um som que denomina de vozes. Explica sobre as vogais e as divide em oral pura e oral nasal. Montamos uma tabela com alguns exemplos extraídos das receitas:

Gemmada Manjar Branco Fricassé de Frango Oral pura Escudela, terrina Gallinha, tacho Coxas, alho Oral nasal Onças, laranjas Um, com Dente, tanto

Tabela 1

Seguimos abaixo, com a seleção de mais palavras das receitas que se enquadram na divisão das consoantes, segundo sua pronúncia, conforme Soares Barbosa (1822).

Gemmada Manjar Branco Fricassé de

Gallinha Labial pura

-Branda B Bate-se Bocados

-Forte P pequena Peito, pouco,

-Nasal M Mais, mixto Mechendo Manteiga

Labial dental

-Branda V Vasa-se Lavada

-Forte F Ferver, forem Farinha, faca Ferver, fazei Lingual guttural

-Branda G, Gu Gallinha Gallinha Gallinha, gorda -Forte C, Qu Colher Canadas Cogumelos, caldo Lingual Dental

-Branda d Deita-se Desfiado, desfeito Dente, derretida -Forte T Terrina Tacho Toalha, nata Lingual palatal

sibilante -Branda S, Ç

sobre Separai, suprimir

-Forte Z

Lingual palatal chiante

-Liquida S

-Forte X Puxando, coxas

-Branda J,G gemmas Gemmas, ajuntai-

lhe

-Forte CH Mechendo Remechendo

Lingual palatal nasal

-Branda N

-Forte NH gallinha Gallinha gallinha

Lingual palatal

-Pura Liquida L laranjas Leite, lagosta Lavada, limão -Pura forte LH Quartilho,

coalhem Colher Rabadilha,quartilho -Tremolante

liquida R laranjas Farinha Pyramides, apurar, -Tremolante

Forte RR

Terrina, Arroz, arratel Derretido, escorrer

Tabela 2

O autor enfatiza o uso das palavras enclíticas, que são partículas que se encostam às palavras. No caso das receitas, aparecem, na maioria das vezes, acompanhando o verbo e são todos os casos oblíquos dos pronomes, todos eles podem ir adiante do verbo e não são acentuados, como:

Gemmada Manjar Branco Fricassé de gallinha Deita-se, bate-se, vasa-

se, bebe-se, voltando-a Mechendo-se, deitando-se-lhe, tira-se, corta-se Arrancai-lhe, cortai-lhe, retorcendo-a, tirai-os

Tabela 3

Nas receitas, aparece o uso frequente de enclíticas dos verbos. O autor cita as trocas como vícios de linguagem como em tostães e grães, ao invés de tostões e grãos, ou fruita por fructa/fruta, preguntar por perguntar, socresto por sequestro. Esses vícios não foram notados nas receitas, até mesmo por ser um livro do cozinheiro imperial, sugere e incentiva o uso dos bons modos da corte: “N’esta mesma forma poderão continuar os mais comeres com que em na Europa costuma a Policia Real hospedar os seus embaixadores, com seis comeres, tres cêas, e tres jantares...” (R.C.M, 1843, p.264)

Assim como para Soares Barbosa (1822:34), “Entre as differentes pronunciações de que usa qualquer nação nas suas diferentes provincias, não se póde negar que a da côrte e territorio em que a mesma se acha, seja preferível ás mais, e aque lhes deva servir de regra”.

3.2.4 Da Orthografia ou Boa Escriptura da Lingua Portugueza

Soares Barbosa (1822) refere-se à ortografia como a arte de escrever certo. Uma das regras apontadas é para não dobrar consoantes ou vogais no final ou início das palavras. De fato as dobras de letras que

encontramos em nossos textos foram apenas no meio da palavra como em gallinha, collocai, gemma, cassarola, assucar, pelle etc.

As nasais claras podem vir com o til por cima: ã, õ ou com M ou N adiante. Porém, sendo finais ou ficando antes de B, P, M, sempre devem vir seguidas por M, nos demais casos com N. Nas receitas localizamos gemma, limpa, pontas, entre outras.

Referente às dobras de letras, nenhuma ortografia dobra nas palavras as quatro consoantes V, Z, J, K, nem tão pouco CH, LH, NH, GU, QU. As outras nunca se dobram, a não ser que estejam entre vogais, como por exemplo, o R quando é forte e está entre vogais, utiliza-se dois. Seguem, alguns exemplos retirados das receitas: arrateis, arrancai, derretida, escorrer.

No caso do vocábulo pyramide, encontrado na receita fricassé de

gallinha, ainda não está ajustado à gramática da época, pois, de acordo com

Jerônimo S. Barbosa (1822), o uso do ypsilon só permaneceria nas palavras de origem Grega. Porém, nas palavras que passaram a ter seu uso vulgar, trocaria o y por i, e, assim, deveria ficar piramide.

Quanto ao uso do S, SS ou Ç, a regra é mais geral, sujeita a exceções. Toda vez que o S estiver entre as vogais e for pronunciado como Z, emprega-se somente um S; e se se pronunciar como S entre as vogais, não tendo a palavra latina TI ou C na penúltima sílaba, usa-se o S dobrado. Ou seja, SS, caso contrário, emprega-se Ç. Apontamos como exemplo em nosso texto a palavra assucar.

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