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O apelo ao uso da razão pública capaz de subsidiar um acordo entre os indivíduos para o enfrentamento das questões ligadas à justiça e o consequente afastamento dos caracteres metafísicos e essencialistas levam Amartya Sen a privilegiar as discussões desenvolvidas a partir dos séculos XVIII e XIX. A localização temporal de sua investigação é exposta objetivamente. Como ele mesmo reconhece, “a análise da justiça que apresento neste livro recorre a linhas de argumentação racional que foram particularmente exploradas no período de descontentamento intelectual durante o Iluminismo europeu”54, instituidor de uma das mais fortes tradições de argumentos fundamentados em razões, em lugar da dependência da fé e de convicções injustificadas. Fortes tradições, no plural, pelo fato de as argumentações racionais sobre a justiça já se encontrarem estabelecidas 53 RADBRUCH, 1962, p. 35-38.

em outros contextos independentes. Como o próprio Amartya Sen explica,

a conexão desta obra com a tradição do Iluminismo europeu não faz com que o background deste livro seja particularmente “europeu”. Na verdade, uma das características inusuais — excêntricas, como talvez alguns dirão — deste livro, em comparação com outros escritos sobre a teoria da justiça, é o uso extensivo que faço de ideias oriundas de sociedades não ocidentais, sobretudo da história intelectual indiana, mas de outras partes também55.

De fato, A Ideia de Justiça é permeada por discussões localizadas a partir de uma significativa distância da tradição europeia. A política de tolerância à divergência do imperador indiano Akbar56 e as diferentes perspectivas de justiça entre Arjuna e Krishna no épico Mahabharata57 são exemplos de reflexões centrais na obra de Amartya Sen que foram deflagradas longe da península ocidental da Eurásia. Contudo, sua insistência nos autores europeus dos séculos XVIII e XIX parece refletir a identificação que fazemos do apelo à explicação racional do mundo, cujo início remonta às revoluções científicas, políticas e econômicas desse mesmo período. Como ele observa,

ainda que a justiça social tenha sido discutida por séculos, a disciplina recebeu um impulso especialmente forte durante o Iluminismo europeu nos séculos XVIII e XIX, encorajado pelo clima político de mudança e também pela transformação social e econômica em curso na Europa e nos Estados Unidos58.

Tal como sintetizado na justificativa de Amartya Sen, o uso da razão nas discussões sobre a justiça, de modo geral, e a justiça social, em particular, parece ter sido incluída por um mero encorajamento. Obviamente, não posso colocar em dúvida o conhecimento que ele tem a respeito das mudanças ocorridas desde a virada do século XVII. Sua 55 SEN, 2009, 14-15.

56 SEN, 2009, p. 80. 57 SEN, 2009, p. 319. 58 SEN, 2009, p. 42.

opção em privilegiar as discussões sobre a justiça a partir desse período não nos deixa dúvida. No entanto, a sua justificativa pela escolha desse recorte temporal desacompanhada de maiores explicações das questões subjacentes fica significativamente fragilizada. Um tratamento mais detalhado possibilitaria não apenas a compreensão dos acontecimentos daquele período específico que demandaram a discussão racional acerca dos problemas de justiça, mas também do caráter profano de todos os conceitos a eles correlatos.

Nossas concepções de sociedade, governo, Estado e dos próprios sujeitos foram forjadas ao longo do tempo. De uma perspectiva histórica, não é possível visualizar uma linha evolutiva gradual, lógica e natural desses conceitos, mas um emaranhado de noções e ideias que transitam entre diversos campos e se influenciam reciprocamente pelo acaso ou pela força. Em certos momentos, algumas dessas noções e ideias permanecem tão inabaláveis que alcançam o status de fato59, mas em outros as mudanças são tão significativas que podem alterar toda uma visão de mundo e marcar a transição de uma era.

Assim, apesar de não ser possível identificar um único acontecimento como o responsável pela atual conformação das ferramentas conceituais relevantes ao presente estudo, há um certo consenso de que os avanços nas ciências naturais entre os séculos XV e XVIII, por um lado, e uma intensa reconfiguração das práticas e arranjos econômicos, por outro, guardam uma relação de influência inafastável.

Esse processo e o período correspondente ficaram conhecidos pela palavra alemã Aufklarüng, traduzida comumente como Iluminismo. Prefiro, como já tenho feito, um termo mais direto, Esclarecimento, acolhendo a sugestão de Guido António de Almeida, responsável pela versão portuguesa da obra-prima de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Como explica Almeida,

a tradução de Aufklärung por esclarecimento requer uma explicação: por que não recorremos ao termo iluminismo, ou ilustração, que são expressões mais usuais entre nós para designar aquilo que também conhecemos como a Época ou a Filosofia das Luzes? Em primeiro lugar, como não poderia deixar de ser, por uma questão de 59 FLECK, Ludwik. (1935). Gênese e desenvolvimento de um fato científico: Introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Trad. de Georg Otte e Mariana Camilo de Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. p. 94.

maior fidelidade: a expressão esclarecimento traduz com perfeição não apenas o significado histórico-filosófico, mas também o sentido mais amplo que o termo encontra em Adorno e Horkheimer, bem como o significado corrente de Aufklärung na linguagem ordinária. É bom que se note, antes de mais nada, que Aufklärung não é apenas um conceito histórico-filosófico, mas uma expressão familiar da língua alemã, que encontra um correspondente exato na palavra portuguesa esclarecimento, por exemplo em contextos como: sexuelle Aufklärung (esclarecimento sexual) ou politische Aufklärung (esclarecimento político). Neste sentido, as duas palavras designam, em alemão e em português, o processo pelo qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em questões de ordem prática (religiosas, políticas, sexuais, etc.)60.

O Esclarecimento não foi um movimento homogêneo, um sistema de ideias ou uma escola, mas uma nova mentalidade, uma atitude cultural e intelectual de grande parte da sociedade da época61 que tinha como meta nada menos que “dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”, desencantar a natureza e destruir o animismo ao ponto de tornar suspeito tudo o “que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade”62. Considerando o impacto de trabalhos com a envergadura de Princípia Mathematica de Isaac Newton, de 1687, que conseguiu oferecer uma explicação razoável para um grande número de fenômenos físicos a partir de um pequeno conjunto de fórmulas matemáticas, tal ambição, notemos, não era infundada. De fato, o sistema newtoniano serviu de modelo e estímulo para pesquisas 60 ALMEIDA, Guido Antonio de. Nota preliminar do tradutor. In: ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max (1969). Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido António de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 7-8.

61 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. (1983) Dicionário de Política. 11ª ed. Trad. Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 605-6.

62 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. (1969) Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido António de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

de uma série de pensadores esclarecidos e pautou a postura da própria atividade intelectual, incentivando a concepção secular de natureza como um domínio ordenado regido por rigorosas leis dinâmico- matemáticas e a ideia de que nós mesmos teríamos a capacidade de conhecê-las63.

As novas exigências decorrentes dos parâmetros de racionalidade introduzidos pelas ciências naturais logo alcançaram as demais áreas do conhecimento. O pensamento e a cultura daquela época passaram por verdadeiras e inevitáveis revoluções, produzindo alterações em toda a dinâmica social64. O que se teve, em síntese, “não foi apenas a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades modernas”65. Por um lado, “o sucesso das ciências experimentais alimentou a ideia de que o mesmo método leva a um progresso concreto em todas as áreas da cultura e da vida”66. Por outro lado, sem o recurso ao animismo, diversas instituições sociais perderam seus respectivos pilares de sustentação. Algumas simplesmente deixaram de existir. Outras, por ainda serem necessárias, demandavam por explicações que as justificassem de acordo com o pensamento racionalista da época.