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A ideia reguladora de utilidade de uma teoria de justiça

Amartya Sen assume que as teorias de justiça devem ser avaliadas quando suas possibilidades de influírem na resolução de problemas práticos de justiça. Por problemas práticos de justiça, como já apontei aqui algumas vezes, o economista indiano entende questões sociais tais como a fome, o analfabetismo, a falta de acesso aos serviços básicos de saúde, o preconceito racial, epidemias evitáveis e outras de mesma natureza. Para Amartya Sen, as teorias de justiça que compõem aquilo que ele denomina como Teorias de Justiça Focadas em Arranjos não estariam em condições de oferecer respostas a esses problemas. De alguma forma, ele concebe essas teorias como um empreendimento intelectual inapto ao auxílio prático, algo que deveria ser próprio delas. Essa é uma postura que remete ao famoso questionamento que Mário Losano fez à figura do cientista jurídico pensada por Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito:

Sem metáforas, é preciso neste ponto tomar posição entre dois juízos de valor mutuamente excludentes: o conhecimento é fim em si mesmo ou deve servir à ação? Volta-se assim, mais uma vez, às concepções opostas de ciência – instrumento cognoscitivo fechado em si mesmo ou instrumento do progresso humano146.

Por outro lado, o caminho que foi percorrido no capítulo anterior mostrou-se suficientemente seguro para sugerir que essa ideia reguladora pode ter algo de arbitrário ao assumir que as teorias que são objeto de sua crítica buscam, tal como a própria teoria do economista indiano, exercer alguma influência na resolução de problemas práticos de justiça e que por problemas práticos de justiça todos os autores compartilham da mesma compreensão, isto é, que todas as teorias buscam abolir das injustiças evidentes e corrigíveis como a fome, o analfabetismo e a privação aos serviços básicos de saúde.

Na ocasião em que foram analisadas as Teorias de Justiça de John Rawls, Robert Nozick e David Gauthier, a barreira que separa o resolver

146 LOSANO, Mário. Introdução. In: KELSEN, Hans (1960). O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. XXX.

do não resolver um problema prático de justiça pareceu significativamente turva em relação aos propósitos declarados desses respectivos teóricos. De certo modo, aquilo que John Rawls pretende e consegue oferecer com fundamentos consistentes em sua Justiça como equidade é a justificação dos direitos e garantias básicas de uma concepção democrática liberal e igualitarista. Não é por outro motivo que o seu trabalho foi consagrado no Brasil especialmente por pesquisadores que sustentavam a necessidade das ações afirmativas. As teorias de justiça de Robert Nozick e David Gauthier, da mesma forma, constituem argumentos plausíveis em favor de uma posição política libertária na qual a concepção de realização da justiça se resume necessariamente na defesa dos direitos individuais e da propriedade privada, pois ambos compartilham a convicção de que não deve ser exigido coercitivamente do indivíduo qualquer tipo de auxílio para os menos favorecidos e que o resultado pretendido com as políticas sociais pode ser alcançado de modo mais eficiente pela ação de um mercado livre de qualquer regulamentação. A grande injustiça que esses autores buscam combater, a propósito, é a coerção estatal operada na forma de arrecadação tributária para o financiamento de serviços que são pressupostos nas soluções viáveis dos problemas identificados por Amartya Sen.

Na verdade, o que parece estar em jogo é mesmo uma disputa entre concepções inconciliáveis de justiças. Enquanto Rawls, Nozick e Gauthier trabalham em um campo principiológico típico da tradição política norte-americana e que é particularmente adequado à defesa da prioridade das liberdades individuais, Amartya Sen convoca-os às disputas políticas abertas no lado subdesenvolvido do mundo, onde a fome impede até mesmo a discussão sobre a liberdade. Em favor dessa interpretação, cito uma argumentação do economista indiano localizada no final de A Ideia de Justiça que, ao mesmo tempo, afirma e contradiz a pressuposição de que exista uma noção compartilhada, pelas mais diversas teorias a respeito, do modo como a justiça seria realizada. Como ele observa,

a filosofia pode produzir — e de fato produz — um trabalho de extremo interesse e importância sobre vários temas que não guardam nenhuma relação com as privações, as injustiças e a falta de liberdade das existências humanas. Não há por que não ser assim, e só podemos nos alegrar com a ampliação e a consolidação dos horizontes de

nosso entendimento em todos os campos da curiosidade humana. No entanto, a filosofia também pode contribuir para trazer mais disciplina e maior alcance às reflexões não só sobre os valores e prioridades, mas também sobre as negações, subjugações e humilhações que os seres humanos sofrem no mundo. As teorias da justiça têm como compromisso comum levar essas questões a sério e ver o que podem fazer quanto a uma reflexão da razão prática sobre a justiça e a injustiça no mundo. Se a curiosidade epistêmica em relação ao mundo é uma tendência comum a muitas pessoas, o interesse pelo bom, certo e justo também tem uma presença importante — explícita ou latente — em nosso espírito. As diferentes teorias da justiça podem divergir quanto ao direcionamento correto dessa preocupação, mas compartilham a característica significativa de se dedicarem ao mesmo objetivo147.

Assim, antes de expor os problemas epistemológicos e metodológicos que Amartya Sen aponta nas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos, se deve assumir que a ideia de verificar o alcance prático das teorias que fazem parte dessa categoria será problemática se não tivermos em conta essas considerações.

3.2 As deficiências das Teorias de Justiça Focadas em Arranjos