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A ideia de Deus como expressabilidade semântica

No documento A imanência da linguagem em Spinoza (páginas 127-132)

4 O ENTENDER NÃO É MUDO: COMPREENDER É

4.1 A polêmica ideia de Deus

4.1.3 A ideia de Deus como expressabilidade semântica

Projetamos incessantemente a realidade segundo nosso ponto de vista humano. No entanto, como seria possível, por meio dessa mesma estrutura linguística, liberar uma potência? Essa é a tarefa que podemos encontrar no spinozismo com a linguagem. É por isso que cabe a Spinoza criar um conceito de substância e, portanto, de Deus, que seja liberador de interpretações e compreensões possíveis. Assim, diferentemente do Deus teológico, Deus é uma potência expressiva.

O método geométrico aparece como uma norma de verdade como afirmação da força do intelecto frente à ordenação do hábito e da memória ŕ que Spinoza utiliza na própria Ética e sem a qual não teria como retirar dos homens essas pré-concepções costumeiras. Isto Ŗ(...) se a matemática, que se ocupa não de fins, mas apenas das essências das figuras e de suas propriedades, não tivesse mostrado aos homens outra norma de verdadeŗ (EIAp.). O método geométrico é de extrema importância e propõe uma causa eficiente pela qual podemos deduzir suas propriedades. Em vez de pensar como os teólogos uma causalidade final, Spinoza está propondo apenas pensar a ordem de dedução que afirma a potência do intelecto como uma potência livre e sem constrangimento. A força imanente é primeira como expressabilidade.

Na imanência, Deus é visto como causa livre de todas as coisas, isto é, as coisas foram determinadas por Deus a agir de certa e determinada maneira Ŗnão certamente pela liberdade de sua vontade, ou seja, por seu absoluto beneplácito, mas por sua natureza absoluta, ou seja, por sua infinita potênciaŗ (EIAp). É importante notar que há uma oposição no pensamento de Spinoza entre liberdade de vontade (por absoluto beneplácito, ou, a seu bel- prazer) e liberdade como potência, isto é, como necessidade. Liberdade é não constrangimento; nem interno nem externo. A liberdade é uma potência para autoprodução,

conforme suas próprias leis89, em vez de livres decisões de uma mente ŕ seja ela individual

ou divina. Nesse sentido, os eventos mentais também são questões de força que procuram somar, interagir e se organizar por meio das relações entre indivíduos, isto é, ideias compostas numa multiplicidade social e interativa de afecções e afetos, excluindo a relação linguístico- projetiva de um sujeito privado e particular de um lado e os predicados exteriores de outro.

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Aqui pensamos em leis que regem a natureza inteira em sua autoprodução, ou seja, leis necessárias do universo. Cf. Ciência Intuitiva e Beatitude em Spinoza de Leonardo Lima Ribeiro. In: Intuitio. ISSN 19834012, Porto Alegre, Vol.6-N.1.Junho 2013, p.169-193.

Assim, a realidade (Deus ou substância) é posta como uma potência da qual estão imbricadas todas as relações possíveis de afecções e atributos. Deus se exprime de infinitas maneiras em infinitos atributos e modos (EIDef.6). A onipotência, onipresença e onisciência de Deus são, portanto, altamente questionadas. Deus não é um senhor em sua morada pelo qual decide de acordo com sua vontade absoluta, porque compreende e está em tudo. Pelo contrário, o que fomenta a ideia de Deus é justamente pensá-lo como uma potência imanente e absoluta de expressão, em infinitos atributos infinitos em si, dos quais as coisas são modificações finitas.

Essas modificações finitas ou modos operam de uma maneira definida e determinada numa potência própria: o corpo é o movimento e o repouso, a mente é a produção de ideias. Na interação desses modos finitos, os afetos, as afecções, bem como as ideias e os corpos, são analisados como uma relação de potência e forças. Assim, Deus produz as coisas por sua livre necessidade, porque age exclusivamente pelas leis de sua natureza e sem ser coagido por nada. Não há nada que intrinsecamente ou extrinsecamente leve Deus a agir de outra maneira. Ele não faz isso por uma livre decisão, como se pudesse realizar algo ou não, mas como causa imanente de todas as coisas, isto é, pela necessidade e leis de sua autoprodução. Ele é causa livre porque nada lhe constrange à produção de si e de suas determinações interiores ŕ que são os atributos e suas modificações.

Para Spinoza, a necessidade do conceito de Deus não está na esfera apenas de sua propriedade, mas também de sua definição. Há uma necessidade de pôr uma definição que esgote Deus como causa imanente e autoprodutora. Uma definição é o que concebe a potência como essência. Trata-se de uma afirmação plena do intelecto que alcança sua expansão máxima. No entanto, enquanto o TIE põe de forma racional tal questão, a Ética preenche o conteúdo inerente ao conhecimento como definição na ciência intuitiva. Definir é, na Ética, além de uma afirmação intelectual, dotada de conteúdo afetivo, porque é o esforço supremo da mente humana (EV25), que promove a maior satisfação que pode existir (EV27). Desse modo, a mente considera a si mesma com uma suprema alegria diante da afirmação de sua força intelectiva.

Ora, se é assim, toda vez que concebe as coisas por meio de uma construção de uma definição, a mente goza justamente daquela união com a natureza inteira buscada nos parágrafos iniciais do TIE. Esta obra coincide com a Ética quando percebemos que a pergunta final daquele tratado, na busca de uma definição do que seja o intelecto, consiste justamente

na sua potência afirmadora, agora não apenas intelectual, mas sentida e vivida. É controverso pensar que a definição é uma verdade que se desvela. Ela é uma construção.

Se estamos falando de coisas incriadas, uma tal definição deve ser a que permite a abertura plena de concepção das coisas, com a qual é possível fruir daquela união com a natureza inteira. Na definição de Deus, o intelecto está unido à sua própria natureza e potência. O que não é diferente da própria ideia de Deus, enquanto definição de coisa incriada (TIE97), que necessitaria somente de si mesma para explicação e que não recorreria a nenhum abstrato, mas que afirmaria sua própria existência e dela seria possível deduzir todas suas propriedades.

A ideia de Deus é uma questão vital da filosofia da imanência. Spinoza precisava de um conceito que fosse a abertura total dos sentidos. Mas que, ao mesmo tempo, não se reduzisse às ordens pré-estabelecidas já assimiladas. Sua ênfase era uma ideia porvir que abrisse a possibilidade real de conceber as coisas e a si mesma como potência e força. A ideia de Deus é formada a partir da afirmação que lhe corresponde no intelecto. Afirmação esta que exprime a própria potência do intelecto, porque se trata de uma definição do todo em sua abrangência plena. Conceber a potência do intelecto nesse campo de expressão e concepção é bem diferente de imaginar ou ligar Deus aos nomes que estamos acostumados a ver (EII47S).

ŖQuanto mais realidade ou ser uma coisa tem, tanto mais atributos lhe competem.ŗ (EI9). Quanto mais realidade tem uma coisa, mais atributos e mais forças

expressivas lhes são próprios90. O esforço da razão é o terceiro gênero de conhecimento ou

conceber as coisas em sua essência, isto é, defini-las e, portanto, concebê-las no grau absoluto de sua expressabilidade (EV28, EV31 e KV, II, 1,*).

Deus é, portanto, Ŗum ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinitaŗ (EIDef.6). O conceito de Deus em Spinoza inclui toda uma fábrica de potencialidades para

90 Sobre isto, Céline Hervet argumenta: ŖEn effet, de même que Ŗde la necessité de la nature divine doivent

suivre une infinité de choses dřune infinité de manières (cřest-à-dire tout ce qui peut tomber sous un intellect infini)ŗ, de même la puissance de lřintellect lorsquřil définit peut déduire a priori, à partir dřune simple définition, les propriétés dřun objet. La définition produit la chose en tant que les propriétés quřelle énonce déoulent en réalité de lřessence de la chose définie. Plus la définition exprime de réalité, plus lřentendement est puissant. Cette puissance productive de lřintellect sřaffirme dans la définition de choses créées ou incréées, dans la définition par la cause prochaine, qui permet de comprendre la causa efficienteŗ (HERVET, 2011, p.199). Cf. EI16, EI16Dem e Cf. Ep 82 e 83.

pensar as coisas em sua própria relação de força91. Deus é a própria natureza ou substância que se exprime essencialmente de infinitas maneiras singulares. Assim, Ŗa potência de Deus é sua própria essênciaŗ (EI34).

Isso porque Ŗpoder de existir é potência, segue-se que, quanto mais realidade a natureza de uma coisa possuir, tanto mais ela terá forças para existir por si mesma.ŗ (EI11S). Deus tem uma potência absolutamente infinita de existir. Ocorre uma abertura conceitual como expressão. Ora, se sabemos o que é definir, como chegar a um conceito que defina a definição e que, portanto, é a própria produção de definições? É uma busca da afirmação de si, de um gozo possível nessa afirmação, que Spinoza busca.

A plena potência do intelecto é a afirmação dessa expressabilidade com a qual se concebe a essência. A parte final da Ética chamará isso de liberdade ou potência do intelecto, que não é apartada de seu aparato afetivo e afirmador da Ŗmaior alegria que pode existirŗ, porque está referida a ideia de Deus como causa. Se o intelecto extrai as propriedades de uma definição dada, então aquilo que é abertura total de definições e propriedades é a própria ideia de Deus (EI16).

É eliminada aqui toda e qualquer diferenciação entre o entendimento humano, enquanto atividade essencial da mente humana, e o próprio intelecto (se é que podemos

utilizar esse nome92) infinito de Deus. O ato afirmador afetivo e intelectivo é um movimento

único em Deus e no homem. Assim, Ŗnós nos deleitamos com tudo que compreendemos por meio do terceiro gênero de conhecimento, com uma alegria que vem, certamente, acompanhada da ideia de Deus como sua causaŗ (EV32).

À medida que tocamos a eternidade, quando definimos intelectualmente, concebemos uma perspectiva eterna de nossa relação com o corpo e a mente. Isto é, compreendemos, ao mesmo tempo, a eternidade de Deus, promovendo o sentimento de amor.

91 Celine Hérvet propõe: ŖLa puissance du langage consiste alors dans la possibilité pour une définition, de

contenir, de comprendre en elle même une pluralité de choses, une infinité de choses si lřon se place du point de vue de lřappartenance des modes finis que nous sommes à lřentendement infinit de Dieu. La puissance de la définition reside dans le nombre de propriétés déduites à partir de sa formulation, dřautant plus nombreuses que lřessence de la chose enveloppe de réalitéŗ (idem, p.200).

92

Importante notar que Spinoza, toda vez que se refere a Deus, acaba por cair na utilização de termos que não poderiam, ou não deveriam, ser atribuídos a ŖEle‖ enquanto Deus não pessoal. Essa questão linguística está, principalmente, presente na quinta parte da Ética, na qual ele põe que ŘDeus ama a si mesmoř ou que ŘDeus se autocompreendeř em sua produção absoluta. O que é radicalmente oposto à primeira parte da Ética, onde Spinoza enuncia que não poderíamos atribuir intelecto e vontade a Deus, se entendêssemos por esses termos outra coisa totalmente distinta das do seu sentido humano. Há esse transbordamento da linguagem com o qual Spinoza volta a utilizar os termos por ele criticados, mas agora em um sentido completamente novo.

O que Spinoza chama de amor intelectual de Deus. Nós fazemos parte, com isso, do mesmo processo com que ŖDeus ama si mesmo com um amor intelectual infinitoŗ (EV35). Isto é, se Deus concebe as coisas por um intelecto infinito e goza de uma perfeição infinita, certamente, isso é acompanhado da ideia de si mesmo como causa, enquanto uma satisfação consigo mesmo. Então, nós fazemos parte desse movimento do real de autoprodução e autoconcepção amorosa, à medida que definimos e exprimimos nossa potência de concepção e afirmação intelectuais.

ŖO amor intelectual da mente (humana) para com Deus é uma parte do amor infinito com que Deus ama a si mesmoŗ (EV36). Spinoza tem todo cuidado para não antropomorfizar Deus e atribuir a ele, aqui, dimensões humanas. Ele diferencia o intelecto infinito que seria o de Deus e também o afeto de alegria, de si mesmo como causa e, portanto, de amor, visto que são formas de associar o modo como os homens fazem esta relação, mas que designam, numa espécie de analogia, aquilo como seria em Deus ou na Natureza inteira.

O que é importante notar é que a forma potencializadora das definições é a própria força de afirmação intelectual. Afirmação esta que Spinoza pratica na construção de seus conceitos e incita construções posteriores como potências singulares de expressão e compreensão, em um movimento único. Quando a substância ou Deus se concebe, por meio de uma ideia adequada na mente humana, isso consiste numa expressão de uma ideia do entendimento absolutamente infinito ŕ por meio da essência de uma mente finita e que compreende a natureza de seu corpo e a si mesma pela perspectiva da eternidade.

O ato de compreensão, que em nós é posterior, se iguala na própria produção dos modos da substância e, todavia, essa atividade é uma potência criativa à medida que realoca o homem numa dinâmica tão adequada quanto potente da Natureza inteira. É dessa forma que a ordem geométrica gerencia toda uma potência de afirmação intelectual, com a qual a mente considera a si mesma como causa e, com isso, gera um modo de vida ativo, em que conhecimento e expressão formam um ciclo de alegria, autoprodução e amor.

ŖJamais somos nós os que afirmamos ou negamos algo da coisa, senão que é a coisa mesma que afirma ou nega em nós algo de si mesmaŗ (KV,II,16. 5, p.82, tradução

nossa93). A natureza é um campo de forças que não pode ser preenchida por nossas pré-

interpretações, pré-concepções e, principalmente, por nossa linguagem. Nosso sentido

93 ŖJamás somos nosotros los que afirmamos o negamos algo de la cosa, sino que es la cosa misma la que afirma

humano é transferido e doado para a natureza, em vez de deixarmos que se passe sua potência própria, sua afirmação própria. Para Spinoza, Deus ou a natureza não é um conceito como formávamos sob os moldes clássicos da metafísica, ao tentar explicá-lo segundo nossa interpretação antropomórfica e seus significados. Essa é uma prática da consciência como

primeiro gênero de conhecimento94 e que deve ser combatida. A força do entendimento em

Spinoza engendra as definições e a abertura de suas propriedades. Esse é o próprio instrumento com o qual o filósofo subverte o conceito de Deus, indicando não mais uma causalidade final, mas, sim, uma causalidade eficiente como abertura e expressabilidade. Esse mesmo método para conceituar a Natureza é também utilizado nas interpretações dos textos elaboradas por ele.

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