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Chico Rodrigues olha pra uma árvore forte, à beira da estrada, e pensa. De hoje em diante vou me chamar Chico Cambará. Erico Verissimo

O aparecimento de Chico Rodrigues — ou Chico Cambará — na narrativa de Erico Verissimo dá-se num daqueles “intermezzos líricos”, como denomina Sandra Pesavento, referindo-se a certos “textos poéticos nos quais Erico invoca as dimensões heróicas do estereótipo gauchesco”. É nessa espécie de “história paralela” que Chico Cambrá desenvolverá a maior parte de sua atuação no romance. No entanto, seu papel enquanto primogênito dos Cambarás não pode (e não deve) ser desprezado, ou relegado a um segundo plano. Como também não deve ser escusado o fato de que “Cambará” é um sobrenome inventado (e que se torna uma realidade), criado a partir de uma relação de admiração com a árvore (o elemento real) que cresce à beira dos riachos e é denominada

“Cambará”. Resistente, portentosa, de cerne duro e cujas flores são uma fonte primorosa para a abelha mirim fazer mel. O Cambará é uma árvore admirada pelo gaúcho.

Que o homem é, num certo sentido, produto do meio, isso poder ser suposto sobretudo depois que Euclides da Cunha escreveu sua obra, cuja estrutura capitular já traz em si essa idéia: a terra – o homem – a luta: “viver é adaptar-se e adaptar-se é uma luta”. Deixando de lado todo o determinismo geográfico e racial que perpassa a narrativa de Os Sertões, além da sua concepção excessivamente evolucionista, o trabalho serve como um verdadeiro paradigma para os estudos culturais contemporâneos. É com base nessas premissas que se pensa a diferença existente entre planalto sul-brasileiro e a planície pampeana. No contexto da trilogia, o Planalto Curitibano surge como a terra de origem de Chico Rodrigues.

Se nos “Brasis regionais” de Darcy Ribeiro (1997) são marcantes as diferenças étnicas e culturais entre o litoral mulato e o planalto mameluco, na análise dos grupos sociais da colônia, Cassiano Ricardo (1942) chama a atenção para o “grupo estável do litoral e o seu sentido português” e o “grupo móvel do planalto e o seu sentido americano”. Na mesma medida em que “o mulato é filho do litoral”, o “caboclo é filho do planalto”. Segundo a perspectiva do autor, trata-se de duas “regiões sociais” distintas, sobretudo se atentar-se para o papel desse “grupo móvel” na conquista do interior brasileiro, especialmente na sua marcha para o oeste e para o sul, de onde se ressalta a função essencial do bandeirante, a de desbravar caminhos.39 É o momento em que Cassiano

Ricardo analisa a “decisão de ser americano imposta pelo perfil americano do sul, adquirido pelo Brasil”. É claro que para isso é preciso ter em mente que, segundo a perspectiva do autor, “quando entra no mato a primeira bandeira, termina a história de Portugal e começa a do Brasil”, pois o “piratiningano não podia viver sem o sertão”.

É o próprio Cassiano Ricardo (1942) quem destaca a comunicação travada entre “planaltinos” e “andinos”. Comenta, numa nota introdutória de Marcha para o oeste, que “num documento do século XVIII, dizem dos moradores de Piratinga: gente usada ao trabalho do sertão e que passa ao Peru por terra, e isto não é fábula”. E não é mesmo; ao menos que Afonso de Tunay, ao analisar a exploração das minas de ouro em Cuiabá, e a

39 E aqui é interessante atentar para um traço marcante da personalidade desse “ser planaltino”: a bravura,

traço identitário que, como se verá, é o diferencial do tropeiro Aderbal Quadros frente a outros tipos gauchescos. É enquanto desbravador — e não enquanto guerreiro lutador que o tropeiro se diferenciará dos demais tipos gauchescos.

conseqüente relação travada entre os homens do planalto brasileiro e do planalto andino, também esteja participando dessa “fábula dos altiplanos”. Se nesse instante se está a “divagar” por essas altiplanas vias do conhecimento historiográfico, é apenas porque Chico Rodrigues, o primogênito dos Cambarás, é essencialmente um ser planaltino: traz em sua identidade traços marcantes dessa sociedade nômade e pastoril formada na região do Planalto de Piratinga, cuja área de abrangência, para o sul, inclui não só o planalto curitibano, mas também o planalto sul-brasileiro,40 ali mesmo onde os padres inacianos

encerraram sua rezes, criando a Vacaria dos Pinhais.

A própria história da palavra “gaúcho” contada por Meyer (1986) aponta para uma marcante influência “altiplana” na origem do tipo gauchesco. Conforme o autor, gaúcho vem de gaúche, vocábulo quíchua; uma formação mista do espanhol e do araucano. Ou ainda, de acordo com as investigações sobre o vocabulário da língua guarani efetuadas pelo padre Ruiz de Montoya (apud Meyer, 1986), "gau-che": gau significa canto dos índios, ação da cantar triste; e che é uma partícula traduzida do quíchua que significa gente. O que leva a “gente que canta triste”. E isso tendo em mente que “consultar o vocabulário é uma maneira de ter acesso à história”, pois

o vocábulo não é apenas a carne magra ou polpuda em que a etimologia vem dar a sua bicada. Na perna de cada letra estão tecidas sugestões [...] As palavras, em sua oscilação semântica, possuem um nódulo significativo, um conteúdo emocional e significados secundários. Desde a integral polissemia, até as simples

variações daqueles significados secundários, seu destino semântico será sempre

uma aventura imprevista. (MEYER, 1986, p. 31. Grifo nosso).

Por essa via, “o vocábulo guasca” 41 pode surgir como a síntese da Idade do Couro.

Alcunha um tanto crua (como o próprio couro) com que “se congnominaram os nossos campeiros, generalizado mais tarde entre os brasileiros do norte para designar indistintamente os filhos do Rio Grande.” É claro que é preciso levar em conta que “o

40 Nesse sentido, veja-se a letra da canção “Sul-brasileiro”, do conjunto musical Os Bertussi. E também a

afirmação de Balduíno Rambo (2000, p. 255), falando dos limites do planalto: “Ao oeste e ao sul, sua limitação é natural; ao norte, além da fossa do Uruguai, o planalto catarinense estabelce a continuidade com o planalto sul-brasileiro.”

41 O dicionário de regionalismo do Rio Grande do Sul do irmãos Zeno e Rui Cardoso Nunes atribui ao termo

guasca, entre outros, o seguinte significado: “Denominação dada aos rio-grandenses pelos filhos de outros Estados, pelo fato de neste, em vista da predominância da indústria pastoril e da carência de outros materiais, haver sido generalizado o emprego do couro para as mais diversas finalidades. Esta designação, a princípio, teve sentido pejorativo, sendo hoje perfeitamente aceita pelos rio-grandenses que dela se orgulham.” Nesse sentido, Meyer cita um trecho de Quincas Borba no qual, ao referir-se a uma personagem sulina, aparece a frase: “É uma guasca de primeira ordem.”

couro manifestou-se em toda a região meridional aquém e além Prata com a importância de um complexo cultural mais ou menos caracterizado, representando um estilo de vida”. (MEYER, 1986, p. 32). Aliás, aquém e além, bem além Prata: às margens do São Francisco encontram-se manifestações desse complexo cultural que parece acompanhar o gado e o modo de produção pecuarista. Como se pode notar por essa descrição de Capistrano de Abreu (apud RIBEIRO, 1997, p. 339) acerca do grande sertão goiano-baiano-mineiro:

De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos: de couro, todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a mola para guarda roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por pontas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz. O couro também faz-se presente nessa detalhada descrição de Ornellas (1978) sobre o rancho do gaúcho primitivo; lembrando que, para o autor, a verdadeira origem dos ranchos de barro cobertos de palha, muitas vezes atribuídas aos índios, seria arábica, trazida da península pelos espanhóis do norte. Conforme o autor, nas primeiras propriedades rurais do Rio Grande,

o rancho não passava de um arremedo de acampamento, isolado e nu, atirado à aba da coxilha ou precariamente abrigado pelo caponete de restinga. Plantada em estacas improvisadas, cravadas no terreno acessível e indulgente, o arcabouço de taquaruçu, reajustado por cordas de embira, loncas de couro, ou tranças de cerda, recebia o revestimento de barro de sopapo e o teto de palha santa-fé colhido nos banhadais. O chão, batido pelo socador de cabriúva ou cedro, nivelava-se como assoalho e, regado pelas pontas de chifres perfurados, ora varrido pelas vassouras de guanxuma. Na parede, penduradas, as guampas para o leite. Num canto, o curote para a água fresca da restinga. Do teto, pendentes de um caibro, alguns bicos de porongo, uma reboleira de tentos, uma chaira passada entre a palha cor de bronze, um par de chinelas... No quarto, uma ou duas tarimbas trançadas de couro cru, alguns pelegos brancos, de carnal sovado, os arreios e o poncho pendurados no oitão. Na cozinha contígua — o fogo de chão e, sobre o braseiro vivo, a chaleira e a panela de ferro batido, oscilantes do tripé. Nenhum mobiliário mais do que os cepos duros e inteiriços, falquejados num tronco de guajuvira. Nada mais primitivo, mais singelo e mais pobre. Não raro, pela condição nômade ou pelas circunstâncias fortuitas da guerra, a porta de couro ou de tábua falquejada ficaria ao léu das ventanias, a oscilar e a bater, avisando aos viandantes que ali estava uma tapera. Se um dos solitários umbus patriarcais dava a sombra aos beirais de Santa Fé, a cerca tombada da frente, com a cancela rota, deixava que o gado em costeio penetrasse livremente os domínios anteriores do homem. E o gado vinha lamber, então, o tronco salitroso da velha árvore cuja casca servia ao fabrico do sabão. [...] Nada mais parecido à tenda do deserto do

que esse lar de improviso, que não criava raízes nem compromisso com a terra.

Se o gaúcho partia a tropeadas longínquas, levava consigo seu pequeno arsenal [...] Todas as suas atividades derivavam da sua condição de pastor e ginete. Daí

Segundo Tescheauer (2002, p. 428), “muito mais comum ainda era o consumo do couro entre os guaranis. Não há nas casas caixa grande nem pequena, nem cesto algum, que não se fabrique inteiramente com couro”. Também grãos e legumes são guardados em sacos de couro. Segundo o autor, “quando uma carreta ou outro veículo se estraga, essa não se compõe com pregos, mas com tiras de couro”. Assim como no sul, no sertão o couro foi a matéria-prima da vida. E ao começar a esboçar os traços de um possível paralelo entre o gaúcho e o sertanejo, vê-se que o serrano pode ser considerado um tipo intermediário entre o tipo humano representativo do pampa acastelhanado e o do sertão acaboclado. Trata-se de homens que fazem parte de uma sociedade pastoril, de pastores nômades, especialistas no serviço de conduzir tropas e lidar com os rebanhos.

Entre esses tipos regionais do Brasil pastoril talvez haja mais diferenças que propriamente semelhanças. Talvez se trate de uma relação de dessemelhança. Nesse sentido, veja-se o caso da indumentária. No sul, devido ao frio e ao cenário do campo aberto sem caatingas espinhentas, as vestimentas do campeiro não eram de couro, como as do vaqueiro sertanejo. Se no pampa o gaudério se valia do “pala-cobertor-de-lã” para suportar o gélido minuano, no sertão o vaqueiro precisava utilizar a couraça para enfrentar a rudeza da caatinga ressequida. Para Euclides da Cunha (2000), as vestimentas do gaúcho são um verdadeiro “traje de festa: amplas bombachas talhadas para a movimentação fácil sobre os baguais” que, “no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam nos espinhos dilaceradores das caatingas”. Lembra o autor que “seu poncho vistoso jamais ficará perdido, embaraçado nos esgalhos das árvores garranchentas”.

Já as vestes do sertanejo, esse “centauro bronco”, são uma legítima “armadura”, uma couraça, pois na imagem pintada por Euclides o vaqueiro surge envolto no “gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro, calçando as perneiras, de couro curtido ainda”. E, “resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda- pés de pele de veado, — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.” Por fim, complementa o autor sua narrativa com essa constatação: “Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau-a-pique à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas.” (CUNHA, 2000, p. 127).

É claro que no tempo em que na Campanha matava-se o gado só para obter o couro e contrabandeá-lo aos britânicos e franceses que aportavam seus barcos no estuário da Prata, deixando a carne apodrecer para os urubus, gaviões e “caramurus” comer; nesse tempo, a couraça bovina era utensílio da mais valia. Servia pra tudo: para construir barcos e atravessar os rios (as pelotas) e até para tapar a porta da entrada da casa, aqueles ranchos de barro cobertos com o capim santa-fé, como na descrição de Ornellas. A idade do couro é a época do contrabando. Tempo em que a Colônia de Sacramento vai representar a presença lusitana na região platina, fortificação erguida à margem norte do Rio da Prata e que serviu de centro contrabandista, receptor e vendedor de mercadorias. Segundo Capistrano de Abreu (apud Meyer, 1986, p. 31), “a Colônia de Sacramento foi o berço de uma prole sinistra, os gaudérios originários da margem esquerda do Prata, ainda não assimilados pela civilização.” É o tempo do Guasca: “palavra de sangue quente, pronunciada como um título de hombridade e destemor, reveladora do excesso de vitalidade, coragem, hombridade, elementos presentes no cancioneiro guasca.”

Antes do vocábulo gaúcho surgir, uma série de expressões eram utilizadas para representar esses diferentes tipos mestiços que habitavam a Campanha. Coni (apud Meyer, 1986), lista alguns dos mais usuais, datando-os. Segundo o autor, a palavra peão é utilizada desde a época colonial para designar o assalariado rural; changador era utilizada para caracterizar os peões de Santa Fé, que por volta de 1729 vagueavam pela Banda Oriental; agregado surge por volta de 1730 para significar o “paisano vagabundo com estadas mais ou menos longas pelas estâncias”; a palavra gaudério é datada como sendo de 1770; e gaúcho surgiria por volta de 1790.

Segundo Meyer (1986), antes do vocábulo gaúcho tornar-se usual, “o que aparecia nos documentos de uma e outra banda é a palavra gaudério.” Por exemplo, em 1770, gaudério é utilizado para significar “os desertores paulistas que fugiam das tropas regulares, identificando-se com a vida rude dos coureadores e ladrões de gado”; ou, na versão castelhana: “Hombres paulistas que tienem la propriedad e costumbre de vender lo que no es suyo.” — como o Chico Cambará, de O Tempo e o Vento. O gaúcho surge, então, sob a sina do desertor, sendo que

qualquer desertor fatalmente era um novo candidato à sociedade dos coureadores, changadores, arriadores, contrabandistas, paisanos e gaudérios, esses homens sem lei nem rei que moravam na sua camisa, debaixo do seu chapéu, num equilíbrio instável entre o índio e o branco[...] Eram os sujeitos a quem mais tarde (fim do

século XVIII) se chamariam gaúchos: palavra espanhola usada para expressar aos vagabundos ou ladrões do campo, quais vaqueiros, acostumados a matar os touros chimarrões, a sacar-lhes os couros, e a levá-los ocultamente as povoações para sua venda ou troca por outros gêneros. (MEYER, 1986, p. 17).

Esse sentido pejorativo da palavra gaúcho designava um “homem sem religião nem moral, na maioria índios ou mestiços [...] Homens sem lei nem rei, campistas perturbadores da ordem que, passados tantos anos, ainda não perderam de todo a mobilidade espantosa, a insolência andarenga, o cunho abarbarado.” Trata-se de um significado que se manterá inalterado, tanto do lado luso como no castelhano, até meados do século XIX. Afinal, “essa gente gaúcha está naturalmente voltada para os gados chimarrões, ou para as fainas clandestinas dos couros.” Conforme Ornellas (1978), por volta de 1763 surge a primeira referência oficial ao aparecimento do gaúcho nas terras do Rio Grande, como foi no território do Prata, com o nome de quatrero e gaúcho: “gente vagabunda que faz roubos de gado na jurisdição tanto de uma como de outra nação”. Afirma o autor que “esse tipo, com pequenas cambiantes”, pode ser encontrado no Chile, no Peru, na Bolívia, na Venezuela, na Colômbia, na Argentina e no Uruguai, “derivando diretamente do espanhol e da índia americana, a sofrer pequenas diferenças de cada tribo, todas, porém, no fundo pertencentes a mesma família indígena”. (ORNELLAS, 1978, p. 127).

Assim, se Meyer (1986) busca a origem etimológica da palavra “gaúcho”, Ornellas (1978) investiga a etimologia da palavra gaudério, que “vem de GAUDERE e significa gozar; divertir-se”. Assim, se gaúcho significa “gente que canta triste”, remetendo de imediato a uma certa tristeza — que, na verdade, é mais uma quietude introspectiva (atributo identitário do tropeiro serrano e traço do personagem Aderbal Quadros) — gaudério vai remeter à diversão que pode ser mais uma fanfarrice (traço definidor da identidade do gaúcho cisplatino, e presente no tipo do Cap. Rodrigo Cambará), como se verá a seguir.

Ao longo do tempo, o vocábulo vai mudando de significado. Em 1851, por exemplo, gaúcho significa apenas o “índio do campo sem domicílio certo”. É um vagabundo, mas valente nas guerrilhas. É um coureador, mas excelente campeiro. É arisco e indócil, mas agradecido quando bem-tratado. Por essa época, o gaúcho passa a incorporar as milícias, “tropas ocasionais que surgem e dispersam-se com a mobilidade indispensável às guerras do Pampa”. Enquanto nômade, será o “gaudério e o paisano”. Enquanto

sedentário, integrado em alguma atividade regular, aparecerá como o “peão, posteiro, ou agregado”. (MEYER, 1986).

Conforme Vellinho (1970, p. 42), “quando a palavra gáutcho, de origem quíchua, cruzou a fronteira rio-grandense, e aqui deitou raiz e alastrou-se, a mutação que sofreu não se limitou à brusca transposição do acento tônico”. Na visão do autor, “o apelativo gaúcho iria ajustar-se a outro tipo social portador de um lastro antropológico diferente: outra composição étnica e psicológica, outra polarização histórica, compromissos políticos rigorosamente subordinados ao vasto plano de integração geográfica, econômica e cultural da nacionalidade”. Por fim, entende o ensaísta que “vário na sua formação social e cultural, o Rio Grande recompõe, constante e silenciosamente, sua unidade sociológica apoiado na idealização dessa figura tradicional”.

É interessante notar como o termo adquire “novas matizes de sentido de acordo com as reações de meio e momento”, como afirma Meyer (1986, p. 13), que entende ser mesmo “muito difícil traçar comportamentos estanques para definir um tipo social sem resvalar no arbítrio; admite-se quando muito uma padronização histórica, para comodidade de tese”. Nesse sentido, para os Capitães-gerais, autoridades e primeiros proprietários de terras, o gaúcho vai ser o ladrão, vagabundo, contrabandista e coureador. Já para os Capitães de Milícias e Comandantes de Tropas das Guerras de Fronteira, o gaúcho aparece como bom auxiliar, uma isca para o inimigo: é o chasque, o vedito. Nas Guerras de independência do Prata e nas Campanhas do Sul, é o lanceiro e o miliciano. E a partir de certo momento histórico, para o homem da cidade, o gaúcho significa o trabalhador rural, o peão de estância, o homem afeito aos serviços do pastoreio, o agregado, o campeiro, o habitante da campanha. Já na poesia popular, o gaúcho surge como um bom ginete, um campeiro destro. Há ali uma tendência para identificar-se com os termos guasca e monarca, pois “o gaudério de lei, o bom guasca de verdade, é o gaúcho sem patrão, o monarca mais livre”. Por fim, o gaúcho vira nome gentílico, como capixaba, fluminense, barriga-verde...

Aurélio Porto (apud Meyer, 1986, p. 51), falando sobre os “campistas do Rio Pardo”, entende que, produto do meio bárbaro, é o gaúcho “um amálgama de raças e nacionalidades. O vagabundo do campo (gaúcho) surge entre 1740 e 1760. Coagidos pelas necessidades, vão esses elementos procurar um forte apoio entre os minuanos, com os quais se identificam e se associam em suas correrias, arreadas e contrabandos.” É esse tipo meio

guasca que vai predominar durante a chamada “Idade do Couro”. Tempo em que não havia aramado, que os campos não tinham divisas, que o gado não tinha dono, marca ou sinal, e