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ignora V. P que dano têm feito os princípios destes dois homens no

3.2 Em defesa da rainha destronada

3.2.2 Uma história da Teologia

Para chegar aos “hereges”, Verney traça uma história da Teologia. Deus é concebido como “um objecto insensível e pouco inteligível”, do que se tira que “não podemos, com razões ou experiências, explicar que coisa é Deus, ainda que a razão nos mostra que há uma suprema causa”. Dessa forma, “só podemos saber de Deus aquilo que ele quis que nós soubéssemos e revelou aos seus escolhidos”. Assim, partindo dos hebreus, passa para Cristo e seus apóstolos, daí aos discípulos destes, os quais “rebelando-se contra a doutrina da Igreja, publicaram novos erros”, obrigando a “aqueles Bispos a escreverem as tradições, pra que, deixando-as aos Fiéis, achassem nelas a verdadeira chave para penetrar as Escrituras e responder aos argumentos que pudessem nascer”. Assim sendo, “com a voz e a pena, confutavam as heresias” (Teologia, p.237-239). Tais

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Jean Delumeau. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.97-109. Verney, no entanto, não desconsidera totalmente as opiniões prováveis, o que se observa quando afirma, sobre as “propriedades da Lei”: “Compreende isto a longa disputa das probabilidades, que certamente não é própria deste lugar. Onde, parece-me que bastará ao estudante saber o que comumente se ensina, que se reduz a isto: que ninguém deve obrar contra a consciência verdadeira, ou seja certa, ou provável; que a opinião mais provável se deve preferir à menos provável; que a mais segura deve preferir-se à menos provável, se esta tem mais fracos fundamentos; que contra a consciência duvidosa não se deve obrar coisa alguma, que, de dois males morais, nenhum se deve eleger [...]” (Ética, p.290.)

“Bispos” são justamente os “SS. PP.” (Santos Padres, ou Pais da Igreja). Nesse tempo, estes não faziam mais do que o necessário:

sòmente pegavam na pena quando o pedia a necessidade. Umas vezes, impugnavam uma heresia; outras, outra; nem provavam mais que aquilo que era necessário para os convencer seguramente. (Teologia, p.240-241.)

Por muito tempo, as refutações dos Padres da Igreja foram suficientes, e mesmo que alguns autores tenham tentado “explicar os nossos dogmas com os princípios da Filosofia”, ou seja, com a ajuda de Platão ou Aristóteles, tudo andava bem. Até que, no século XI, foram introduzidas nas Escolas Católicas “a Eloquência, Geometria, Astronomia e Dialéctica; e o estudo desta última agradara de sorte que fizera esquecer em algumas partes da Teologia” (Teologia, p.243).E assim:

[...] a preocupação em que estavam os Árabes da Espanha pelo merecimento de Aristóteles [...] acabou de arruinar tudo; porque, comunicando-se, nos fins do undécimo século, de Espanha a Paris e outras partes, e, achando os professores dispostos para receber todo o género de subtileza, produziram no dito tempo muitas heresias. (Teologia, p.243.)

Em linhas gerais, a narrativa que faz da Escolástica a partir daí é o relato da decadência da Teologia. Muitos doutores da Igreja se aperceberam dos males da introdução de obras aristotélicas (via leitura dos árabes), chegando até mesmo alguns concílios a condená-las. Assim surgiram Alberto Magno e Tomás de Aquino, fazendo ressurgir a Teologia escolástica, “cujo nome, dali para diante, não significou sòmente teologia metódica e acomodada ao estilo das escolas [...], mas Teologia tratada segundo o método dos Árabes e fundada nos princípios da Filosofia. (Teologia, p.247.)

Posteriormente vieram os “hereges”. Lutero, Calvino e “outros modernos” tiveram o mérito de fazer os católicos abrirem os olhos dos “Teólogos”, mostrando “claramente que a maior parte deles se apartaram (sic) do verdadeiro método da Teologia: que falavam muito, mas não sabiam nada de Teologia”. Verney, portanto, demonstra certa simpatia a eles, partilhando com eles algumas de suas críticas:

Os Hereges não impugnavam as Metafísicas da Escola: impugnavam os fundamentos da nossa religião, e a estes é que era necessário acudir, mostrando quais eram as bases em que assentava a máquina da nossa religião. (Teologia, p.249.)

Como fundamentos questionados pelos reformadores, pode-se entender serem a “tradição” da Igreja, dos Santos Padres. De fato, afirma que “se tudo o que dizem os

Hereges fosse contrário aos nossos dogmas, seriam Idólatras ou Ateus, e não Hereges, quero dizer, Cristãos. Não é o método o que se condena nos Hereges; é a má interpretação.” (Teologia, p.230-231.)

Pode-se inferir que, à altura em que escrevia, meados do século XVIII, as religiões protestantes não representavam o maior perigo ao Catolicismo, devido à existência dos “ateus”. Por conta disso, não é estranho que alguém que tenha defendido tão aberta e insistentemente a tradição da Igreja tenha assumido como verdadeiros princípios dos “hereges”, como os de Pufendorf ou Grócio. Ou que tivesse algumas afinidades com o jansenismo.

Assim, na história da Teologia feita por Verney, o Concílio de Trento mereceu papel de destaque. A partir dele “é que se começou a praticar o antigo método da Teologia Positiva, explicando-a segundo os ditos princípios, que são as verdadeiras fontes de toda a Teologia.” (Teologia, p.249.)

A grandeza daquele evento advém justamente do fato de os “hereges” possuírem valor considerável, dado que nem tudo que propuseram estava errado:

Batalhava a Igreja nos tempos do dito Concílio, não com Pigmeus,

mas com Gigantes – homens doutíssimos nas Letras Sagradas e

Profanas, públicos professores em Universidades famosas –; contudo,

esses famosos Heresiarcas foram condenados, e confutada a sua heresia com a sólita arma da Igreja – Escritura e Tradição –, sem recorrer a tal Teologia. (Teologia, p.236.)

A afirmação da Teologia dogmática pelo Concílio de Trento, no século XVI, foi, para Verney, um passo necessário, porém, insuficiente. No século seguinte, um novo paradigma teve de ser incorporado: o método crítico.