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Função hermenêutica e a metáfora interpretativa

No documento A imanência da linguagem em Spinoza (páginas 159-165)

4 O ENTENDER NÃO É MUDO: COMPREENDER É

4.3 Spinoza e uma linguagem dupla (?)

4.3.2 Função hermenêutica e a metáfora interpretativa

Apesar dos pontos discordantes que elencamos para com a proposta de Yovel, não discordamos que Spinoza utiliza-se da metáfora como figura de linguagem sob o ponto de vista interpretativo. Esse uso interpretativo é explícito no método do TTP. Mas devemos enfatizar que toda interpretação é também uma expressão. Assim, Spinoza se utiliza dessa figura de linguagem incessantemente, mas explicitamente. O uso metafórico, tantas vezes aludido por Yovel, implica que, por vezes, Spinoza se utiliza de termos que não são próprios de sua filosofia, e que seu significado está somente nela e não no próprio texto que ele analisa. O real significado de ŘVontade Divinař, por exemplo, não está em outra coisa senão em uma concepção de Deus imanente, que é uma autoprodução e que segue leis necessárias.

Spinoza não se contenta apenas com o sentido literal dos textos que analisa, mas busca seu sentido metafórico quando necessário. No exemplo de que ŘDeus é ciumentoř ou ŘDeus é fogoř, vimos que é necessário recorrermos ao sentido metafórico, para apreensão do verdadeiro sentido. A metáfora está, então, a serviço de um sentido que precisa ser trazido à tona, para que este sentido seja realmente expresso.

Com o método interpretativo spinozano, há termos que só fazem sentido na filosofia cartesiana, há outros que apenas fazem sentido nas escrituras. Todavia, Spinoza inclui em seu vocabulário outros termos que, mesmo assim, são interpretados sob o ponto de

vista da sua filosofia da imanência. Ele inclui os diversos sentidos para endoreconstruí-los124

na forma de sua verdadeira filosofia. Essa seria, de fato, a sua estratégia linguística. Isto quer dizer que, além de analisar criticamente os termos em suas diversas interpretações, o filósofo reestrutura os conceitos de uma forma singular e nova; e isso é totalmente condizente com sua investida potência do intelecto, uma vez que ele traz um novo ponto de vista por meio de conceitos e vocabulários antigos.

124

Termo utilizado por André Campos na política spinozana em seu artigo A Endoreconstrução do Contrato

Social em Spinoza In: Revista Conatus, Vol. 3, Número 5, Julho 2009, p.11-25, trata-se de um termo da

arquitetura que designa uma reconstrução a partir de dentro de um edifício antigo. E, defendemos aqui, que serve de analogia da subversão e da invenção da filosofia spinozana, a partir de uma análise minuciosa, ou seja, a partir de um olhar de dentro, das filosofias que ele confronta. Isso ocorre em função de não apenas compreendê- las em suas próprias potências e forças interpretativas, mas também transformá-las radicalmente.

Para Yovel, essa é uma terceira função que é a hermenêutica da linguagem. Nela é possível fazer uma espécie de tradução dos termos das Escrituras, para as ideias da filosofia spinozana. Yovel indica os seguintes termos:

O intelecto de Deus: a totalidade de ideias adequadas (incluindo todas as essências individuais, todas as proposições e teorias verdadeiras sobre o universo) tomadas nas suas relações recíprocas;

A vontade de Deus: a totalidade de coisas, acontecimentos e processos no universo, tomados nas suas conexões causais necessárias;

O poder de Deus: o mesmo que a vontade de Deus (com uma ênfase subjetiva na factualidade);

A criação: a particularização intrínseca da susbstância segundo as leis lógicas da sua natureza (Ética, I, prop. 16);

A salvação: o conhecimento do terceiro gênero de conhecimento associado ao amor intelectual à natureza-Deus;

A omnipresença de Deus: o facto de todos os modos serem na substância; Os decretos de Deus: as leis eternas da natureza;

Deus ama a justiça e a benevolência: a justiça e a ajuda mútua são modelos a serem imitados na conduta dos não filósofos (YOVEL, 1993, p.151).

Se tomarmos aqui os primeiros termos, então, temos os sentidos religiosos tradicionais, ou seja, as suas formas de expressão vulgares, a interpretação de anos e anos de instituições e autoridades construídas dia após dia e incutidas em nossos hábitos, nossas formas de comportamento, nossa estrutura social, familiar, econômica etc. Já os segundos termos são de uma filosofia da imanência que, para Spinoza, é a verdadeira, e que demonstra e denuncia, ao mesmo tempo, aquela força poderosa de produção de sentido.

Assim, os termos da esquerda podem ser utilizados como metáforas ou como substitutos da verdade que lhes são inerentes e que são, necessariamente, os termos da direita. Spinoza produz uma construção a partir de dentro (ou endoreconstrução) em que o sentido expressa seu próprio modo de invenção. Isso é verdadeiro e é essa forma de filosofar que

produz o pensamento125. Vemos pouca mudança nos signos linguísticos em relação às

filosofias que Spinoza confronta, mas percebemos mudanças radicais nas ideias, sobretudo, na concatenação e encadeamento dos vocábulos de sua filosofia, e, portanto, na forma de dizê-las e expressá-las. Ele não cessa de jogar o jogo linguístico de seus interlocutores, embora o ponto de vista teórico dele seja radicalmente novo.

125 Conforme Marilena Chauí: "Espinosa inova porque subverte, expondo suas ideias num duplo registro

simultâneo: no do discurso que diz o novo, ao mesmo tempo que se realiza como contradiscurso que vai demolindo o herdado. A poderosa rede demonstrativa dos textos espinosanos é também um tecido argumentativo e por isso a obra se efetua como exposição especulativa do novo e desmantelamento dos preconceitos antigos que referenciam o presente, subvertendo, nos dois registros, o instituído" (CHAUÍ, 1999, p. 37). E ainda: ŖQue conclusões a ordem propicia? Negar que haja mistérios, segredos e enigmas nos textos, e atribuir à superstição de uns e à malícia de outros a transformação em mistério especulativo daquilo que é obscuridade gramatical, léxica ou literáriaŗ (CHAUÍ, 1999, p. 569).

Devemos enfatizar que, tanto para Yovel quanto para a interpretação que estamos propondo, há uma função construtivo-hermenêutica da linguagem em Spinoza. Isso está nos termos comuns às religiões reveladas, porque o filósofo preocupa-se com problemas metafísicos. Ele reconstrói os sentidos, mas não somente os das religiões reveladas. As noções de atributos, substâncias, modos e vários outros que são base de sua ontologia advêm do paradigma cartesiano e das metafísicas tradicionais. Portanto, a ênfase exacerbada de Yovel, no caráter religioso de Deus e da salvação, é o que nos leva a um ponto de discordância. Ele parece confrontar Spinoza apenas com a religião revelada, como se esta fosse a única fonte filosófica para o seu pensamento. Com isso, Yovel traz um programa positivo de conversão racional da multidão, que discordamos em partes.

É importante notar que a palavra ŘDeusř está no ápice do ponto de vista metafórico, uma vez que Spinoza faz questão de utilizar este termo tão comum à religião revelada. A sua filosofia tem por preocupação principal Deus e a união da mente para com ŘEleř, sendo esse o caminho da salvação, lembrando o texto em que ele afirma: ŖDe tudo o que já foi dito, se pode compreender facilmente o que é a liberdade humana, que eu defino como se segue: é uma existência firme, que nosso entendimento alcança através da união

imediata com Deusŗ (KVII,26,9 p.112, tradução nossa126). A ideia de Deus é a grande verdade

e união, de modo que todas as contraposições a sua filosofia ŕ ou concepções de Deus opostas ŕ se canalizam para essa ideia, que ele desenvolve e conceitua com tanto rigor na fórmula da imanência: Deus sive natura.

Ora, vimos que, muitas vezes, ao enunciar e teorizar Deus por meio da geometria, isto é, de forma racional, como Spinoza pretende, ele não escapa por meio dessa análise, da própria forma linguística que se define e se deduz a ideia de Deus. Daí as inúmeras vezes que ele diz não poder atribuir características humanas a Deus, mas na EV, ele não cessa de dizer que Deus ama. Na EI, ele enfatiza que o intelecto de Deus só pode ser entendido, guardada as devidas proporções, tal como o cão a constelação está para o cão, animal que ladra. Só nesse sentido, podemos entender: Ŗporque a ciência de Deus não convém [convenientia] com a ciência humana mais que o Cão, constelação celeste, com o cão, animal que ladra, e talvez

ainda menosŗ (CM, II, 11 p.274, tradução nossa127).

126 ŖPor todo lo ahora dicho se puede compreender muy fácilmente cuál es la libertad humana, que yo defino

como sigue: es una existencia firme, que nuestro entendimiento alcanza mediante la unión inmediata con Diosŗ

127 ŖPorque la ciencia de Dios no concuerda con la ciencia humana más que el Can, constelación celeste, con el

A linguagem não cessa sua atividade metafórica concernente à metafísica. Dizer que Deus ama, é como se fosse o amor que sentimos quando algo se extrai de nossa própria natureza como potência. Afirmar um intelecto de Deus é afirmar como se Deus entendesse sua própria autoprodução necessária e livre. E, portanto, é como se Deus se alegrasse consigo mesmo. O caráter metafórico da linguagem é então transformado. Há um transbordamento da linguagem que é potencializado pela estrutura interpretativa do próprio método spinozano. A linguagem transborda para a esfera do não dito. Ele inventa outro tipo de metáfora. Sua forma se exprime também de maneira metafórica e análoga. Sua forma de dizer Ŗé como se na linguagem transcendente Deus fosse isso, mas na imanência absoluta Deus é aquiloŗ. Todo seu texto prossegue nesse estilo.

Em suma, a filosofia de Spinoza é esse embate linguístico com o qual se desconstrói e se reconstrói conceitos. E a sua grande questão era unir o sentido à expressão. Isto é, trazê-lo na mesma necessidade de sua criação, constituindo o que ele chama de verdade, o que, de certa forma, é um sentido de verdade trazido à tona pela sua filosofia, como denúncia e engendramento de outro modo de produção de verdade. A sua oposição é de sobreposição de forças interpretativas inclusivas em sua filosofia.

Isso é completamente oposto à verdade teológica que distancia palavra, intérprete e verdade. É nesse sentido que a imanência da linguagem é um combate próprio, que elimina as instâncias transcendentes do conceito. A anterioridade semântica é um vício de nossas mentes. O texto não existe para trás. É isso que Spinoza poderia afirmar, muito embora não teorize. Ele explicita isso no próprio modo como interpreta. Ele inclui os sentidos como normas da própria verdade. A verdade, tal como concebemos, traz consigo um problema grave de anterioridade semântica. Pelo contrário, o que estamos colocando aqui é que toda busca é uma invenção. Spinoza, como leitor, mostra algo interessante sob esse aspecto: devemos forçar e construir o sentido, não como quem faz a seu bel-prazer, mas como quem segue a necessidade da força de afirmação do entendimento e, portanto, da reconstrução de sentidos como compreensão e expressão.

O que Spinoza faz no método do TTP, tomando por base a linguagem como uma questão de força, é retirar o peso semântico da escritura. Retirar, aqui, significa mudar o sentido do que é. Quando se faz isso, faz-se necessário definir, impor uma nova ordem segundo sua própria natureza e potência, isto é, segundo o entendimento. Definir é forçar a língua para um novo significado, numa força e ordem de expressão, contra todos os

ordenamentos comuns e habituais. A nova ordem é uma expressão como interpretação. Mas, para deter a semântica, que se pretende pura e sagrada das escrituras, é necessário pôr em cheque, desfazer a moral e a confiança em coisas obscuras que cercam a superstição dos homens.

Então, Spinoza propõe que forcemos uma estrutura por ela mesma, que enunciemos somente uma necessidade, como a necessidade que é expressa quando nos esforçamos por exprimir ideias e afetos. O movimento é aqui semelhante, pois há um encadeamento e também uma singularidade, uma essência a ser expressa. Não é por acaso que Spinoza enuncia o substrato essencial das escrituras: Ŗos dogmas fundamentais que toda a

escritura visa estabelecerŗ (TTP, XIV, p.177)128

. Ele encadeia um novo significado, já que o modo de vida inquietamente filosófico não se satisfaz com as demandas das escrituras e muito menos com a obediência moral.

No entanto não há nada ali que se possa dizer contra a própria estrutura imanente do texto. É dessa forma que ele combate a moral, em nome de uma ética, ou seja, como afirmação de si. Aquilo que Yovel chama de metáfora dos artigos de fé (YOVEL, 1993, p.151-152) é, pelo contrário, a explicitação de um combate, no qual não há nada a ocultar e, pelo contrário, todo ocultamento é denunciado e trazido à tona em uma crítica radical e em nome de uma imanência de uma conduta ética.

Portanto, Spinoza filosofa na linguagem, pela linguagem e contra a linguagem. Ele promove um ciclo em que a linguagem se torna filosofia e a filosofia recupera a linguagem: ŖO espinosismo é a captura do sentido aprisionado no signo e o convite para uma reativação de nossa vida linguageiraŗ (CHAUÍ BERLINCK, 1971, p.71).

Contra quem combate Spinoza com a sua gramática e seu método de interpretação das escrituras? Contra a palavra de ordem, o enunciado como ordem interpretativa. Contra quem interpreta a bel-prazer em sua preguiça e sua malícia (TTP, Cap.VII, p.112), em nome de fechar uma potência, de dizimar o ódio e a superstição, por meio das palavras obscuras e dos termos incognoscíveis. Interpretar por si mesmo não é problema para o filósofo. Ele não almejaria essa pureza da linguagem como muitos creem que é o seu método geométrico. A

128 São eles: existe um Deus; Deus é único; Deus está presente em toda parte; Deus tem poder soberano: ŖO culto

e obediência a Deus consistem unicamente na justiça e na caridade, isto é, no amor para com o próximo. (...) só aqueles que obedecem a Deus, seguindo esta norma de vida, obtêm a salvação (...) Finalmente, Deus perdoa os pecados aos que se arrependemŗ (TTP, XIV, p.177).

geometria não é pureza, é antes um combate que se põe na necessidade de reafirmar a potência de uma interpretação.

Interpretar é uma força da relação signo/ideia que seus contemporâneos teólogos isolam supersticiosamente, como se fossem os únicos possuidores da verdade. Eles pretendem fechar a interpretação ao ciclo teológico-político. A geometria como interpretação, pelo contrário, pretende fechar essa relação de modo que permita abrir a interpretação, proliferar novas ideias ativas. Ela fecha a sua dinâmica em uma ordem singular em que é possível a compreensão, mas isso não elimina, pelo contrário, é a própria força interpretativa do intelecto. Interpretar é essa força que temos de nos tornarmos ativos em um texto e na vida. Interpretação, no sentido spinozano, é expressão de uma força que libera o sentido, apesar de comprimi-lo na sua necessidade própria, na escritura e pela escritura, na natureza e pela natureza.

No documento A imanência da linguagem em Spinoza (páginas 159-165)