3. A História como arma de combate
3.1 Desdobramentos da crise da consciência europeia
3.1.2 Na República das Letras
Em carta enviada a Muratori a 6 de Fevereiro de 1745, Verney elogia sua obra
Difetti della Giurisprudenza (1742), afirmando que “nada empreendes que não seja
habilíssimo e altamente apropriado à maior utilidade da república das Letras”.296 Muratori comentaria, em carta remetida a Verney, datada de 13 de abril de 1749, que “não tenho outras relações com mais ninguém na república das letras”.297
A ideia de uma “República das Letras”, ou “República Literária” (Respublica
literarum), cujas origens remontam ao humanismo renascentista, postulava uma
igualdade de princípios entre os sábios de toda a Europa. Assim, por “república”, entendia-se também um significado distinto daquele discutido no capítulo anterior desta dissertação. Naquele caso, Verney utilizava-a tanto para remeter ao Estado “civil” quanto à Igreja, também vista como um Estado. Todavia, quando fala em “República das Letras”, o termo república adquire sentido de uma união de sábios em busca da
294
Jonathan Israel. Radical Enlightenment, op. cit., p.115.
295
Chantal Grell. L’histoire entre erudition et philosophie: etude sur la connaissance historique à l’âge des lumières. Paris: PUF, 1993. p.22. Rogério Forastieri da Silva lembra que, para Owen Chadwick, a “crise de consciência europeia” circunscreve-se a uma elite intelectual. História da historiografia. Bauru: EDUSC, 2001. p.187.
296
Carta de Verney a Muratori, 6 de Fevereiro de 1745. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de história
do direito. Século XVIII – Iluminismo católico: Verney: Muratori. 1950. p.241.
297
Carta de Muratori a Verney, 13 de Abril de 1749. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de história do
investigação da verdade, independentemente de seus Estados de origem. Trata-se, portanto, de uma rede horizontal de homens, que atravessa as diferenças assinaladas pelos limites geográficos políticos.
No século XVII, e particularmente durante o período da crise de consciência europeia, a pesquisa científica e a busca por um saber liberto das ortodoxias religiosas levou as atividades dos sábios a se desenvolverem em relativa clandestinidade, ou seja, fora do alcance dos Estados, muito embora houvesse muitos casos de mecenato estatal, do que muitas das Academias modernas são exemplos.298 Claro que, não obstante a cooperação científica, havia também conflitos intelectuais e ideológicos.299 Para Reinhart Koselleck, a República das Letras fora estabelecida na esfera privada engendrada pelas guerras de religião. Nela, desenvolveu-se o espaço da crítica. Como o próprio autor menciona, a República das Letras foi assim descrita pelo editor do jornal
Nouvelles de la republique des lettres, Pierre Bayle (1647-1706):
É a liberdade que reina na república das letras. Essa República é um Estado extremamente livre. Nele só se reconhece o império da verdade e da razão; e, sob os auspícios delas, trava-se guerra inocentemente contra quem seja. Os amigos têm que proteger-se dos amigos, os pais dos filhos, os sogros dos genros: é como um século de ferro. Ali, todos são soberanos e podem ser julgados por todos. 300
A ideia de que lá todos podem ser julgados por todos leva à questão do surgimento da esfera pública e, logo, da opinião pública.301 Naquele contexto, três eram as formas de transmissão e circulação de ideias: os impressos (periódicos, publicações literárias, revistas, spectateurs, manifestos, gazetas), as viagens e as correspondências.302
Em relação aos impressos, deve-se apontar a existência de redes de distribuição por toda a Europa, fossem elas clandestinas ou oficiais. A esse respeito, pode-se lembrar a discussão sobre a publicação do Verdadeiro método de estudar, mencionada no
298
Cf. Didier Masseau. República das Letras. In: Michel Delon (dir.). Dictionnaire européen des
Lumières. Paris: PUF, 1997.
299
Donald R. Kelley. The Science of History. In: Faces of History. Historical enquiry from Herodotus to Herder. New Haven & London: Yale University Press, 1998. p.209.
300
Apud Reinhart Koselleck. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999. p.97.
301
Sobre a possibilidade do uso do conceito de “esfera pública literária” em Portugal setecentista, e particularmente relacionado à obra de Verney, ver Eduardo Teixeira de Carvalho Júnior. Verney e a
questão do Iluminismo em Portugal. Dissertação de Mestrado, UFPr, 2005. A respeito do debate sobre a
questão da opinião pública, que envolve Jürgen Habermas e Koselleck, entre outros, ver Dena Goodman. Public Sphere and Private life: Toward a Synthesis of Current Historiographical Approaches to the Old Regime. History and Theory, V. 31, No. 1 (Feb., 1992). p.1-20.
302
Ver Didier Masseau. República das Letras, op. cit.; Vincenzo Ferrone & Daniel Roche. Historia e historiografía de la ilustración. In: _________. (eds.). Diccionario histórico de la Ilustración. Madrid: Alianza Editorial, 1998. p.462-465.
primeiro capítulo dessa dissertação. Também a divulgação das obras de Verney, especialmente em famosos meios literários europeus, como as notícias veiculadas no
Jornal des Sçavans e no Giornale de’Letterati romano, exemplificam a divulgação que
Verney alcançava naquele contexto, o que é atestado também pela recomendação de sua obra por importantes nomes do cenário intelectual do período.
As viagens também favoreciam a circulação de ideias, e a ida de Verney à Itália dá mostras de sua relevância, já que foi lá onde adquiriu a bagagem intelectual que apresenta nas suas obras, e especialmente no Verdadeiro método de estudar.303
Antes dele, a ida à Itália dos beneditinos de Saint-Maur Bernard de Mautfaucon (1655-1741) e, principalmente, Jean Mabillon (1632-1707), no final do século XVII, incentivou a divulgação do chamado método crítico na península. Embora nem todos na Itália lhe tenham sido receptivos, Mabillon deixou como discípulo o beneditino italiano Benedicto Bacchini.304 Foi Bacchini quem ensinou a Muratori rudimentos de paleografia e estimulou a aprendizagem de línguas estrangeiras, como francês, espanhol e grego. Em 1700, Muratori sucedeu-o como bibliotecário do duque de Módena.305
As vinte cartas trocadas entre Verney e Muratori fazem parte do imenso epistolário do sábio italiano, composto por mais de seis mil unidades conservadas. Tal quantidade, como destacou Bruno Neveu, atesta o reconhecimento que o erudito italiano obteve no circuito da República das Letras, e especialmente por parte dos sábios franceses, do que são prova as correspondências que trocou com Mautfaucon e Mabillon.306 Suas relações com Leibniz (1646-1716) também são conhecidas.307
A influência de Muratori entre intelectuais ibéricos, além de Verney, é também sabida, haja vista D. Gregorio Mayáns y Siscar (1718-1801).308 No caso da Espanha, como apontou Antonio Mestre Sanchis, desde os novatores do século XVII, intelectuais procuravam superar o sentimento de “decadência” intelectual, entre outros meios, pelo esforço em seguir a evolução das correntes historiográficas europeias, particularmente
303
Pode-se também ver a figura do estrangeirado como o cosmopolita português. Ver Franco Venturi. Il Portogallo dopo Pombal. In: Settecento riformatore: IV. La caduta dell’Antico Regime (1776-1789). 1º Tomo. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1984. p.266.
304
Cf. Arnaldo Momigliano. Los discípulos italianos de Mabillón. In: Ensayos de historiografía antiga y
moderna. México: Fondo de cultura económica, 1993.
305
Arnaldo Momigliano. Los discípulos italianos de Mabillón, op. cit., p.240.
306
Bruno Neveu. “Muratori et l’historiographie gallicane”. Erudition et religion aux XVIIe et XVIIIe
siècles. Paris: Éditions Albin Michel, 1994.
307
Ver Sergio Bertelli. Le “antichità” estensi”. In: Erudizione e storia in Ludovico Antonio Muratori. Napoli: Nella sede dell’Istituto, 1960.
308
Javier Fernández Sebastián. Península Ibérica. In: Vincenzo Ferrone; Daniel Roche (eds.). Diccionario
dos bolandistas e dos maurinos.309 E, mesmo entre intelectuais espanhóis e portugueses, havia rica troca de correspondências, como estudou Marie-Heléne Piwnik.310 Lembre-se que Mayáns, como aludido no primeiro capítulo desta dissertação, recomendou a leitura de “El methodo de estudiar de Barbadiño”.
O pensamento de Verney, além de suas proximidades com o de Muratori, encontra afinidades com os dos eruditos franceses, a serem analisadas mais adiante. Por ora, vale lembrar que há em sua obra algumas páginas dedicadas ao beneditino galego Benito Feijóo (1676-1764), autor dos oito tomos do Teatro Crítico Universal (1726-1739). Verney afirma fazer “mais de doze anos que o li” e que “ali se encontra muita coisa boa”, mas que “para um bom Filósofo, ou homem que há-de seguir a boa Filosofia, pode ser prejudicial”. No seu entender, se lido “à luz de uma boa Lógica”, “qualquer homem de juízo dirá o mesmo sem ter mais lido o Feijóo” (Metafísica, p.158-63).
Salgado Jr. observa afinidades entre Verney e Feijóo em relação à valorização das novidades da investigação científica e às alterações nos pontos de vista tradicionais que estas implicam. Lembra também o combate feito pelo espanhol, sobretudo a partir do sétimo volume do Teatro Crítico Universal, aos planos pedagógicos vigentes na Espanha. Todavia, Verney talvez não conhecesse a obra completa, apenas os primeiros tomos. Além dessas, poder-se-ia sustentar que semelhanças também poderiam ser encontradas em relação ao método crítico. Sobre Feijóo, Antonio Mestre Sanchis lembra sua crítica do ensino dominado pela escolástica, o uso privilegiado da bibliografia francesa, inclusive de Pierre Bayle, sua atitude reformista, cuja base seriam os maurinos, seus elogios a Bacon, Locke e Newton e a sua censura ao estado decadente da cultura e investigação espanholas daquele momento.311
Verney parece defender a abertura dos letrados portugueses aos debates estabelecidos na República das Letras, condenando, assim, a atitude intelectual que, segundo ele, recusava-se a “modernização”. Por outro lado, deve-se observar que é verdadeira também para Verney a afirmação de Javier Fernández Sebastián, para quem:
si la idea de una alta cultura sin fronteras es bien aceptada [entre sábios portugueses e espanhóis setecentistas, particularmente os dos finais do século], lo cierto es que la adhesión a la profana republique
des lettres raramente prevalece sobre la lealtad básica a una pátria
espiritual – la universitas christiana – teñida a veces de un vago
309
Antonio Mestre Sanchis. Apología y crítica de España en el siglo XVIII. Madrid: Marcial Pons, 2003. p.71-94.
310
Marie-Hélène Piwnik. Introduction; Correspondances erudites. In: Echanges erudits dans la Peninsule
Iberique (1750-1767). Paris: Fondation Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1987.
311
cosmopolitismo religioso, o sobre el sentimiento de apego a la res
publica civil (la catolicidad solía entenderse como un rasgo inherente
a la nacionalidad. 312
A preocupação de Verney não é com a simples adesão às discussões em voga na República das Letras, mas com a defesa do patrimônio católico ante seus inimigos, particularmente os “epicureus”.