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3.3 Os dois problemas do transcendentalismo

3.3.1 Sobre o problema da factibilidade

Amartya Sen afirma que as Teorias de Justiça Focadas em Arranjos tomam como certa a hipótese de os indivíduos entrarem em consenso acerca dos princípios que definirão a estrutura e o funcionamento das instituições de uma sociedade justa. Para o economista indiano, nas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos há uma pressuposição implícita de que existe “apenas um tipo de argumento imparcial que satisfaça as exigências da justiça e do qual os interesses pelo próprio benefício tenham sido aparados”154. Não há previsão de desacordos.

Nas análises do capítulo precedente, porém, foi notado que essa afirmação precisa ser bastante atenuada. Ela não pode ser totalmente válida para a Justiça como equidade de John Rawls a partir dos seus textos revisados, pois ele passou a admitir a possibilidade de escolha de princípios diferentes daqueles que ele havia indicado em Uma Teoria da Justiça e, apesar de não oferecer uma resposta ao problema do consenso 154 SEN, 2009, p. 40.

sobre outros conjuntos de princípios, ele não estava alheio à possibilidade de desacordos persistentes. Em relação às teorias de justiça de David Gauthier e Robert Nozick também não foi possível identificar qualquer espaço para que houvesse uma deliberação que pudesse pôr em risco a canonização das liberdades individuais, pois ambos os autores afirmam que os direitos individuais simplesmente não poderiam ser relativizados. Todavia, apesar dessas importantes ressalvas, é ainda lícito interpretar essas teorias de justiça como relativamente enquadradas no problema aqui comentado, que pode ser resumido com as seguintes questões: é mesmo possível encontrar argumentos convincentes ao ponto de estabelecer uma unanimidade em torno de um dado conjunto de princípios de justiça e afastar os demais? É a pluralidade de razões a favor da justiça compatível com um conjunto único de princípios de justiça?

Para Amartya Sen, as respostas são negativas. A unanimidade pressuposta é artificial. O consenso não é factível. Na verdade, existem diversos princípios de justiça que poderiam resistir a um exame crítico e “pode não haver nenhum acordo arrazoado, mesmo sob estritas condições de imparcialidade e análise abrangente” a respeito da natureza da “sociedade justa”155, é dizer, sobre quais os princípios que deveriam reger as instituições dessa sociedade idealizada.

Para ilustrar esse problema, Amartya Sen apresenta um exemplo sobre a distribuição de uma única flauta entre três crianças que a reivindicam156. Anne argumenta que a flauta deve ficar com ela, pois é a única que de fato sabe tocá-la. Se essa informação fosse a única disponível, seria injusto recusar o pedido de Anne. Em um segundo cenário, Bob defende que a flauta fique com ele, pois as outras crianças são ricas e possuem outros brinquedos, mas ele é pobre e a flauta significaria a sua possibilidade de brincar. Se essa informação fosse a única disponível, seria injusto recusar o pedido de Bob. No terceiro cenário, Carla argumenta que foi ela quem construiu a flauta com as próprias mãos durante meses e que, por isso, com ela deveria ficar - e não com os expropriadores que apareceram quando o trabalho já estava feito. Se essa informação fosse a única disponível, seria injusto recusar o pedido de Carla.

Cada argumento em favor da distribuição representa as posições de utilitaristas, igualitaristas e libertários. Ambos, se estivessem conscientes de todas as informações, apontariam a existência de uma 155 SEN, 2009, p. 39-40.

única solução justa. Porém, cada um ofereceria uma solução diferente. Essas três soluções poderiam ser reconhecidamente fundamentadas, com argumentos sérios em favor de cada uma e não há como escolher uma única solução como correta sem reconhecer que a decisão seja arbitrária. O problema ilustrado pelo exemplo não se resume na diferença entre os interesses pelo próprio benefício das três crianças. Cada um dos três argumentos aponta para um tipo diferente de razão imparcial e não arbitrária que diz respeito aos princípios que regulam a alocação de recursos em geral, isto é, “sobre como os arranjos sociais devem ser estabelecidos e quais instituições sociais devem ser escolhidas e, através disso, sobre quais realizações sociais devem vir a acontecer”157.

Esse problema foi comentado extensamente por Amartya Sen tomando como parâmetro a Justiça como equidade antes de suas revisões. Mesmo consciente das mudanças procedidas por seu amigo John Rawls, ele insiste em afirmar que o filósofo político americano pressupõe que a sociedade justa se materializaria a partir de uma escolha unânime dos dois princípios de Uma teoria da justiça na posição original, isto é, sob o “véu da ignorância”, momento “em que as pessoas não sabem quais são seus interesses pelo próprio benefício”158. Ainda assim, sua crítica permanece pertinente no sentido de apontar a incontornável dificuldade de afirmar uma escolha unânime e sem recurso à arbitrariedade de apenas um valor ou conjunto de valores específicos de justiça. Como ele observa, assim como persistiram argumentos conflitantes na decisão sobre a distribuição da flauta, pode haver diferenças nos pesos comparativos exatos a serem dados à, por exemplo, igualdade distribucional e na melhoria geral ou agregada159.

Ademais, cumpre ressaltar que é sobre o problema da factibilidade de um acordo unânime sobre o arranjo social perfeitamente justo que Amartya Sen faz a sua crítica mais contundente à abordagem institucionalista transcendental pressuposta nas Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. Afirma o economista indiano que se o diagnóstico ou identificação de arranjos sociais perfeitamente justos for incuravelmente problemático, toda a estratégia do institucionalismo transcendental está prejudicada, ainda que fosse possível escolher entre todas as alternativas concebíveis no mundo e que todas elas estivesses disponíveis160.

157 SEN, 2009, p. 43-5. 158 SEN, 2009, p. 41. 159 SEN, 2009, p. 41. 160 SEN, 2009, p. 41.