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Linguagem: problema e solução

No documento A imanência da linguagem em Spinoza (páginas 38-42)

2 DESAFIOS DA LINGUAGEM NAS TEORIAS DO

2.2 A questão da linguagem em Locke

2.2.2 Linguagem: problema e solução

As coisas exteriores que são significadas por nós, isto é, a nossa referência à exterioridade, é indireta, tanto em relação às ideias dos demais homens quanto em relação aos objetos exteriores ao nosso espírito. Sendo assim, não podemos ter certeza se de fato nos comunicamos. Isso nos mostra onde está o perigo do uso das palavras. O perigo está em dois pressupostos secretos que fazemos quando nos comunicamos, ou quando julgamos que nossos pensamentos chegam ao espírito de outra pessoa:

Mas ainda que as palavras, tais como as usam os homens, não possam significar, própria e imediatamente, nada mais do que as ideias que estão no espírito daquele que fala, no entanto, os homens, nos seus pensamentos, atribuem-lhes uma secreta relação a duas outras coisas.

Primeiramente, supõem que as palavras de que se servem são marcas das ideias que

se encontram também no espírito dos outros homens com quem comunicam. Porque,

de contrário, seria em vão que falariam e não poderiam ser compreendidos; (...) Mas os homens não se detêm normalmente a examinar se a ideia que têm no espírito é a mesma que está no espírito daqueles com quem comunicam. Pensam que basta empregar a palavra com o sentido que tem normalmente na língua que falam, o que crêem fazer; e, neste caso, supõem que a ideia de que a fazem ser sinal é precisamente a mesma que as pessoas instruídas do seu país ligam a tal nome. (...). Em segundo lugar, porque os homens não gostariam que pensássemos que falavam simplesmente daquilo que imaginam; uma vez que querem também que imaginemos que falam das coisas segundo o que são realmente em si mesmas, supõem, muitas vezes, por causa disto, que as palavras significam também a realidade das coisas" (E, III, II, 4, p.548).

De um lado, nós pressupomos secretamente que as palavras de que nos servimos para exprimir nossas ideias se encontram também como marcas no pensamento dos outros homens a quem nos dirigimos. De outro lado, pressupomos que as nossas palavras significam a realidade das coisas. Essa é a perversão que fazemos do uso das palavras e que enche as suas significações de confusões e erros, pois estamos forçando a linguagem a significar outra coisa que não as ideias que nós temos imediata e diretamente em nossas mentes. O que Locke adverte é que a natureza indireta das palavras com as coisas e a conexão convencional das palavras com as nossas ideias são imperfeições naturais da linguagem e, todavia, devemos estar atentos para não nos depararmos com o erro.

Naquela primeira função da linguagem como registro de nossos próprios pensamentos não há ameaça tanto de abuso linguístico quanto do uso comunicativo, que, por sua vez, é passível de incertezas:

Mas que as palavras não significam senão as ideias particulares dos homens, e isto por uma imposição perfeitamente arbitrária, é o que evidentemente aparece no facto de elas nem sempre despertarem no espírito de outros (mesmo quando falam a mesma língua) as mesmas ideias de que supomos elas serem sinais. E cada um tem tão inviolável liberdade de fazer com que as palavras signifiquem tais ideias, que ninguém tem o poder de fazer com que outros tenham no espírito as mesmas ideias que ele propriamente tem, quando se serve das mesmas palavras (E III, II, 8, p. 550). A imperfeição das palavras está justamente em não cumprir o seu papel principal de comunicação, "(...) quando uma palavra não excitasse no espírito daquele que a escuta a mesma ideia que significa no espírito daquele que fala" (E, III, IX, 4, p. 650). Ora, conforme vimos, os sons da fala não têm qualquer ligação com as nossas ideias senão convencionalmente ou por uma imposição arbitrária e, desse modo, cada um concebe um som relacionado à determinada ideia que outro entende por outro som. A linguagem, embora único instrumento de nossa comunicação, não é completamente transparente e, nesse sentido, não nos dá acesso direto às ideias que estão no espírito dos outros homens. O que é incerto e duvidoso, como uma imperfeição da linguagem, é a significação das ideias que damos aos sons arbitrários. Isso porque as palavras (escritas ou faladas) não têm qualquer significação senão nas ideias em nosso próprio espírito e, aquele que deseja se comunicar, deve evitar a falta de transparência linguística, designando a ideia que cada palavra significa.

É dessa forma que, com a finalidade de nos comunicarmos, devemos chegar a um acordo sobre um sistema de classificação e, também, em comum acordo do uso desse sistema, visto que a natureza não nos ditou essas coisas. Essa é a questão central dos termos gerais, dos nomes das ideias simples, dos nomes dos modos mistos e das relações, dos nomes das substâncias, das partículas e dos termos abstratos e concretos, que não trataremos aqui.

O que nos interessa é destacar os abusos linguísticos que Locke assinala como sendo importantes, para além daqueles abusos que podem advir do mero descuido que exigem

apenas a nossa atenção como remédio. Segundo Guyer10, são eles: "(5) empregar palavras

para falar sobre aquilo de que não temos ideias, tal como falar de essências reais (Seção 17-

10

Paul Guyer destaca todos os demais abusos indicados por Locke que, no entanto, podem ser evitados por qualquer falante mesmo desconhecendo a teoria da linguagem lockeana: "São eles: (1) a tendência a usar palavras sem qualquer ideia clara de seus significados completos (Seção 2); (2) a inconstância na atribuição de significado às palavras que alguém profere (Seção 5); (3) 'obscuridade afetada' (Seção 6); (4) tomar palavras por coisas, ou seja, supor que todas as expressões, mesmo aquelas como 'alma vegetativa' ou 'espécies intencionais', significam necessariamente alguma coisa real (Seção 14); (...)" (GUYER, 2011, p.177).

21); e (6) assumir que deve existir uma conexão necessária entre as palavras e seus significados, de modo que todos os falantes deveriam significar, necessariamente, as mesmas coisas por meio das mesmas palavras (Seção 22)" (GUYER, 2011, p.177).

Esses abusos são característicos da teoria de Locke, mostrando que a imperfeição intrínseca à linguagem é algo a ser evitado, embora ela não seja completamente corrigida. Sua teoria implica que não podemos assumir que entendemos uns aos outros quando nos comunicamos, mas podemos fazer de tudo para assegurar a nossa comunicação. Existe uma deficiência inevitável na linguagem, que podemos tomar as devidas providências.

Por isso devemos atentar a algumas regras:

Em primeiro lugar, (E, III, XI, 8-13, p 699-703), não devemos utilizar nenhuma palavra sem significação, ou, nenhum nome sem a ideia que ele representa. Outra observação é a de que é preciso que as ideias proferidas por palavras sejam claras e distintas, quer sejam simples, quer sejam ideias complexas. Em terceiro lugar, a solução ou remédio para o abuso linguístico é deixar de lado a total liberdade que temos de imposição arbitrária do significado dos sons por nós proferidos, em nome da melhor comunicação. Isto é, por mais que tenhamos a liberdade de definirmos com os termos que utilizamos as ideias que bem entendemos, devemos renunciá-la na prática comunicativa, em nome do uso comum. Isso não pode ser feito senão por meio de frequentes explicações, perguntas etc.

Todavia, a noção de "uso comum" não é a garantia de uma comunicação livre de confusão. Como o uso corrente da linguagem muitas vezes está fadado a uma significação incerta e vaga em relação às novas descobertas feitas pelo conhecimento humano, cabe aos homens declarar o novo significado das palavras utilizadas ou criar novas palavras. No entanto, por mais que investiguemos cada nome específico correspondente ao seu significado, isso ainda não garante que todos os que utilizam a língua entrem em acordo em relação ao uso.

E ainda, como o acesso à ideia dos outros permanece para nós indireta, o uso comum não pode nos livrar de uma comunicação plenamente transparente. Ninguém pode ter uma evidência direta do que o uso comum enuncia e significa. Ele é apenas um auxílio, ou seja, mais uma prevenção que devemos ter para com a linguagem. Nem o recurso ao uso comum escapa da imperfeição da linguagem e da sua não-transparência. É assim que Locke recorre não ao desespero da incomunicabilidade, mas à honestidade dos que se comunicam:

"(...) quando um homem faz uso do nome de uma ideia simples que ele vê que não se entende ou que corre o perigo de ser mal entendida, é obrigado, pelas leis da honestidade e do fim da linguagem, a declarar o sentido dessa palavra e a dar a conhecer qual é a ideia que ele a faz significar" (E III, XI, 14, p. 703). Ou ainda: "(...) o sentido do discurso, se não houver intenção de sofisma, levará, na maior parte das vezes, os leitores sinceros e inteligentes à verdadeira significação da palavra." (E III, XI, 27, p. 715). Isso quer dizer que cabe ao falante, escritor ou interlocutor explicar a sua significação e o sentido que utiliza com um termo, sem pressupor que haja uma relação natural entre a ideia e a palavra, mas sim uma imposição voluntária.

Desse modo, vemos que a concepção de Locke é, na verdade, uma prevenção contra a falta de transparência da linguagem como recurso para acessarmos as ideias daqueles a quem nos comunicamos e para falarmos sobre as coisas exteriores a nós. Essa concepção nos leva a um constante estado de vigília para com os termos que queremos comunicar, a fim de que não caiamos no risco de nos comunicarmos mal. A falta de transparência aparece como inevitável, não obstante, sejam as palavras o único meio que temos para nos fazermos entender. Então, nos resta utilizar dos termos da melhor maneira possível, com sinceridade e honestidade em relação aos nossos interlocutores, definindo o que deve ser definido e que ainda é passível de confusão.

Para concluir, toda a análise de Locke sobre a linguagem tem, portanto, um duplo aspecto, pois, se por um lado, é uma denúncia que põe em cheque, por meio de um ceticismo radical, a possibilidade de comunicação humana; por outro, é por meio desse ceticismo radical que reside a máxima possibilidade de prevenção em relação à comunicação de nossas ideias. É dessa forma que o abuso da linguagem e os seus remédios são um único e mesmo movimento de análise crítica da comunicação humana, como paradigma inevitável para a nossa capacidade de conhecimento.

No documento A imanência da linguagem em Spinoza (páginas 38-42)