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3. A História como arma de combate

3.1 Desdobramentos da crise da consciência europeia

3.1.1 A historiografia da crise da consciência europeia

Em La crise de la conscience européenne (1934), Paul Hazard identificou o intervalo entre 1680 e 1715 como o período da chamada “crise da consciência europeia", no qual se formulou o “espírito do século XVIII”. Nesses trinta e cinco anos, as “noções mais comummente aceites, a do consenso universal que demonstrava Deus, a dos milagres, eram postas em dúvida.” 283 Em outras palavras:

Tratava-se de saber se se devia crer ou não; se se devia obedecer à tradição, ou revoltar contra ela; se a humanidade continuaria o seu caminho fiando-se nos mesmos guias, ou se alguns chefes novos a fariam rodar para conduzir a novas terras da promissão.284

Toda a tradição, envolvendo seus aspectos religioso e político, passou a ser questionada. Ainda segundo Hazard, a “grande batalha de ideias realizou-se antes de 1715, e mesmo antes de 1700”.285 Os combatentes? Malebranche, Fontenelle, Locke, Leibniz, Bossuet, Fénelon, Bayle e Espinosa. A difusão das ideias originadas nessas “batalhas” intelectuais deu-se a partir de 1715, o que foi objeto de uma outra obra,

283

Paul Hazard. A crise da consciência europeia (1680-1715). Tradução de Óscar de Freitas Lopes. Lisboa: Edições Cosmos, 1948. p.8.

284

Paul Hazard. A crise da consciência europeia, op. cit., p.7.

285

intitulada La Pensée Européenne au XVIIIe Siècle, publicada postumamente em 1946.286

A partir da obra de Hazard, o tema da “crise da consciência europeia” seria continuamente debatido pela historiografia sobre o Iluminismo. Na verdade, a própria periodização das Luzes tornou-se foco de discussões, e ainda hoje persistem diferentes visões. Veja-se, por exemplo, a obra de Peter Gay, na qual o autor não situa as origens do fenômeno ilustrado em finais do século XVII. Em The Enlightenment: An

Interpretation (1966), ele defendeu que filósofos do Iluminismo constituíam uma única

“família”, com um programa comum de secularização, humanidade, cosmopolitismo e vários tipos de liberdade. Três gerações de ilustrados são assinaladas: a primeira, dominada por Montesquieu e em parte por Voltaire, teve por base a divulgação dos escritos dos ingleses (Newton e Locke) até 1750; a segunda, formada por autores que alcançaram a maturidade na metade do século (Franklin, Buffon, Hume, Rousseau, Diderot, Condillac, Helvétius, d’Alambert), fundindo anticlericalismo e especulações científicas; e a terceira, de Holbach, Beccaria, Lessing, Jefferson, Wieland, Kant e Turgot, envolvia uma mitologia científica e metafísica materialista, economia política, reforma legal e práticas políticas. Ou seja, de uma geração a outra houve uma continuidade no estilo de pensamento, bem como um crescente radicalismo, inclusive em relação à religião, passando-se paulatinamente do deísmo ao ateísmo.287

O ano de 1715 – a data do fim da crise da consciência europeia, segundo Hazard – é o momento em que Norman Hampson considera o início do Iluminismo, em The

Enlightenment (1968). Trata-se da data que assinala o fim das guerras de Luís XIV.

Esse primeiro momento do Iluminismo, marcado pela estabilidade e pelo surgimento de novas ideias e atitudes, encerrou-se apenas com o início das guerras de Frederico, o Grande, em 1740. O segundo momento vai de 1740 a 1789, da Guerra de Sucessão Austríaca até a Revolução Francesa, e é caracterizado por grandes transformações nascidas, em grande parte, devido aos problemas originados no primeiro período.288

Chega a ser curioso que, em relação à “crise da consciência europeia”, Hampson demonstre-se indignado por ter Hazard “suggested that the first flowering of the Enlightenment should be sought, not in the eighteenth century, but in the second half of

286

Paul Hazard. O pensamento europeu no século XVIII. Tradução de Carlos Grifo Babo. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p.8.

287

Peter Gay. The Enlightenment: An interpretation.The rise of the modern paganism. New York: Norton & Company, 1995. p.ix-xiv e 3-27.

288

the seventeenth”. Christopher Hill, segundo Hampson, argumentou existirem atitudes geralmente atribuídas ao Iluminismo já no século XVI, ao menos na Inglaterra. Continuando assim, em breve poderia haver historiadores iniciando as Luzes no século XII, ironiza Hampson.289

Franco Venturi, em texto intitulado “L’illuminismo nel Settencento europeo” (1960), também entende que as origens do Iluminismo podem ser encontradas no período da “crise da consciência europeia”. Uma de suas preocupações principais é a das repercussões políticas das novas ideias, e as ideias inglesas contribuíram para precipitar as mudanças na França. A questão é retomada em Utopia e Reforma no

Iluminismo (Utopia e riforma nell’Illuminismo, 1970), no capítulo “Cronologia e

geografia do Iluminismo”, no qual propõe um olhar para a Europa das Luzes no seu conjunto. Venturi enxerga um movimento comum, uma tendência geral em toda parte: a expansão da sociedade, da política e das ideias no início do século XVIII, uma crise nos anos 30, a existência de um ápice nos anos 50 e 60 e um período de profunda perturbação no último quartel do século. Todavia, o passar dos anos vai tornando distante as discussões relacionadas à “crise da consciência europeia”, de maneira tal que, em meados do século:

não estamos mais adiante da crise da consciência européia do início do século. Nem de uma continuação das disputas entre deístas e antideístas, entre jansenistas e molinistas, entre laxistas e rigoristas, entre regalistas e curialistas, entre as diversas escolas nascidas do racionalismo cartesiano, ou das diversas correntes do direito natural. Alguma coisa de novo estava nascendo. Da Frühaufklärung estamos passando à Aufklärung.290

Pierre Chaunu, em La Civilisation de l’Europe des Lumières (1971), delimitou a época da Ilustração dividindo-a em dois momentos principais: o primeiro, entre 1680 e 1715, é aquele que compreende, como assinalou Paul Hazard, a crise da consciência europeia; o segundo, entre 1730 e 1770, é o da “Vital Revolution”, caracterizado pela diminuição das leituras em latim e pela alfabetização em massa da população ocidental.291

289

Norman Hampson. The Enlightenment, op. cit., p.15.

290

Franco Venturi. The European Enlightenment. In: Italy and the Enlightenment: Studies in a Cosmopolitan Century. Traduzido por Susan Corsi. London: Longman, 1972; Cronologia e geografia do Iluminismo. In: Utopia e reforma no Iluminismo. Tradução de Modesto Florenzano. Bauru: EDUSC, 2003.

291

Pierre Chaunu. A civilização da Europa das luzes. Tradução de Manuel João Gomes. Lisboa: Estampa, 1985. v.1. p.19-23.

Mas o resgate mais significativo da obra de Hazard foi feito por Jonathan I. Israel, em Radical Enlightenment (2001), no qual defendeu o ser período entre 1650 e 1680 o verdadeiro momento da “crise de consciência europeia”, e o período entre 1680 e 1750 como sendo “the more dramatic and decisive period of rethinking when the mental world of the west was revolutionized along rationalistic and secular lines”.292 Por desconsiderar a segunda metade do século XVIII como o momento crucial do pensamento ilustrado, acabou por operar uma mudança considerável nas concepções historiográficas. Israel enxerga um duplo movimento no Iluminismo, inspirado por duas tendências advindas do processo de racionalização e secularização, que pôs em questionamento a antiga hegemonia da Teologia, levando à emancipação da Filosofia por volta de 1650: uma tendência moderada e outra radical. A primeira tendência contestou o conhecimento escolástico-aristotélico, tentando acomodar os novos avanços da matemática e da ciência com a autoridade das Sagradas Escrituras. Seria baseada principalmente em Descartes e desenvolvida, entre outros, por Newton e Locke na Inglaterra, Thomasius e Wolff na Alemanha, Nieuwentijt e s-Gravesand nos Países Baixos, e Feijóo e Piquer na Espanha, tal tendência. A segunda tendência teria se desenvolvido principalmente a partir das ideias de Espinosa, e, entre outros pilares da civilização judaico-cristã, rejeitou todo o compromisso com o passado, questionando as estruturas tradicionais, a Criação, a veracidade da Bíblia e de qualquer fé, a intervenção da Providência divina nos assuntos humanos, os milagres, a recompensa e a punição após a morte, a autoridade eclesiástica, a existência de qualquer hierarquia social ordenada por Deus, privilégios nobiliárquicos e a sanção religiosa da monarquia. Desde suas origens, nos anos 50 e 60 do século XVII, tal tendência dos inícios do Iluminismo combinou imensa reverência pela ciência e pela lógica matemática com formas de deísmo não-providencial, além de questões relacionadas de alguma forma a materialismo, ateísmo, republicanismo e tendências democráticas.293

O autor dá a entender ser a tendência moderada uma reação representada pela tendência radical. Vale a pena observar que Jonathan Israel toma as ideias de Espinosa como o critério de avaliação do grau de radicalismo dos demais pensadores: quanto mais próximo dele, mais radical. É a partir desse parâmetro que ele estabelece a classificação no interior das duas tendências. Seguindo esses critérios, Israel define

292

Jonathan Israel. Radical Enlightenment. Philosophy and the making of modernity (1650-1750). New York, Oxford University Press, 2001. p.20.

293

Verney como “chief spokesman of the moderate Enlightenment in Portugal, and an ardent advocate of Locke and Newton”, destacando a defesa vigorosa que fez da censura para afastar as ideias perigosas.294

Pode-se sustentar que os debates de Verney ainda remetem àqueles do período da “crise da consciência europeia”. A partir do segundo capítulo desta dissertação, pôde-se ver como as discussões de Verney estavam atadas às discussões do “Frühaufklärung” de que Venturi fala. Cabe ainda aprofundar mais as relações entre as ideias de Verney e o “Iluminismo radical” de Israel, o que será feito mais para frente.

Antes, porém, deve-se mencionar a crítica desferida por Chantal Grell a um aspecto da concepção de Hazard. Segundo Grell, Hazard incorreu em um esquematismo improcedente ao tratar de uma das manifestações do período entre 1680 e 1715, quando opôs erudição e história filosófica.295 A erudição é outro aspecto da obra de Verney, e também deve ser observado.