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Étnicamente, o gaúcho é um amálgama de índios, espanhol das repúblicas platinas e de português [...] Grande parte da população da Colônia de Sacramento era constituída de gente das margens do rio São Francisco e de Minas Gerais.

Thales de Azevedo

O gaúcho de Erico Verissimo pode ser visto como um tipo essencialmente mestiço. E se isso de certa forma já está configurado nos próprios alicerces de sua construção simbólica, também é um tema da narrativa. Como nesse diálogo, no sobrado dos Cambarás, entre Carl Winter e o Dr. Nepomuceno Saraiva, quando os dois personagens discutem sobre

as primitivas origens do gaúcho. “Os gaúchos, Latinos!?”, pergunta o médico alemão e explica:

Quem foram os primeiros povoadores desses campos? Paulistas descendentes de portugueses. Pois bem. Os portugueses já tem uma boa dose de sangue mouro. Mais tarde chegaram aqui os casais açorianos, muitos dos quais eram de origem flamenga. Nessas províncias houve várias misturas com sangue índio e negro.” (VERISSIMO, 1997, v. 2, p. 76).

Conforme Ornellas (1978, p. 42): “A herança étnica que pretendemos apontar no tipo primitivo do gaúcho, apontamo-la na figura do pioneiro peninsular, quer fosse ele português ou espanhol.” Para o autor, a origem do gaúcho primitivo está ligada a “mais alta expressão da riqueza missioneira: a criação de gado vacum, quando os campos de Corrientes e do Rio Grande do Sul se povoaram de rebanhos numerosos”. Entende Ornellas (1978, p. 46) que foi no trajeto do

comércio de gado estabelecido entre as estâncias missioneiras em campos do Rio Grande e redutos coloniais de Soriano e Santa Fé que se formou o primitivo gaúcho: rastreador e vaqueiro; tropeiro e changador. Lembra ainda que “o trajeto para as reduções que ficavam ao sul, já em território avançado do Uruguai, era feito pela estância de Yapejú até os limites da cidade de Paisandu.

O processo de miscigenação ocorrido na formação gaúcha é algo que aparece configurado na narrativa de Erico. Mais do que um tema, está na estética da obra. Na genealogia dos tipos, nas características dos personagens, salta aos olhos do leitor o caráter mestiço do ser gauchesco, algo que terá uma relação direta com o aspecto aberto e móvel da fronteira territorial rio-grandense, espaço privilegiado da troca, da confluência e da mistura. Em Erico, a mestiçagem se perpetua e se intensifica no trânsito das gerações. Aparece em traços fisionômicos dos personagens, como nos “olhos oblíquos” de Bibiana, ou no “olhar trigueiro” dos homens de Santa Fé.

Conforme Pesavento (2004), Erico “estetiza o dado histórico”, como nos “olhos garços” da ruiva Maria Rita, a ilhéu açoriana aflamengada que vai se “miscigenar” com o curitibano Chico Rodrigues. O nativo da terra, o paulista vicentista, o ilhéu açoriano, o platino-missioneiro, o caboclo sertanista, o pernambucano brasileiro, o mineiro acaipirado, essas etnias que se fazem presentes na trilogia e na formação do clã Terra-Cambará, acabarão encontrando-se no casal Rodrigo Cambará e Bibiana Terra. Assim, para a historiadora, “com o delineamento da linhagem, Erico Verissimo passa a trabalhar com os traços definidores do perfil identitário do gaúcho”. (2004, p. 122).

Como o próprio Erico costumava referir, o Rio Grande do Sul sempre foi o lugar da “mistura dos rodeios”. Desde as raças bovinas e cavalares, até as etnias humanas. Se nas lides pecuárias rio-grandenses o Nelore cruza com o Red Angus e o Zebu com o Charolez, nas lides humanas o caboclo vai cruzar com o platino e o caipira sertanista, com o missioneiro correntino. Essa miscigenação, essa “co-fusão” étnica, é um dos pontos marcantes da trilogia. Em “O Arquipélago”, aparecem alguns serviçais do Sobrado,38 tipos

populares como a cozinheira Maria Joana, que costumava contemplar as pessoas num silêncio profundo e desconfiado, e que de certo modo representam essa presença do Brasil mestiço na formação rio-grandense. Nessa cena, o ponto de vista é o do personagem Dr. Rodrigo Cambará, pequeno-burguês afrancesado, representante fiel dos jovens filhos da elite gauchesca que foram estudar em Paris no tempo em que os “gigolôs de vaca” enriqueciam a custa dos touros, época em que os negrinhos serviam o mate para os estancieiros rio-grandenses, num transplante para o sul da cultura da Casa Grande e da Senzala, na sua versão arquitetônica dos Sobrados e Mocambos:

Era uma mestiça de feições repelentes, e sua cabeça pequena, de lisos cabelos muito negros, a pele enrugada colada aos ossos, dava a impressão desses crânios humanos encolhidos feitos pelos índios do Amazonas. Falava pouco, resmungava muito. Nos dias de vento andava pela casa com as mãos na cabeça a uivar, e acabava no bambual, onde esperava que a tempestade passasse [...] Aquela criatura imbecilizada mais parecia um animal que um ser humano [...] Deu-lhe uma moeda de dois mil-réis. A cafuza apanhou-a com um gesto brusco e arisco. (VERISSIMO, 1997, p. 249).

Se a cozinheira Maria Joana representa a presença do Brasil caboclo na narrativa, também circulam pelo Angico algumas identidades genuinamente cisplatinas e acastelhanadas, as quais Toríbio encontrará no galpão, após o jantar. É o caso do velho Zózimo, aquele que “se estivesse de veia, cantaria umas cantigas que aprendera na Banda Oriental, nos tempos de piá”. Ou do “negro Tiago”, aquele que certamente “tocaria uma cordeona”. Negros tocando cordeona no galpão; velhos que cantam antigas canções da Banda Oriental; Cafuzas amazonenses que enlouquecem em dias de vento. Caboclinhas sedutoras que vão encontrar os Cambarás em meio às matas e cachoeiras. No Rio Grande, os tipos mestiços se misturam numa interação sexual, étnica e cultural que parece trazer em seu bojo um antigo passado fronteiriço, no qual luso-brasileiros e castelhano-platinos

38 Em Solo de Clarineta, se verá como eles são representações de tipos humanos quie circulavam na órbita do

disputavam um território cujos limites, marcados no papel e tratados à palavra, aguardavam a sua efetiva demarcação. Para Vellinho (1970, p. 24):

Antes da incorporação definitiva das extremaduras norte e sul da América Portuguesa, éramos um organismo em obscura gestação a desenvolver-se sem plano nem medida ao longo do litoral e nos recessos virgens do Continente. O país, como numa espantosa levedura, inchava para todos os lados, desde as bordas do Atlântico até o costado oriental dos Andes. Em verdade, porém, só cresciam o tronco e os braços do imenso corpo desconjuntado: a cabeça e os pés do monstro se perdiam, se desmanchavam na fluidez do deserto [...] A Província de São Pedro resultou do maior esforço de integração do Brasil em suas fronteiras naturais. Frustrada a tentativa de fixação no Rio da Prata, tendo esbarrado na contra-ofensiva espanhola, estancaram sobre a raia que afinal prevaleceu, e foi de encontro a essa tensa linha de sangue que se condensou o espírito de resistência e afirmação do mundo luso-brasileiro face a face com o mundo hispano-americano. Realidade fronteiriça que será o ambiente propício a uma intensa miscigenação de etnias oriundas do centro-sul e norte brasileiros e das regiões platina e correntina, num processo em que povoadores de distintas culturas e regiões encontram-se nas “terras de ninguém”, que com isso rapidamente passam a ser de muitos. Homens que vem para o Continente de São Pedro em busca de terra farta e gado gordo, homens muitas vezes sem lei e que migram para o sul, território reuno, em busca de um nome.