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5. ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DO TRABALHO ESCRAVO A

5.1 Trajetórias de vida e de trabalho

5.1.1 Noções sobre trabalho escravo

5.1.1.2 A violência dentro e fora dos locais de trabalho

O medo de denunciar as formas de exploração do trabalho escravo é recorrente entre os trabalhadores submetidos a esses regimes. Embora o movimento social tenha uma atuação significativa em relação à violação de direitos humanos, na região de Açailândia e, portanto, a denúncia aconteça; a violência dentro e fora dos locais de trabalho é o maior empecilho à publicização do problema, segundo os entrevistados.

Muitos trabalhadores relataram que ficaram sabendo do Centro de Defesa de Açailândia com os demais companheiros de trabalho, mas que não tinham coragem de denunciar com medo de represálias e intimidação quando saíssem daquela situação. O caso também acontece quando esses trabalhadores concedem entrevistas tanto para pesquisadores quanto para equipes de reportagem. Em geral, eles têm medo de aparecer e de serem perseguidos. Alguns se negam a dar entrevistas. Outros pedem que não sejam identificados. Outros ainda colocam o seu rosto a público, entendendo que a divulgação de sua história pode inibir outras parecidas e que esta pode ser a sua contribuição para inibir o problema.

Foi o caso de um dos trabalhadores que entrevistamos para esta pesquisa, que havia concedido entrevista para a equipe de reportagem do Fantástico, em 2012. Ele contou que achou uma oportunidade de denunciar o problema que acontece com muitos trabalhadores da região, mas confessou que se arrependeu, pois sofreu intimidações e teve até de mudar de endereço para conseguir “dormir tranquilo”.

A todo o tempo de minha vida daqui pra frente da reportagem, a minha casa na Vila Ildemar tá presente nos caminhos trilhoso...eu encontrei uma pessoa na rua que me questionou o porquê de dar entrevista pra televisão; se eu não tinha medo de morrer; desde esse dia, fiquei pensando no risco que eu e minha família tava correndo...só eu sei o que passei, quieto, em casa, nas minhas orações. Nunca nem comentei isso com a minha mulher (ela estava presente acompanhando a entrevista). Não queria preocupar ela...mas passei uns maus bocado com essa história...até hoje quando chega alguém pra falar desse assunto, meu coração bate mais forte...sabe como é né, a gente fica sobressaltado...112 A Vila Ildemar, a qual ele se refere, é um dos bairros mais novos e também mais populosos de Açailândia, com aproximadamente 30 mil famílias. É considerada um dos

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principais locais de moradia de trabalhadores que foram resgatados do trabalho escravo no município. No caso deste trabalhador, teve de deixar a casa que havia construído na cidade (neste bairro) para voltar à zona rural, agora residindo num assentamento do MST (Movimento dos Sem Terra), também localizado no mesmo município. Ele conta que ficou mais tranquilo, mais longe dos “capangas” do fazendeiro que o ameaçaram e também mais perto da terra, onde ele voltou a plantar roça de subsistência.

A intimidação que o trabalhador se refere é comum nos relatos dos entrevistados e também acontece entre os agentes do movimento social, como é o caso de membros da equipe do Centro de Defesa de Açailândia. Alguns deles já foram ameaçados de morte e incluídos em programas de proteção às vítimas de violência e testemunhas ameaçadas, como é o caso do PROVITA113.

Quem sai de fazenda, recebeu seus direitos, tem que ficar quieto. Senão a gente morre. Eu já vim dar entrevista aqui mesmo no Centro de Defesa pra imprensa, mas pedi pra moça não me mostrar na televisão não. Até porque eu ia ficar visado e poderia ser perseguido. Infelizmente é assim... mesmo a gente tendo razão...114

A violência apontada pelos trabalhadores se dá de formas diversas; das mais veladas às mais diretas; das físicas às simbólicas. Um dos entrevistados contou sobre o tratamento dado a quem vai denunciar dentro do próprio órgão do MTE em Açailândia. A falta de respeito e o descaso com quem denuncia são características apontadas por ele:

(...) Tu sabe quando que o trabalho escravo termina? Nunca! O Ministério do Trabalho daqui, ele não recorre mais, porque quem deveria tomar conta disso aí é o Ministério do Trabalho mesmo. E aqui não funciona...só fora daqui, porque aqui todo mundo conhece todo mundo e não sobra nada pra gente. Só os “peixe grande” mesmo... E, às vezes também, a vítima não recorre pra denunciar com medo. Aqui acontece é muito, as vítimas não recorrem.115

O depoimento do trabalhador toca, mais uma vez, na questão relacionada à violência simbólica, que perpassa os agentes do poder público, sejam os fiscais, sejam os responsáveis pela implementação de políticas públicas básicas, neste caso, os

113 O PROVITA (Programa de Proteção às vítimas e testemunhas ameaçadas) está ligado ao governo federal e tem a mediação dos estados da federação, em geral, via Secretarias de Direitos Humanos. 114

Extrato de fala do Entrevistado Paulo, conforme indicado em Apêndice K. 115

políticos da região, que segundo os trabalhadores, omitem-se ou até, em última instância, se negam a atendê-los.

Mas o aspecto mais violento narrado pelos entrevistados refere-se aos mandatários de morte, como são os conhecidos, na região, os “capangas” dos fazendeiros, como está descrito no relato abaixo:

Às vezes, acontece até de mandar matar pra não pagar, tudo isso acontece nessas fazenda. (...) Você trabalhou, ganhou e agora é pagar o suor alheio, centavo por centavo. Mas eles não fazem isso não, é preciso a gente ir pra justiça pra poder receber uma “mixaria”, é preciso ir pra justiça e a gente já cansou disso aí, mas eles não pagam porque é só os grande que tem bastante dinheiro...116

Percebemos nos relatos dos trabalhadores certa banalização da morte por parte dos empregadores que se revoltam com os “peões” que denunciam ou que, orientados por agentes do movimento social, vão atrás de seus direitos. É muito comum ouvir relatos dos entrevistados sobre ameaças de morte dentro e fora dos locais de trabalho, na região estudada. Eles chegaram a fazer piadas com esse fato durante o trabalho de campo. Na ocasião, antes de iniciarmos o grupo de discussão, um deles brincou: “Mas aqui não tem nenhum espião que depois vai pegar nóis lá fora, né?”.

Em conversas com os agentes do Centro de Defesa e mesmo com alguns trabalhadores, ficamos sabendo de alguns cemitérios clandestinos que já foram encontrados na região de Açailândia, principalmente em áreas de reserva ambiental, próximas às fazendas de gado, onde trabalhadores foram escravizados e depois sumiram. Este tipo de crime é comumente encontrado em processos judiciais que envolvem trabalho escravo os quais equipes do Centro de Defesa acompanham junto às famílias de trabalhadores sumidos.

O entrevistado 8 nos contou a sua fuga de uma fazenda localizada no município de Açailândia após ter sofrido durante 22 dias violência física e psicológica, além da truculência por parte dos encarregados e/ou mandatários do fazendeiro.

(...) Levamo 6 dias pra chegar em casa, escutando os andar deles pro meio das ruas e nóis por meio das mata. (...) Até que nóissaímo ali no sindicato. Cheguemola, eles levaram a gente pra farmácia, pra gente tomar

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remédio. Isso era em Senador La Roque. O presidente do Sindicato botou nóis no carro; a polícia já tava atrás. Sabe o que a gente comia nessas viagem? Mamão verde, mandioca descacada comendo quenem porco....e os cabra iam ensinando nóis..o caminho. (...) Quando chegamo na cidade, já tinha 10 soldado esperando nóis. Passei 16 dias internado depois que cheguei em casa....todo inchado, minha cara toda quebrada, eu tava todo quebrado.. E a mulher chorando com medo dos home descobrir a gente e matar117.

Dos cinco entrevistados no grupo de discussão, pelo menos três apresentam sequelas físicas e psicológicas decorrentes do trabalho escravo. Um deles perdeu um braço em acidente de trabalho na derrubada da mata (desmatamento de eucalipto); outro apresenta dificuldades de locomoção por ter queimado as pernas em forno de carvão vegetal quando trabalhou em carvoarias no Pará e também em atividades de mineração, no Amapá. Por último, identificamos um trabalhador com sequelas psicológicas, em tratamento psiquiátrico, decorrente da pressão que sofreu quando de sua fuga de uma fazenda. Segundo sua esposa, ele apresenta “mania de perseguição” e toma remédio controlado desde que foi resgatado.

Minha história de vida é de muito trabalho e sofrimento. Por causa dele mesmo que hoje eu to assim, doente. Fico sobressaltado e com medo de tudo depois que eu fugi da fazenda que eu trabalhava pra denunciar118. Também entre as entrevistas individuais realizadas, percebemos as sequelas psicológicas em dois dos três trabalhadores que tivemos a oportunidade de conversar de forma mais demorada, em suas residências, sobre suas vivências. Um deles é um trabalhador, já apresentado anteriormente, que concedeu entrevista a uma rede nacional de televisão e sofreu intimidações, ficando sobressaltado com a situação e em condições de insegurança, junto à sua família.

O outro trabalhador é o mais velho do nosso grupo de entrevistados, que tem 84 anos. Durante o seu relato emocionado sobre a fuga de uma fazenda de gado na região, nos anos 90, ele demonstrou o quanto sua experiência vivida há quase 20 anos ainda mexe com seu lado psicológico, com sua memória e até mesmo com o seu imaginário, tamanha a riqueza de detalhes. O depoimento deste trabalhador assemelha-se a uma epopeia ou mesmo a um roteiro cinematográfico.

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Extrato de fala do Entrevistado Eduardo, conforme indicado em Apêndice K. 118

(...) Fugimo da fazenda. Eu e mais dois companheiro. Quando resolvemo tudinho e cheguemo em casa, a Federal chegou e disse simbora! Era pra informar pros cara (da fiscalização) onde ficava a fazenda....fomo dentro do helicóptero e eles perguntaram, você sabe chegar lá, de noite, no escuro? Eu disse, sei. Quando cheguemo lá, nóisarriemo, abaixaram, cercaram o boi preto (alojamento) e libertaram nossos companheiros todinho... pegaram um bucado de capanga, bateram, amarraram...Eles diziam, nóis queria pegar aqui era o fazendeiro, mas já que ele não tá... Eu tava encapuzado, com a roupa que a federal me deu pra ninguém me conhecer...e também foi junto o pessoal do Centro de Defesa, que começaram esse trabalho de denúncia nesses tempo119.

O relato aponta para outra situação comum nos momentos de fiscalização. Em geral, a equipe coordenada pelo MTE pede para algum trabalhador denunciante ou membro do movimento social acompanhá-los e preservam suas identidades (geralmente ficando encapuzados e não saindo de dentro das viaturas da Polícia Federal durante todo o tempo da ação). Neste caso, o trabalhador que nos relatou sua fuga, denunciou a agentes do Centro de Defesa, que acompanharam a fiscalização com ele, que acompanhou principalmente para indicar o caminho, tendo em vista que os endereços em áreas rurais, em geral, não são precisos e de difícil acesso.

O fato é que em contato com os entrevistados, percebemos que são sujeitos com trajetórias pregressas ao trabalho escravo e que, mesmo cerceados de tantos direitos básicos, em geral, ainda possuem sonhos; são gente de “carne e osso” e não apenas números de resgatados em cadastro de seguro desemprego do MTE. Ou seja, embora a situação de escravidão contemporânea tenha deixado sequelas físicas e psicológicas e marcas forte da subjugação e humilhação na maioria dos trabalhadores entrevistados neste estudo, ainda conseguimos ouvir relatos, como este:

(...) Por enquanto, fico aqui mesmo e vou fazendo os bicos que aparece...Ajudo meus familiar na roça aqui, mas é pela precisão mesmo. Este não é o meu negócio. Não que eu não ache bom, mas não é o que eu gosto mesmo (...) Eu tenho várias profissões. Sou desenhista e também dou aula de capoeira. Agora, me alistei no exército. Daí, indo pra lá, vamo ver o que vem pra mim...Eu gostaria mesmo era de sair pra trabalhar fora, de desenhista. Quem sabe no exército eu possa ter

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algum contato, conhecer alguém e ter essa oportunidade120.

O depoimento é do trabalhador mais novo que entrevistamos para a pesquisa, com 17 anos. Ele contou que ajuda sua família na roça desde sete anos e, nessa de acompanhar os familiares, foi submetido a regime de trabalho escravo numa fazenda na região juntamente com o tio, em 2012, quando tinha apenas 15 anos. A atividade era quebra de milho. Ele afirmou que não sofreu muito no local de trabalho e atribui isso à proteção do tio com relação aos empreiteiros. “Ele não deixava ninguém mexer comigo”.

Diferente dos demais entrevistados, em sua fala, percebemos o sonho e as aspirações de vida ainda vivos. Talvez por ser jovem e ter algumas habilidades distintas da média de seus companheiros (é desenhista e professor de capoeira), sonha sair da roça para a cidade e ganhar a vida fazendo o que gosta e o que sabe fazer; o que é “o seu negócio”, como destacou.

Ao buscarmos as trajetórias de vida e de trabalho junto aos sujeitos entrevistados, percebemos que o trabalho escravo aparece nos relatos antes mesmo de pautarmos a temática de forma direta, durante o primeiro momento das entrevistas (Ver roteiro de entrevistas em Apêndice C). Dessa forma, entendemos que o trabalho escravo perpassa e constitui as concepções sobre trabalho do grupo investigado e está marcado nas trajetórias de vida dos trabalhadores.

Neste contexto, a mídia aparece nas falas como constituinte dessas representações, conforme pode ser observado nos próximos itens. Apresentamos a seguir uma sistematização dos dados empíricos interpretados a partir do segundo momento das entrevistas, no qual introduzimos os textos midiáticos televisivos para conversar com os trabalhadores sobre suas representações acerca do trabalho escravo.