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Falso é o que não é verdadeiro, fictio o que é verossímil [...] Fictio é alíqua figura veritatis, pois até mesmo Deus falou de forma figurada.

Carlo Ginzburg

Se há muito de ficção naquilo que se convencionou chamar realidade, por certo há muito de realidade naquilo que se acostumou denominar ficção. Nessa dialética artístico- ideológica, talvez a literatura tenha sido menos ideológica — no sentido doutrinário do termo — exatamente nos momentos em que conseguiu ser mais artística. Enquanto obra, a literatura talvez precise causar um certo “estranhamento inicial”, tão valioso se tratando de arte. Como afirma João Cabral de Mello Neto, por vezes é mesmo necessário “romper no espectador a dura crosta de sua sensibilidade acostumada, atingindo-a naquela zona onde se refugia o melhor de si mesma: a sua capacidade de saborear o inédito, o não-apreendido”. Isso o poeta pernambucano disse enquanto se referia à obra “surreal” de Juan de Miró, para quem “não devemos nos preocupar em que uma obra permaneça tal qual é, mas que deixe sementes, que espalhe sementes que façam nascer outras coisas.”32 Nem que para isso seja

preciso “dar timbre e toque novo às comuns expressões, amortecidas”, como no entender de Guimarães Rosa (2001).

Conforme Pessoa (1986, p. 52): “A arte, em sua forma suprema, nada mais é que a infância triste de um Deus futuro, a desolação humana da imortalidade pressentida.” É

32 Citações retiradas do mural da exposição de Juan de Miró no Museu de Artes do Rio Grande do Sul

assim que a “grande arte” pode nos entristecer, porque, “parecendo-nos perfeita, aponta nossa imperfeição. Ou, nem ela sendo perfeita, é o sinal maior da imperfeição que somos”. Numa obra de arte, a razão opera sobre elementos fornecidos pelo sentimento, que é “a matéria sobre a qual a razão dá forma.” Na opinião do poeta (1986, p. 55), “o feio está para a estética como o mal está para a moral.” E se “a ânsia da popularidade imediata é o que caracteriza as artes inferiores”, a “arte suprema é o resultado da harmonia entre a particularidade da emoção e do entendimento (que são do homem e do tempo) e a universalidade da razão que é de todos os homens e de todos os tempos”. Assim, “a arte terá vida como algo concreto, e organização, como abstrato.” De modo que, “se a obra de arte viesse da intenção de fazê-la, seria produto da vontade. Mas não o é. A arte vem do instinto [e] o fim da arte é imitar a perfeição da natureza; é agradar, elogiar e libertar”. (PESSOA, 1984, p. 56).

Dessa forma, se a finalidade da ciência é a “elevação do homem por meio da verdade”, se a finalidade da religião é a “elevação do homem por meio do bem” e a finalidade da filosofia é a “elevação do homem por meio do conhecimento”, a finalidade da arte é a “elevação do homem por meio da beleza [tendo] sempre por base uma abstração da realidade”. (PESSOA, 1986, p. 72). Assim, a arte tenta reaver a realidade, idealizando-a. Pessoa diferenciará artes cujo fim é entreter (dança e canto); agradar (escultura, pintura, arquitetura); e cujo fim é influenciar: a música (emoção abstrata); a filosofia (especulação metafísica) e a literatura (análise psicológica).

Por essa via de pensamento, se a principal faculdade do espírito científico é a inteligência (observação, reflexão), a principal faculdade do espírito artístico é a emoção, pois a arte “é uma interpretação objetivada de uma impressão subjetiva”. É a partir dessas “premissas” que Pessoa (1986) vai definir três princípios da arte: a generalidade (todos os homens devem sentir o que o artista exprime); a universalidade (exprimir o que é de todos os tempos, pois o artista deve ir além de sua época); e a limitação (cada forma de arte é única). Na visão do autor, uma obra de arte deve sugerir sem determinar.

Esse parece ser um ponto crucial da narrativa de Erico, tanto na sua relação com o leitor, como na relação do autor (criador) com seus personagens (criaturas). Segundo Hohfeldt (1984), Erico concede ampla liberdade a seus personagens para decidir a respeito das coisas, abrindo caminho para que “as personagens sejam entregues aos seus destinos,

que lhes batem à porta sempre inesperadamente”. Aliás, é o próprio Erico quem entende que a arte não deve ser usada “para fugir da vida”, mas sim para “capturar/provocar o touro da vida”. Para o escritor, “o ato de escrever é um ato de catarse”.

Ginzburg (2001, p. 13) vê na arte uma saída ante aquilo que Chklovski chama de “percepção automatizada”. Trata-se de uma “cegueira” 33 que “engole tudo: coisas, roupas,

móveis, a mulher e o medo da guerra”. Para o teórico russo, se “todos os nossos hábitos provém da esfera do inconsciente e do automatismo”, estamos diante de um fenômeno artístico toda vez que um procedimento “foi intencionalmente removido do âmbito da percepção automatizada” (GINZBURG, p. 14). Nesse sentido, a arte surgiria como um instrumento para reavivar nossas percepções que o hábito torna inertes. Afinal, para “ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis às coisas, para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte”, pois o propósito da arte é “nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento.” (GINZBURG, p. 15). Nas palavras de Fernando Pessoa (1986, p. 68), enquanto “a ciência descreve as coisas como são, a arte, como são sentidas, como se sente que devem ser [...] o essencial da arte é exprimir”.

Assim, conforme Ginzburg (2001, p. 17), “a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a qual tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração”. E isso porque, na arte, “o processo de percepção é um fim em si mesmo e deve ser prolongado”, pois a arte “é um meio de experimentar o devir de uma coisa”. Para o cineasta Francis Ford Koppola os filmes “devem provocar, oferecer uma experiência, e não uma idéia ou informação, nem uma história sobre um tópico conhecido ou ficcional”. 34 Conforme Pessoa (1998, p. 273): “O que interessa em arte não é

a sensibilidade, mas o uso que se faz da sensibilidade. Não o poema de uma verdade, mas a verdade de um poema.”

Para Ginzburg (2001, p. 23), a literatura, enquanto “arte do estranhamento”, pode fornecer um ponto de vista do qual “se pode olhar a sociedade com olhos distantes, estranhos e críticos”, pois o estranhamento tem um “poder corrosivo”, sendo capaz de atuar como “expediente deslegitimador em todos os níveis, político, social, religioso”. Para o

33 Ver “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.

34 Nesse sentido, o que dizer da experiência oferecida pela cena do Casarão cercado pelos maragatos na

revolução de 1893? Nem mesmo a réplica construída na Casa Erico Verissimo, em Porto Alegre, consegue dar uma sensação, uma experiência, como a narrativa.

autor, o estranhamento, além de “técnica literária”, pode ser também “um modo de atingir as coisas em si mesmas e penetrá-las totalmente”, até discernir qual seja a sua ‘verdadeira’ natureza (que inclusive pode ser a de não ter verdade alguma), até “pô-las a nu”, pois “atingir as coisas em si mesmas significa libertar-se das idéias e representações falsas”.

De acordo com esse raciocínio, uma das técnicas do estranhamento consiste em “apresentar as coisas na ordem de nossas percepções, em vez de explicá-las primeiro por suas causas, conduzindo a uma apresentação das coisas não em sua ordem lógica, mas sim nos mostrando primeiro os seus efeitos, a ilusão que nos atraí”. (GINZBURG, 2001, p. 26). Um dos pontos cruciais do estranhamento consiste em “descrever as coisas como se vistas pela primeira vez”, de modo que esse procedimento literário pode ser tanto um meio para superar as “falsas aparências e alcançar uma compreensão mais profunda da realidade”, como para “proteger o frescor das aparências” contra a intrusão das “idéias pré-fabricadas” e das “certezas pré-gravadas”. Nesse sentido, vale lembrar que o próprio Marcel Proust (apud Ginzburg, 2001) já havia sugerido que novos experimentos artísticos tinham a tarefa de “contestar as fórmulas pré-constituídas da representação”. Para Ítalo Calvino (1990, p. 33): “A literatura só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função.” Como diz o estilista de moda Marie Ruck, “é importante fazer o insólito para gerarmos uma nova ordem.”35

Com base nessas considerações, pode-se questionar se a narrativa de Erico utiliza esse procedimento literário a que Ginzburg chama “estranhamento”, ou se ela poderia “gerar uma nova ordem”? Por certo que o texto de O Tempo e o Vento não é um desses casos de “deformação lingüística”, como um Grande Sertão: Veredas (para citar uma referência), ou Valsa dos Aparados (para mencionar uma obra rio-grandense e serrana). Pelo contrário, a estética da obra de Erico encaixa-se naquilo que Ricoeur (1994) define como “sedimentação de uma tradição”. Em Erico, não há nenhuma “complicação da forma”, como escreve Ginzburg (2001). Pelo contrário, seu texto revela-se limpo, puro, descomplicado. Ele não cria neologismos e nem modifica a estrutura semântica e lexical da língua. Pelo contrário, reforça; “alfabetiza”. Onde estaria, então, o estranhamento? Na

35 Artigo publicado na Revista de Comunicação da Universidade de Caxias do SUL, Conexão, v. 6, n. 10,

quebra da linearidade do tempo? Na maneira de contar a história? Na variedade de pontos de vista que cada um dos personagens apresenta ao leitor? Ao contar a história a partir do seu revés, do plano das percepções, da “ilusão que atrai”? Onde se encontraria esse “expediente deslegitimador” e esse “poder corrosivo” de que fala Ginzburg? Nas considerações de Pitucha Terra Fagundes? Nas aparições dos Carés? Nas interpretações de Carl Winter? Nas posturas de Licurgo Terra Cambará e nas imposturas do Dr. Rodrigo? Nas estrepolias de Toríbio? Nas andanças de Fandango? Nas impressões de Aderbal Quadros? Nas galhardias do Capitão Rodrigo? Na tenacidade de Ana Terra? Nas “visões” de Dona Bibiana? Na secura de Maria Valéria?

Em tudo isso e, individualmente, em nada disso. Esse poder corrosivo parece ser algo inerente à própria condição da ficção, com sua tendência a subverter a “verdade oficial”: se o discurso historiográfico apresenta versões, a literatura tende a fornecer subversões, sendo, quem sabe, ainda mais subversiva exatamente quando sequer pensou em sê-la. Assim, no contexto da celeuma ideológica e discursiva acerca da formação social do Rio Grande do Sul e da origem étnica do gaúcho, com uma historiografia muitas vezes idealizadora dos tipos e arquétipos, e por vezes mais preocupada em glorificar nomes através da construção de estátuas e fixar datas e feitos heróicos em monumentos, O Tempo e o Vento surge como um painel dos primórdios da fundação e povoamento do Continente de São Pedro durante o período que vai do final do século XVII (o texto inicia com a derrocada final das missões jesuíticas, nos primórdios da anexação da faixa centro-oeste do território rio-grandense pela império lusitano), até a metade do século XX. Além desse aspecto, a narrativa é uma fonte textual que, exatamente por ser artística, consegue ir além da mera ideologia. Não se trata de história, mas de ficção.

Nesse sentido, e atentando para o fato de que a obra de Erico é um desses casos nos quais o conteúdo habita harmonicamente a forma, e vice-versa, o sentido tecido na própria tessitura, na estrutura, na “armação da intriga”, caberia perguntar: seria casual o fato do capítulo em que o “Índio Missioneiro” (Pedro) “fecunda” o ventre da Terra (Ana) chamar- se “A Fonte”? Isso não poderia ser considerado uma representação do processo de formação etno-cultural do Rio Grande do Sul e da própria identidade cultural gaúcha? Não estaria aí uma versão da origem missioneiro-guaranítica do “ser gauchesco”? Ana Terra é uma descendente de paulistas sorocabanos acaipirados e Pedro é um descendente de uma

guarani e de um bandeirante mameluco. Ambos são mestiços e, ao “acasalarem”, acabam intensificando ainda mais essa miscigenação. Trata-se do encontro de dois “mundos culturais”: o missioneiro agauchado (Pedro) e o bandeirante acaipirado (Ana).

Quando duas culturas se encontram, o que muitas vezes acaba acontecendo é uma mútua transformação, resultando em alguma outra coisa que já não é nenhuma das anteriores. A mestiçagem transforma os elementos “essenciais”. Como afirma Tomaz Tadeu da Silva (2003, p. 86-87):

As metáforas da miscigenação, hibridização e do sincretismo aludem a alguma espécie de mobilidade entre os diferentes territórios da identidade. As metáforas que buscam enfatizar os processos que complicam e subvertem a identidade querem enfatizar — em contraste com o processo que tende fixá-las — aquilo que trabalha para contrapor-se à tendência a essencializá-las [...] Na perspectiva da teoria cultural contemporânea, o hibridismo — a mistura, a conjunção, o intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes etnias — coloca em xeque aqueles processos que tendem a conceber as identidades como fundamentalmente separadas, divididas, segregadas. O processo de hibridização confunde a suposta pureza e insolubilidade dos grupos que se reúnem sob as diferentes identidades nacionais, raciais ou étnicas. A identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas.

Assim, de acordo com a configuração proposta pela obra, ao ler a palavra “fonte” se poderia entender “origem”. A fonte como a representação simbólica de uma suposta “matriz identitária” do gaúcho. A fonte enquanto origem, pois Pedro “é a origem ficcional do clã Terra-Cambará; o índio missioneiro está miscigenado aos bandeirantes paulistas, constituindo a “fonte” racial do Rio Grande do Sul. (PRITSCH, 2005, p. 23). A cena à beira do rio está carregada de simbologia, pois deve-se atentar que Ana Terra se entrega a Pedro, sobre as pedras e na água — e a presença da água, da terra e da pedra não pode passar desapercebida. Muitas vezes é na estética, na disposição dos elementos que compõem o cenário da intriga, mais que propriamente no tema, que pode estar configurado o sentido da obra.

Na interpretação de Pesavento (2004), através do metafórico episódio de A Fonte, Erico Veríssimo acaba por “retraçar” o mito das origens, contando como tudo teria começado. Nesse sentido, atente-se para o que diz Geertz (1978, p. 37) a respeito da metáfora — ou, conforme termos do autor, ao poder da metáfora: “É o poder através do qual a linguagem, mesmo com um pequeno vocabulário, consegue abarcar uma multidão de coisas.” Na metáfora, haveria uma “estratificação do significado”, na qual “uma

incongruência de sentido produz um influxo de significação”. Dessa forma, “a metáfora afirma sobre uma coisa que essa é outra completamente diferente”; de modo que ela “tende a ser mais efetiva quando é mais ‘errada’.” Eis o “poder da metáfora”, que se origina exatamente da “influência recíproca entre os significados discordantes que ela força, simbolicamente, num arcabouço conceptual unitário”. (GEERTZ, 1978, p. 38).

Essas considerações de Geertz (1978) sobre a metáfora conduzem a Ricoeur (1994), e a sua análise da “intriga como um modelo de concordância”, quando discorre sobre a questão da “discordância concordante” e da “concordância discordante”, na relação estabelecida entre tempo e narrativa, através do estudo da relação entre a poética de Aristóteles e as aporias de Santo Agostinho. Ao analisar a discordância inclusa, afirma o autor que “o modelo trágico não é puramente um modelo de concordância, mas de concordância discordante (distenttio animi)”. Nesse sentido, a arte de compor consistiria em “fazer parecer” concordante essa discordância que é inerente à vida e ação; pois “é na vida que a discordância arruina a concordância.” (RICOEUR, 1994, p. 76).

É a partir dessas considerações sobre a questão da concordância/discordância, que Ricoeur (1994) vai desenvolver a análise da “tríplice mimeses”: o ponto de partida e o ponto de chegada da configuração poética. Na visão do autor, o sentido de um texto é uma construção conjunta de um escritor e de um leitor: a configuração de uma realidade social “que em si mesma já é uma figuração”, refigurada. De acordo com a sua hermenêutica, a Mímeses I aparece como a “pré-figuração”; a Mímeses II, como a “con-figuração”; a Mímeses III como a “re-figuração”. Nas palavras de Ricoeur (1994, p. 117):

A hermenêutica preocupa-se em reconstruir o ato inteiro das operações pelas quais a experiência prática se dá (obras, autores, leitores)... O seu desafio é o processo concreto pelo qual a configuração textual faz a mediação entre a prefiguração do campo prático e sua refiguração pela recepção da obra.

Para Geertz (1978, p. 54), que acredita que a sociologia do conhecimento deveria ser chamada sociologia do significado, “o que é determinado socialmente não é a natureza da concepção, mas os veículos da concepção.” De modo que “a significação de um símbolo reside na sua capacidade de ser tanto verdadeiro como falso.” Seguindo o autor, têm-se a seguinte linha de pensamento: 1) a estrutura semântica da imagem possui 2) conexões referenciais com a realidade social na sua 3) configuração de significados dissimilares, onde reside 4) o poder expressivo e a força retórica do símbolo, com o seu 5)

entrelaçamento de significados, como 6) agente do processo social e da 7) ação simbólica. Por fim, entende o antropólogo que a metáfora se constitui no principal recurso estilístico, o artifício literário da ideologia.

É nesse sentido que o significado da linguagem de um texto pode ser buscado também naquilo que ele não diz; ou deixa de dizer... Porque a palavra é substancialmente enganadora e ilusória; encobridora. Como afirma Ítalo Calvino (1990, p. 35):

Por trás da palavra escrita existe o nada; o mundo existe só como artifício, ficção, mal-entendido, mentira. É só pela limitação do ato da escrita que a imensidade do não-escrito se torna legível [...] Não creio que a totalidade possa estar contida na linguagem: o meu problema é aquilo que fica de fora, o não-escrito, o não escrevível.

2 OS GAÚCHOS NO VENTO DO TEMPO

És o homem e me apareceste com o rosto de todos os homens. E eu te reconhecerei em todos os homens [...] Somos emigrantes que ainda não fundaram a sua pátria. O que dá uma enxadada no chão quer saber o sentido dessa

enxadada. E a enxada do forçado, que humilha o forçado, não é a mesma enxada do lavrador, que exalta o lavrador. A prisão não está ali onde se trabalha com a enxada. Não há horror material. A prisão está ali, onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz à comunidade dos homens [...] Onde reside

a verdade do homem? A verdade não é o que se demonstra; é o que simplifica. Se nesta terra, e não em outras, as laranjeiras lançam sólidas raízes e se carregam de frutos, esta terra é a verdade das laranjeiras. Se esta religião, esta cultura, esta escala de valores, esta forma de atividade, e não outras, favorecem no homem sua plenitude, libertam nele o grande senhor que se ignorava, esta escala de valores, esta cultura, são a verdade do homem. E a lógica? Ela que se arranje para tomar conhecimento da vida. (SAINT EXUPERY, 1949, p. 45-48).

As identidades gaúchas têm sido enfocadas basicamente na variação entre dois tipos fundamentais: o gaúcho rio-grandense e o gaúcho platino. Foi em torno dessa dialética de oposição binária que gravitou — e ainda tende a gravitar — boa parte da crítica especializada sobre o tema. No entanto, essa contraposição platino versus rio-grandense pode representar apenas duas dentre tantas variações identitárias do “modo-de-ser-gaúcho”. E isso

na medida em que as identidades são representações formuladas em oposições

ou contraste a outras identidades [...] As construções dessas identidades passam

pela elaboração de traços culturais brasileiros que são apropriados e usados como sinais diacríticos, isto é, sinais que conferem marcas de distinção a diferentes

grupos sociais.[...] Para os gaúchos, só se chega ao nacional através do regional;

só é possível ser brasileiro sendo gaúcho antes [...] A identidade gaúcha é expressão de uma distinção cultural em um país onde os meios de comunicação de massa tendem a homogeneizar a sociedade culturalmente a partir de padrões muitas vezes oriundos da zona sul do Rio de Janeiro. (OLIVEN, 1992, p. 97. Grifo nosso).

Essas considerações de Oliven ressaltam o traço da distinção que parece ser inerente à identidade. Trata-se, quem sabe, de uma relação de “dessemelhança”. É nesse sentido, e através da contraposição das diferenças, que se poderá caracterizar os variados tipos gauchescos representados por alguns personagens de O Tempo e o Vento. A narrativa de Erico parece trazer em si a antiga investigação filosófica a respeito da identidade e da diferença; do outro e do mesmo. É como se para mostrar “quem somos nós”, fosse preciso

revelar ao mesmo tempo “quem são os outros”, introduzindo, sob o signo da alteridade, uma reflexão sobre a analogia do “serão todos os mesmos?”36

Conforme Pesavento (2004, apud CHIAPINNI; MARTINS, p. 116), “Erico Verissimo estabelece um derradeiro contraponto de trajetórias na escritura que colabora para compor a visão da identidade/alteridade dos gaúchos”. E isso levando em conta que, para o autor de O Tempo e o Vento, “essa separação entre nós e os outros não é tão nítida como parece. Não descobrimos ainda que para os outros, nós somos os outros.”