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3.5 A necessidade de uma abordagem comparativa

3.5.2 Aportes da Teoria da Escolha Social

3.5.2.1 Foco nas realizações

Amartya Sen afirma que a abordagem focada em arranjos não tem muito a dizer sobre a justiça que acontece de fato no mundo, para além da caracterização justa de suas instituições. As próprias instituições contam, obviamente, mas não contam toda a história. Dentro da Teoria da Escolha Social, por outro lado, o que importa são as realizações sociais e elas

são avaliadas com relação às capacidades que as pessoas de fato têm, e não com relação a suas utilidades ou sua felicidade utilitarista. Assim as vidas humanas são então vistas sem exclusão, levando em conta as liberdades substantivas que as pessoas desfrutam201.

Como o problema deixa de ser a idealização da justiça e se transforma em compromisso com a remoção de injustiças, as avaliações não podem deixar de considerar a dimensão material das realizações. Além disso, um outro ponto positivo na abordagem a partir de uma perspectiva de liberdade seria possibilidade de tornar os indivíduos responsáveis pelo que fazem202.

Talvez não seja irrelevante o fato desse aporte específico ser o primeiro apontado na lista oferecida por Amartya Sen. Ele pressupõe a inclusão de uma dimensão distributiva na avaliação da justiça e, além disso, afirma que essa dimensão distributiva não seja pensada em termos de bens primários, tal como proposto por John Rawls, mas em sua ideia original de capacidades.

Na Justiça como equidade de John Rawls, a ideia de bens primários

201 SEN, 2009, p. 49. 202 SEN, 2009, p. 49.

consiste em diferentes condições sociais e meios polivalentes geralmente necessários para que os cidadãos possam desenvolver-se adequadamente e exercer plenamente suas duas faculdades morais, além de procurar realizar suas concepções do bem203.

Além disso, o filósofo político estadunidense aponta a distinção entre cinco tipos diferentes de bens primários em sua teoria de justiça: direitos e liberdades básicos, como as liberdades de pensamento, de consciência, e todas as demais condições institucionais essenciais para o desenvolvimento e exercício consciente das duas faculdades morais; as liberdades de movimento e de livre escolha de ocupação sobre um fundo de oportunidades diversificadas que propiciam a busca de vários objetivos e a possibilidade de alterá-los; poderes e prerrogativas de cargos e posições de autoridade e responsabilidade; renda e riqueza, isto é, meios polivalentes (que tem valor de troca) necessários para atingir uma ampla gama de objetivos, sejam eles quais forem; e as bases sociais do auto-respeito, os aspectos das instituições básicas essenciais para que os cidadãos possam ter um senso vívido de seu valor enquanto pessoas e serem capazes de levar adiante seus objetivos com autoconfiança204.

O enfoque de capacidades do economista indiano, por outro lado, concebe a vida humana como um conjunto de “atividades” e de “modos de ser” que poderemos denominar “efetivações” (functionings) — e relaciona o julgamento sobre a qualidade da vida à avaliação da capacidade de funcionar ou de desempenhar funções. […] Se se concebe a vida como um conjunto de 'atividades e modos de ser' que são valiosos, a avaliação da qualidade da vida toma a forma de uma avaliação dessas efetivações e da capacidade de efetuá-las. Essa avaliação não pode ser feita levando-se em conta apenas as mercadorias ou rendimentos que auxiliam no desempenho daquelas atividades e na aquisição daquelas capacidades. […] Isso equivale a conceber a pessoa como ativa, por assim dizer, e não passiva (embora nem os vários estados do ser e nem mesmo as atividades devam 203 RAWLS, 2002, p. 81.

necessariamente ser 'atléticas'). Pode-se listar desde efetivações elementares como evitar a morbidade ou a mortalidade precoce, alimentar-se adequadamente, realizar os movimentos usuais, etc, até muitas efetivações complexas tais como desenvolver o autorrespeito, tomar parte da vida da comunidade e apresentar-se em público sem se envergonhar205.

Essa divergência entre aquilo que John Rawls e Amartya Sen compreendem como critérios de avaliação dos elementos distributivos de suas respectivas teorias é bem antiga. A última versão que o filósofo americano apresentou de sua ideia de bens primários, a propósito, foi em grande medida influenciada pelas objeções apontadas por Amartya Sen. Não há registros de que esses velhos amigos alcançaram um denominador comum e a insistência de Amartya Sen em usar a concepção de bens primários de Rawls como um exemplo a ser substituído pela noção de capacidades sugere que, de fato, não houve acordo ou posteriores concessões.

É evidente que há uma maior abrangência na perspectiva de capacidades em relação aos bens primários, especialmente aos bens que correspondem às liberdades básicas e renda206. Também não pode haver dúvida quanto as dificuldades apontadas por Amartya Sen na conversão de renda em modos de vida que a pessoa pode levar. No entanto, essa mesma abrangência parece criar dificuldades quando se torna objeto de deliberações. Como um elemento multidimensional e não redutível a um coeficiente quantificável, fazer comparações em função do quantum distributivo envolvendo indivíduos ou grupos de indivíduos com diferentes necessidades e/ou deficiências em uma dada circunstância pode ser impraticável.

205 SEN, Amartya. O desenvolvimento como expansão de capacidades. Lua Nova, São Paulo, n. 28-29, Abr. 1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

64451993000100016&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 12 de novembro de 2014.

206 Um interessante argumento em favor da substituição da abordagem de bens primários pela abordagem das capacidades pode ser lida em REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família - Autonomia, Dinheiro e Cidadania. São Paulo: UNESP, 2013. p. 48-55.