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Contra os historiadores da Academia Real da História Portuguesa

século XVI. Querendo eles livrar-se de vários argumentos tirados dos

3.3 Comparação com a geração precedente: afastamentos e aproximações

3.2.1 Contra os historiadores da Academia Real da História Portuguesa

Em carta a Verney, Muratori relatou ter lido “o primeiro volume da Real Academia de Lisboa”, na verdade a Academia Real da História Portuguesa (ARHP), e ter notado “que era para desejar nele algo de uma crítica mais sã”.O lamento era de que os estudos não eram ainda, em Portugal, “suficientemente expurgados da ferrugem das épocas

353

José Vitorino de Pina Martins. Um discurso de Luís António Verney sobre a aliança da Filosofia moderna com a Teologia. Revista da Universidade de Coimbra. v. XX, 1962.

354

José Vitorino de Pina Martins. A epístola de Luís António Verney ao marquês de Valença. Miscelânea

bárbaras”. 355 Verney viria a concordar: “O que escreves àcerca do facto de os nossos engenhos serem impedidos de julgar fora de quaisquer opiniões preconcebidas, bem como de devermos desejar uma crítica mais sã nos escritos da nossa Academia, é exactíssimo.” 356

As causas da ausência de uma boa crítica seriam “o péssimo gosto da Eloquência e o da Filosofia”. Nesse sentido, acusa o peripatetismo de seus membros:

Sendo certo que a Filosofia aristotélica [...] se preocupa só com bagatelas e cavilações, daí resulta que aqueles que imbuem o seu espírito com tais opiniões, são depois como que atirados para qualquer ciência como por meio de uma tempestade; nela não sabem filosofar de outra maneira e na Filosofia só fazem das suas. 357

Mas não pretende generalizar. Nem todos os acadêmicos são condenáveis:

conheço também alguns que cultivam a erudição e o critério, que

peregrinaram já por alguns países da Europa e que daí trouxeram para a sua terra o bom gosto das Letras. Quanto a estes, porém, para

não incorrerem em ódios e se não sentirem em perigo, vêem-se

obrigados a ocultar o que sentem. 358

Ou seja, sugere que conhecera a crítica já em Portugal, mesmo que por meio de autores que a aprenderam no estrangeiro. Aqueles que a conhecem são pressionados a não se manifestarem. A referência é a Frei Miguel de Santa Maria (1657-1728), que, conforme informa Innocencio Francisco da Silva, foi um eremita agostiniano, prior do Convento de Santarém e membro da ARHP. Em 1726, publicou obra na qual defendia não ter sido S. Tiago, mas S. Paulo aquele que teria ido à Espanha pregar o Evangelho.359 Essa obra recebeu resposta do padre teatino Manuel Caetano de Sousa (1658-1734), intitulada Expeditio Hispanica Sancti Jacobi (1727-1732), a qual Verney afirma ter lido:

Assim, logo um frade Teatino, chamado Sousa, num grosso volume muito condensado, veio em defesa de S. Tiago. Ignoro o que pensarás desse livro. A mim, na verdade, parece-me que ele, depois de muito trabalho e muito suor, só conseguiu provar ter o seu autor defendido uma péssima causa, nada assente em sólidas razões, de modo que, lido

355

Carta de Muratori a Verney, 26 de Abril de 1745. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de história do

direito, op. cit., p.256.

356

Carta de Verney a Muratori, 15 de Dezembro de 1745. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de

história do direito, op. cit., p.259.

357

Carta de Verney a Muratori, 15 de Dezembro de 1745. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de

história do direito, op. cit., p.259.

358

Carta de Verney a Muratori, 15 de Dezembro de 1745. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de

história do direito, op. cit., p.260. Grifos nossos.

359

Innocencio Francisco da Silva. Diccionario bibliographico portuguez. Lisboa: Na Imprensa Nacional, 1860, tomo V. p.243.

o livro, plenamente acreditei naquilo sobre que antes apenas tinhas dúvidas: não ter o Apóstolo nunca aportado às Espanhas. (Grifo nosso.)360

Críticas no mesmo sentido a Manuel Caetano de Sousa também estão presentes no

Verdadeiro método de estudar:

Eu creio que D. Manuel Caetano foi douto e soube mais do que o comum dos Portugueses, ainda que eu não posso julgar por experiência, porque nunca o tratei; mas pelas suas obras o discorro; mas não são elas tais, que ponham um homem na primeira esfera

dos doutos. E sei eu muito bem que a sua Expeditio Hispânica é mui pouco estimada em muitas partes; e que não pode obrigar os

homens mais doutos e de uma crítica mais purgada a que mudassem de opinião sobre a vinda de Santiago; e eu sou um daqueles que ainda não se pode persuadir das suas razões. Mas querê-lo comparar com

outros grandes homens da Europa é mostrar que não entende este ofício. (Retórica, p. 127. Grifos nossos.)

Ou seja, qualquer homem de “uma crítica mais purgada” perceberia ser Sousa um autor sobrevalorizado entre os portugueses.

Para Norberto Ferreira da Cunha, a crítica histórica já era um princípio norteador entre os letrados da ARHP. Inclusive em relação a Manuel Caetano de Sousa, o qual fora, em grande parte, um dos responsáveis pela sua fundação, e um dos defensores do método crítico, muito embora ainda considerasse que a busca da verdade se devesse procurar ainda, além de na Razão e na Conjectura, na Autoridade e na Tradição.361 Todavia:

para os acadêmicos de maior notoriedade a crítica do conhecimento histórico e, com ela, a persecução da verdade histórica não deviam ser condicionadas nem limitadas por imperativos eclesiásticos ou pela tradição religiosa; isto porque a verdade nunca era contrária aos princípios da religião, ainda que o pudesse ser às tradições da Igreja.362

Tal posicionamento condiz com os objetivos da Academia, os quais, conforme constava dos estatutos, residiam principalmente na narração da História Eclesiástica de Portugal, a Lusitania Sacra.363

Ferreira da Cunha questionou as acusações de Hernâni Cidade, para quem a Academia teria sido uma instituição monolítica, que primava pela ausência de critério

360

Carta de Verney a Muratori, 15 de Dezembro de 1745. In: Luís Cabral de Moncada. Estudos de

história do direito, op. cit., p.260.

361

Norberto Ferreira da Cunha. Elites e acadêmicos na cultura portuguesa setecentista. Lisboa: Imprensa Nacional, 2000. p.30.

362

histórico, e de Teophilo Braga, para quem seus trabalhos seriam pouco mais do que Retórica emproada e decadente. A própria consideração de Verney presente na carta enviada a Muratori foi questionada. Assim, pergunta-se: tinha razão Verney ao propor que “uma nova História só era possível no quadro duma nova epistemologia de matriz antiperipatética e newtoniana?”. Conclui negativamente, pois, “se alguns acadêmicos peripatéticos tinham uma concepção apologética e edificante da História”, estes não eram todos, já que “havia também peripatéticos na Academia”, para os quais “a História ‘sagrada’ de Portugal e os seus ‘exemplos’ heróicos e santos só eram aceitáveis como verdadeiros se fossem sufragados por documentos autênticos e não pela autoridade duma tradição (por muito respeitável que fosse)”.364 O moderno método crítico não seria incompatível com Aristóteles, e os acadêmicos seriam prova disso.

No capítulo anterior, viu-se que, para Verney, “modernidade” e “aristotelismo” são categorias opostas, de impossível conciliação. Aí reside o problema principal. Como o próprio Ferreira da Cunha afirma, os acadêmicos eram peripatéticos a serviço de uma História de concepção apologética e edificante, inclusive Manuel Caetano de Sousa e, o que não deixa de ser curioso, Frei Miguel de Santa Maria. 365 Não seria exagero supor que Verney pretendesse, de alguma forma, distanciar-se da geração de acadêmicos que o precedeu. Mas, deve-se dizer, a distância entre eles não era tão grande. Ambos consideraram a compatibilidade entre crítica e religião, como fizera Mabillon, e como também farão as gerações posteriores. As diferenças mais claras se situam na recusa, por parte de Verney, do aristotelismo, inclusive identificado ao argumento por autoridade, e numa possível concepção de História na qual estão praticamente ausentes os sentidos providencialista e escatológico.