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5. ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DO TRABALHO ESCRAVO A

5.1 Trajetórias de vida e de trabalho

5.1.1 Noções sobre trabalho escravo

5.1.1.1 A humilhação e o medo

A humilhação e o medo são fatores subjetivos encontrados nas falas dos entrevistados como constituintes da situação de exploração e vão além das questões de falta de infraestrutura ou ainda da ausência de pagamentos de salários, abordados anteriormente como características do trabalho escravo contemporâneo. Talvez esses fatores possam ser apontados como os principais pontos de distinção no campo do Direito entre irregularidades trabalhista e condição análoga à de trabalho escravo, este último já caracterizado como crime lesa-humanidade.

No relato abaixo, um dos trabalhadores entrevistados se refere ao trato por parte dos empregadores parecido com o do gado, quando é tocado no pasto. O fato marcou o trabalhador a tal ponto de ele não gostar de presenciar na rua a cena de homens tocando animais em carroças, afirmando lembrar de algumas situações vivenciadas nas fazendas.

Trabalho escravo é uma coisa muito perigosa, você tá entendendo? Eu já falei isso pra uma reportagem uma

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vez aqui, pra um pessoal dos Estados Unidos, que veio pra cá. O trabalho escravo comete muitos casos e eu vou tirar por mim e por esses companheiros que tão aqui, que também já foram vigiado, eu imagino. Agora o trabalho escravo, até uma comida, quando o trabalho é escravo, é cobrada da gente, você tá entendendo? (...) Você é trabalhador escravo, você é tocado, igualmente se toca um animal de carroça, quando eu vejo uma pessoa maltratando um animal de carroça, eu não gosto. Eu me lembro igualmente eu já fui, eu já fui tocado, eu já fui atirado debaixo de rede, várias, muitas pessoas, junto comigo; os companheiros da empreita106. (grifos nossos)

Além dos trabalhadores serem humilhados nos locais de trabalho, o medo, muitas vezes, é recorrente ainda após as denúncias e os resgates. Um dos entrevistados, que se viu em uma das reportagens107 exibidas durante o trabalho de campo e que compõe o corpus documental desta pesquisa, relatou a insegurança e o medo que o acometeram após a veiculação da mesma em rede nacional.

Dei entrevista, mas não tive segurança. Daí é correr o risco...Já morreu muitos, nem se fala...só Deus mesmo. Mas ninguém nem fica sabendo.(...) O que eu passei, só Jesus sabe. Como já falei, nem minha mulher mesmo ficou sabendo...eu passei sobressaltado dias depois dessa reportagem...medo de sair à noite, de ser pego no meio da rua pelos capanga dos home108.

Além do medo, a humilhação é outro fator apontado como característico da condição de subordinação em regimes de trabalho escravo. E ela aparece nas falas dos entrevistados, em alguns momentos, com certa sutileza, como o caso de empregadores se aproveitarem das condições culturais dos trabalhadores para explorá-los. Aqui nos referimos ao contrato de trabalho verbal (em geral, não são documentados em contratos formais nem tampouco em carteiras de trabalho). Já ouvimos relatos de trabalhadores que, no ato da fiscalização, quando a equipe do Ministério do Trabalho e Emprego estava no local de trabalho, autuando o empreendimento, negaram-se a serem resgatados e, naquele momento, abandonarem a fazenda, uma vez que haviam “dado a sua palavra” ao empreiteiro, que roçariam tantos alqueires. A alegação, na ocasião, era de que ainda não haviam terminado o trabalho e que só sairiam dali com a palavra cumprida. Neste sentido, entendemos que o acordo verbal tem peso e respeito por parte dos trabalhadores (que, em geral são analfabetos e operam em relações de oralidade:

106 Extrato de fala do Entrevistado Mateus, conforme indicado em Apêndice K. 107

Trata-se de reportagem exibida pelo Jornal Nacional, em 25 de maio de 2012, da série JN no Ar. 108 Extrato de fala do Entrevistado Tiago, conforme indicado em Apêndice K.

contexto em que a palavra tem força), que não são respeitados pelos empregadores. E ainda mais, eles se aproveitam dessa seriedade com que a maioria dos trabalhadores rurais tem com relação ao valor da “palavra”, relacionado com a honra, como pode ser percebido pela fala a seguir: “Eu não tenho nada na vida; mas ainda tenho a minha palavra; portanto tenho honra e dignidade109”.

No contexto do grupo de entrevistados, também apareceu essa questão de o patrão não assumir os acordos firmados anteriormente e até mentir no ato da fiscalização, o que se apresentou como outro fator de humilhação e até mesmo de desonra para os trabalhadores diante dos mediadores.

Tudo o que passou aí é a realidade, coisa que acontece desse jeito aí. Acontece mais coisa, mas tudo o que passou aí é a realidade, não é de outra forma não. Não tem nada inventado. Só uma coisinha que vi; só tem do patrão. Chegam pro patrão se identificar e dizer aquilo ali, o que ele diz ali só é a pura mentira. Ele falou de banheiro, isso aí é coisa que não existe. (se referindo a uma entrevista com fazendeiro). Falar a verdade a gente tem que falar. Você faz um erro, o cara fica: “Ah, não foi eu”. Se você fez, você assume. Agora patrão só é bom quando ele tá na Polícia Federal, não sabe nem onde bota a gente quando a Federal chega pra fiscalizar. Porque no PA, onde eu fui resgatado, o cara; ele chegava numa “hilux” prata e fazia era baixar só um pouquinho do vidro assim do carro, ele olhava assim e passava sem reconhecer a gente; sem respeito com a gente110.

Além do fato de o empregador não assumir a violação de direitos básicos, outro ponto que podemos destacar na fala acima se refere à prática deles esconderem os trabalhadores no mato quando ficam sabendo que há equipe de fiscalização na região, e que podem aparecer a qualquer momento na fazenda. Por este motivo, agentes do MTE e demais órgãos públicos que participam das equipes de fiscalização, em geral, ficam hospedados em municípios vizinhos dos alvos de resgate para tentarem, ao máximo, inibir essa prática do esconderijo dos trabalhadores a mando dos patrões.

A humilhação também pode ser observada no depoimento anterior com relação à postura do fazendeiro junto aos trabalhadores. Na experiência vivenciada pelo trabalhador no estado do Pará, ele relata que o empregador chegava com uma caminhonete imponente em sua propriedade e os olhava com desdém; o que gerava uma

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Extrato de fala do Entrevistado Tiago, conforme indicado em Apêndice K. 110

situação de menosprezo e desrespeito a esses sujeitos, que eram tratados como “inferiores”.

Além da postura, também conversas de intimidação são apontadas como outros aspectos humilhantes vividos pelos entrevistados nos locais de trabalho. Neste caso, eles se referiam ao “papo furado” que os intermediários (conhecidos como gatos), mandatários dos patrões, tinham com eles, demonstrando poder e força física, uma vez que estão hierarquicamente em condição superior e, em geral, andam armados.

Dentre os entrevistados, encontramos um trabalhador que havia sido submetido a regime de trabalho escravo em fazenda do juiz de direito no Maranhão, Marcelo Baldoc. O caso foi relatado em reportagem exibida no Fantástico, em 18 de março de 2009, que também compõem o nosso corpus documental. O juiz ficou afastado de suas funções por, aproximadamente, seis meses, tendo retornado ao trabalho após este período, em 2011. Ao assistir a reportagem durante trabalho de campo, o trabalhador se sentiu no direito de desabafar:

Isso aqui tem que repensar, o que a gente ganhou foi espanto, a gente trabalha de “sol a sol”, “chuva a chuva”. Eles (empregadores) deviam pagar o suor do cidadão bem direitinho, porque o serviço dele é feito, eles acham bom que a gente faça isso pra ele; então, na hora do pagamento, ele não acha bom pagar o cidadão. Eu acho que a norma era essa, é o direito. Até porque, eu trabalhei com um juiz de direito e com o pouco de ensinamento que eu tenho, esse juiz, ele não é juiz de direito, ele é um juiz do erro, da bandidagem. Quem é um juiz de direito, rapaz? É uma autoridade, ele devia fazer o trabalho dele correto, normal e na hora não faz. Então, eu reconheci que já fiz o trabalho escravo, eles fazem trabalho escravo porque se aproveitam dos fraco, eles se acham poderoso na frente da gente que é pobre, fraco, eles querem fazer o que eles bem entende. Pra eles, se pagar tudo bem, se não pagar tudo bem também111.

A indignação do trabalhador é com o desrespeito à lei por parte de um juiz de direito, que como ele afirmou, “de direito não tem nada”. A relação de exploração da mão de obra, neste caso, mantém uma situação de desigualdade social, comum na região, às custas dos mais “fracos”, com os quais, segundo o relato, “eles querem fazer o que bem entendem”.

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