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5. ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DO TRABALHO ESCRAVO A

5.2 O trabalho escravo a partir da mídia

5.2.1 Tópicos de identificação

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Partimos do entendimento de Hall (2013) sobre a identificação como um processo de articulação, uma suturação sujeita ao jogo da diferença. Percebemos este movimento nas conversas com os entrevistados. Em vários momentos das falas, algo que lhes chamava a atenção nas reportagens tinha relação ou com alguma “falta” ou algum “excesso” nas representações percebidas por eles durante a assistência do material midiático exibido.

Às vezes a situação é mais precária do que as que passa aí. Eu mesmo já passei por essa situação e é difícil. Eu mesmo já fiz foi desmaiar de fome lá em carvoaria que eu fui parar em hospital. Essa situação é difícil de fazenda, carvoaria, um monte de lugar que às vezes a pessoa conta pra pessoa e quando chega naquela cidade, é outra. Oferece um valor pra pessoa e quando chega lá no serviço é outro valor. Aí te deixa sem água, sem comida, às vezes diz pro cara que vai dormir na rua, quando chega, dorme no meio do mato coberto de palha mesmo. É uma situação difícil, difícil demais o trabalho escravo128.

No relato acima, o trabalhador se identificou com o que foi mostrado nas reportagens com relação à falta de infraestrutura nos locais de trabalho, mas afirmou que sua experiência foi ainda pior, com condições “mais precárias” do que as visualizadas. Esta afirmativa se referia à reportagem exibida pelo Fantástico, em 18 de março de 2009, e principalmente, ao trecho em que o repórter descreve as situações encontradas nas fazendas fiscalizadas, mostrando imagens e conversas com alguns trabalhadores, como podemos acompanhar a seguir alguns trechos das entrevistas:

Repórter: Tem banheiro aqui?

O banheiro é aquele que vocês podem filmar. (Imagens de banheiro improvisado com palhas de buriti, palmeira encontrada na região) (...)

Repórter: E o que vocês comiam?

A gente comia um feijãozinho meio-dia. À tarde, arroz branco e aí misturava com molho de pimenta...

(Imagens da alimentação)129

Notamos aqui a identificação operando por meio da diferença e envolvendo um trabalho discursivo ao retratar o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, o que Hall (2013) chama de produção de “efeitos de fronteira”. Identificamos em vários

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Extrato de fala do Entrevistado Pedro, conforme indicado em Apêndice K.. 129

Trecho extraído de reportagem exibida pelo Fantástico, da Rede Globo, em 2009. A transcrição completa da reportagem pode ser encontrada no Apêndice D.

momentos das entrevistas esses “efeitos de fronteira”, situações chamadas pelos trabalhadores de representações da “realidade”.

(...) acho que a reportagem mostra sim bastante a nossa realidade. Primeiro, o reconhecimento da gente. Eu não tinha assistido essa matéria, mas o Brasil todo assistiu. Foi um espanto pra mim. Eu cheguei onde me criei, dia 14 de dezembro de 2012, 33 anos depois que eu tinha saído de lá, num povoadinho do município de Grajaú (MA). Lá, todos os amigos, os compadre, primo, a família toda me reconheceram na televisão. Eles perguntaram o que eu tava fazendo lá... “eu conheci você no Jornal Nacional....o que foi aquilo?” Aí eu anunciei pra eles (...) e eles botaram fé130.

Neste caso, houve o reconhecimento do discurso midiático como algo que legitimou a experiência vivida pelo trabalhador, que foi submetido ao trabalho escravo e concedeu entrevista à mídia, sendo reconhecido pelos seus familiares e amigos como alguém que passou por aquilo mesmo, tanto que “saiu na televisão”; é “verdade”, é “real”. Mas mesmo os demais trabalhadores, que não tiveram a experiência de se ver em uma das reportagens exibidas durante o trabalho de campo, sentiram-se identificados com os materiais, embora sempre apresentando algum aspecto de sua “realidade”, que não foi retratado na tela.

No caso abaixo, o entrevistado reconheceu o trabalho como similar ao que ele já havia feito, mas questionou alguns detalhes exibidos na reportagem acerca do processo de produção do carvão vegetal mostrado na reportagem numa carvoaria do estado do Pará.

Com certeza, ali mostra todo o trabalho escravo que a pessoa, numa situação de trabalho escravo, passa. O serviço que você...eu também já fiz muito esse serviço ali, encher forno, tirar forno. Só que assim, eu trabalhava um pouco diferente dessas fase aí que ela (a repórter) mostrou... aliás, era trabalho escravo, mas eu sabia que era trabalho escravo, trabalhava porque precisava. É diferente desse outro que foi pra fazer um serviço (se referindo ao trabalhador entrevistado na reportagem), chegando lá era outro serviço. Eu me considerava como trabalho escravo porque eu não podia sair e não tinha a liberdade pra sair pra lado nenhum porque a gente é vigiado. Então a gente se sente como

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se tivesse relembrando todo aquele tempo que não é bom, eu, pelo menos não gosto de relembrar tempo de escravidão, é como se eu tivesse sofrendo duas vezes. Eu acho muito ruim, mas foi uma realidade que aconteceu e infelizmente a gente lembra e pede a Deus pra que nunca mais passe por isso de novo.131

O comentário refere-se à reportagem exibida no programa A Liga, que foi ao ar no dia 16 de agosto de 2011, pela Rede Bandeirantes. Na ocasião, a equipe de reportagem acompanhou uma fiscalização numa carvoaria no município de Goianésia, no Pará. O trecho ao qual o trabalhador ser referiu narrava o passo a passo do trabalho para a feitura do carvão – cortar a madeira, colocar no forno para queimar, lacrar o forno e após algum tempo, abrir para retirar o carvão. Como o entrevistado já havia trabalhado de forma similar em carvoaria, no Maranhão, fez comentários sobre algumas diferenças entre o que ele fazia e o que viu relatado na reportagem. A seguir, um trecho da conversa entre a repórter e o trabalhador entrevistado em Guaianésia (PA).

Repórter: O senhor é o que aqui? Eu sou o carbonizador.

Repórter: O que é o carbonizador?

É o que coloca a lenha no forno e queima...pra formar o carvão.

Repórter: O senhor que queima mesmo? E usa alguma ferramenta?

A ferramenta que nós usa é isso aqui...de proteção nenhuma.

Repórter: Máscara não? Não.

Repórter: Faz tempo que o senhor trabalha com isso?

Dona, tem seis anos.(Após abrir o forno) Repórter: O senhor que lacra mesmo com esse tijolo?

É sim senhora. A porta daqui, aí passa o barro. Repórter: (Cheiro já bem forte)Quanto tempo ficou queimando aí?

Passa de quatro a seis dias quanto tá no inverno, né? Quando tá no verão, dá uns três dias.

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Extrato de fala do Entrevistado João, conforme indicado em Apêndice K. .

Repórter: Trabalho duro, hein? Um pouquinho...(Esvaziando o forno)

Repórter: O senhor não se incomoda com esse cheiro não?

A gente já se acostumou né?

Repórter: Mas deve fazer um mal, hein? Um pouco. Aqui tem vez que tá tirando e é obrigado a estar se molhando pra aguentar... Quando tá muito quente o camarada não pode entrar em pé. Assim que nem se entra aqui, né? Tem que se abaixar porque a quentura ela evapora tudo aqui...132

Ao assistir o material, o trabalhador identificou-se com a falta de equipamentos de segurança, bem como a facilidade de acontecer um acidente. No grupo de discussão, também estava presente outro trabalhador que já havia sofrido acidente em carvoaria e, por isso, tem dificuldades de andar, sentindo dores constantes nas pernas. Os trabalhadores também questionaram o tempo de queima do carvão mostrado pela televisão (de quatro a seis dias no inverno e numa média de três dias no verão), mas afirmaram que realmente, neste caso, varia de região e também em cada época do ano, no caso “se é inverno ou verão”133, ficando mais úmido ou seco, interferindo diretamente na queima.

A consolidação do processo de identificação requer dos sujeitos, na maioria das vezes, aquilo o que é deixado de fora, isto é, o exterior que a constitui. Percebemos este fato no relato que segue:

(...) Onde eu trabalhava teve um caso que devia ser tratado aí nas reportagens.Teve algum que falou que ia denunciar, aí ele soube, quando ele chegou com um 38 assim no punhal e disse assim: aqui eu tô sabendo que vão "dar parte", mas se sair pra "dar parte" não passa um ali pela cancela. Aí ficou com ameaça, aí um bocado de gente ficou logo com medo. Aí foi a vez que o menino saiu, eles procuram todo meio de intimidar a pessoa134.

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Trecho extraído da reportagem A Liga, da TV Bandeirantes, exibida em 2011. A transcrição completa desta reportagem pode ser encontrada no Apêndice G.

133 Vale destacar que em regiões do Maranhão e do Pará, as estações do ano são definidas praticamente pela chuva. O chamado tempo do inverno, que vai de dezembro a junho aproximadamente, é quando chove; e o tempo do verão, de julho a novembro, dificilmente chove e é caracterizado como tempo da seca. O que os trabalhadores contam é que esses tempos, de chuva e seca, eram mais definidos até os anos 90; quando as mudanças climáticas começaram a ocorrer mais frequentemente, ocasionando alguns períodos de chuva no verão e seca no tempo do inverno, por exemplo.

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O relato acima traduz mais um aspecto da “falta” que os entrevistados, em geral, sentiram nas reportagens por não tratarem como deveriam, segundo eles, da questão da violência dentro e fora das fazendas, envolvendo os atores que compõe a rede de aliciamento e denúncia no contexto do trabalho escravo.

Mas o que queremos chamar a atenção e trazer para a reflexão é o fato de um trabalhador, ao assistir a um conjunto de reportagens selecionadas sobre a temática, ter lembrado de um fato ocorrido quando ele estava envolvido na questão do trabalho escravo, que é muito grave e sério, na sua concepção, e que não é tratado, em geral, em materiais midiáticos do seu conhecimento: o medo de denunciar em decorrência de ameaças nos locais de trabalho, bem como nas regiões onde ocorre o aliciamento para o trabalho escravo, como é o caso estudado de Açailândia (MA).

É este estranhamento, a partir da diferença, que constitui um dos elementos importantes para a constituição da noção de identificação da qual nos apropriamos neste estudo. E neste caso, um dos entrevistados recorreu à sua memória e trouxe aspectos de experiências vivenciadas no passado para ajudar a constituir suas representações a partir de sua assistência das reportagens.

Notamos também que os processos de identificação entre sujeitos e mídia perpassam, em alguns casos, a presença de outros mediadores, como é o caso dos agentes do movimento social. Esta presença está marcada na fala de um dos entrevistados, como podemos observar a seguir:

Acredito sim, que a gente já foi escravo. Hoje, graças a Deus, eu tenho o privilégio em dizer que não me encaro mais em uma situação daquela, totalmente, desde esse período que eu vim do resgate pra Açailândia. Eu fui várias vezes na minha cidade e voltei porque eu me adaptei com a cidade através do pessoal, eu sou muito agradecido ao pessoal do Centro de Defesa e, desse dia em diante, eu resolvi morar em Açailândia. Hoje, eu tenho família, tenho casa, graças a Deus e o que eu vejo assim, através da sua primeira pergunta sobre o que a gente vê, quando fala sobre a reportagem. A gente se sente triste por saber que ainda existe gente que comete esse tipo de infração, de trabalho escravo. A gente se sente triste por isso e por ter passado pelo Centro de Defesa a gente se sente alegre, porque o nosso

depoimento é um reforço para que isso possa ter um basta, sobre esse trabalho escravo135.

O contexto social das representações, neste caso, se dá principalmente pelo contato dos trabalhadores com os mediadores tanto da equipe de fiscalização (órgãos governamentais) quanto das entidades sociais responsáveis pela denúncia e pelo acompanhamento dos processos administrativos e até mesmo judiciais (no caso estudado, representados pelos agentes do Centro de Defesa de Açailândia).

As relações de mediação perpassam as identificações que os sujeitos investigados apontam com relação ao material midiático exibido durante trabalho de campo. No texto jornalístico televisivo escolhido, as falas dos mediadores também compõem o conjunto de fatores de identificação apontados pelos trabalhadores. Um exemplo disso é quando, no ato da assistência das reportagens, os trabalhadores reconhecem alguns agentes do movimento social ou mesmo governamentais (no caso, auditores fiscais do trabalho) e depois conversam, entre si, sobre a familiaridade despertada durante este reconhecimento com comentários do tipo: “Viu fulano de tal lá? Ele defende nóis em qualquer lugar mesmo...” ou ainda “Esse cabra foi longe atrás de peão”136

, quando se referia a um auditor fiscal do trabalho acompanhado por uma equipe de reportagem numa carvoaria, no Pará.

Dessa forma, entendemos que além do estranhamento com o outro; com o diferente, os sujeitos também constituem suas identificações no reconhecimento de algo familiar, comum, portanto, com algo com que eles se identificam pelas similaridades. Assim, este jogo entre as representações da “realidade” dos entrevistados; da “vida vivida”, e as representações do trabalho escravo apresentadas pela mídia (no caso pelas reportagens televisivas) nos ajuda a compreender os processos de identificação dos sujeitos com a mídia, na busca de suas apropriações do texto midiático para a constituição de suas representações.

Portanto, entendemos que os processos de identificação, seja pelo estranhamento ou pela diferença; seja pelas similaridades ou familiaridade dos sujeitos com o que percebem da mídia, nos levam a algumas apropriações dos entrevistados junto ao texto midiático trabalhado. A partir da mídia, eles fazem uma reflexão acerca de suas próprias

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Extrato de fala do Entrevistado Pedro, conforme indicado em Apêndice K. 136

Estes comentários, informais e sem identificação, foram extraídos de anotações gerais do caderno de campo que utilizamos durante observação participante, no decorrer das visitas a Açailândia.

autorepresentações e apresentam seus pontos de vista utilizando ora elementos presentes nas narrativas televisivas jornalísticas assistidas durante trabalho de campo, ora acrescentando outros elementos de suas sociabilidades, como é o caso da presença dos mediadores do movimento social, indicada anteriormente.

O fato é que o exercício da assistência do material midiático traz elementos para o nosso diálogo sobre as representações do trabalho escravo junto ao grupo de entrevistados. Além disso, também percebemos durante o desenvolvimento da pesquisa, que os sujeitos se apropriam e ressignificam as mensagens midiáticas, fazendo uma leitura interessante dos processos de produção, como podem ser observados no item a seguir.