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5. A construção das características do campo jornalístico contemporâneo

5.4. A ideologia e a falácia da isenção na mídia

Muitas empresas jornalísticas colocam como um de seus principais pilares a “isenção jornalística”, ou a “objetividade”. Este discurso, que tem suas origens no modelo de jornalismo norte-americano, está relacionado com o objetivo do campo de reconstituição dos fatos, separando informação e comentário (NEVEU, 2004). No entanto, muitos estudos de comunicação e de outras áreas tendem a mostrar que cada meio de comunicação possui uma perspectiva parcial. Os proprietários dessas empresas possuem formas de enxergar o mundo, concepções do que é melhor para a sociedade e uma ideologia, além de interesses próprios. Essas visões, concepções, e interesses se convertem em uma linha editorial, a qual muitas vezes será seguida por todos os empregados do jornal em questão – com consequências, muitas vezes, de retaliação, caso essa lógica não seja levada em conta na hora da produção jornalística. Champagne (1996) considera a informação um desafio no mundo social. Conforme o autor, “devemos tomar os próprios jornalistas como objeto e estudar o trabalho, mais ou menos sistemático e consciente, de deformação que cada suporte de imprensa, considerando suas opções políticas, tende a impor aos acontecimentos que relata” (CHAMPAGNE, 1996, p. 220). Nesse sentido, o entrevistado Felipe conta: “Teve uma matéria que a gente ia fazer… Não era falando mal do Bolsonaro, mas era alguma coisa que aconteceu. Foi pedido pra pegar mais leve. Nada muito escrachado, mas a gente entendeu o que estava acontecendo”. Dentro deste “pedido” podemos compreender uma “deformação” e um posicionamento ideológico da empresa. No

momento em que ocorre a opção por “pegar leve” ao noticiar o ocorrido, fica evidenciado que não se tinha a pretensão de prejudicar o político, apesar do relato do “fato” ser potencialmente prejudicial. O jornal oferece uma versão mais “leve” do fato, isto é, das outras possibilidades em que o mesmo poderia ser noticiado.

Por sua vez, avaliando as influências entre os campos, ao fazer tal opção, observa-se que se pretende intervir no campo político de determinada forma e não de outra. Ainda conforme apontado por Champagne (1996, p. 222), “ao dar uma visão necessariamente seletiva e ao privilegiar certas interpretações do acontecimento, a imprensa contribui para fabricar o sentido político-social desses movimentos com significações, ao mesmo tempo, superabundantes e ambíguas”. Mesmo quando o jornalista tem certa liberdade, a ideologia não deixa de operar, uma vez que, como seres humanos socializados, temos vivências que nos fazem enxergar os fatos de uma forma e não de outra.

Pedrinho Guareschi trata, em diversas obras, sobre o papel da ideologia no jornalismo brasileiro:

Se você abrir o jornal, qualquer jornal, vai ver imediatamente muitas meias- verdades, em cada página. Os jornais publicam só o que querem e onde querem.

A gente não pode dizer que eles mentiram. Talvez tudo o que está no jornal tenha acontecido. O problema é que o jornal, conforme sua ideologia, seleciona o que quer, combina com o que quer e publica o que quer. E nós saímos acreditando que o jornal diz toda a verdade... Antes de ler o jornal, a gente precisa saber que ideologia tem esse jornal... (GUARESCHI, 2007, p. 22)

Indo na mesma direção, e apresentando uma série de exemplos midiáticos para ilustrar o argumento, Douglas Kellner (2001) afirma que a mídia pode ser compreendida como um campo de batalhas ideológicas. Ideologia, nesse contexto, refere-se a um conjunto de ideias, valores, maneiras de sentir e pensar de pessoas e grupos. Neste campo de batalhas, ainda conforme o autor, as visões hegemônicas e contra hegemônicas da sociedade entram em choque. Hegemonia, para Gramsci68, conforme

Coutinho (2011), diz respeito, em linhas gerais, ao domínio cultural ideológico de uma determinada classe sobre as outras. É importante destacar que, apesar disso, o cenário

midiático no Brasil é monopolizado por empresas que vão de acordo com a visão hegemônica vigente.

Indo ao encontro do que afirmam os autores, a entrevistada Raquel69, afirma que

a mídia que chama de hegemônica (também conhecida como tradicional), trabalha política e economicamente em prol de uma ideologia:

Então eu acho que essa mídia hegemônica é uma mídia comercial e é uma mídia política. Tem atuação política e atuação econômica. Por interesses que são interesses burgueses e não interesses da classe trabalhadora. Então o trabalho da mídia é fazer exatamente o que ela faz. Aí eles colocam lá bons repórteres, alguns repórteres que são diferentes para dar uma arejada, dar uma disfarçada. De vez em quando tem uma reportagem interessante para dar uma disfarçada, tipo ‘esse aqui não é um panfleto mercadológico, é um jornal’– e na verdade não é. O papel da mídia hegemônica é manter o capitalismo, com suas mutações necessárias a cada ciclo de crise, e tem feito muito bem esse papel e vai continuar fazendo. Com relação a isso, não tenho ilusão nenhuma, sei que tem muita gente boa trabalhando, mas no fim das contas a gente é massa de manobra.

Quando se fala em isenção, podemos fazer a ligação com outra característica – principalmente das grandes empresas de jornalismo – que ganhou atenção no ano de 2018. Nos referimos ao uso dos sites de redes sociais por jornalistas empregados pela grande mídia. A Rede Globo lançou, em 2018, um manual para jornalistas nas redes sociais; o qual inclui, nas suas diretrizes, que os jornalistas, em suas redes sociais pessoais, devem se abster de “expressar opiniões políticas, promover e apoiar partidos e candidaturas, defender ideologias e tomar partido em questões controversas e

polêmicas que estão sendo cobertas jornalisticamente pelo Grupo Globo”70. Depois de

divulgadas as colocações desse manual, outras empresas de jornalismo acabaram seguindo pelo mesmo caminho e impondo as mesmas diretrizes aos seus empregados.

Apesar dos pontos levantados, entendemos, assim como ressalta Champagne (1996), que parece um tanto simplista apontar o jornalismo e, por consequência, os jornalistas, simplesmente como manipuladores de informação. Usando o exemplo de coberturas de manifestações, o autor aponta que “eles próprios [os jornalistas] são objeto de estratégias de manipulação pelos diversos grupos sociais que organizam manifestações e procuram, através delas, atrair com maior ou menor sucesso a atenção dos jornalistas para terem a possibilidade de aparecer na mídia” (CHAMPAGNE, 1996,

69Nome fictício. Entrevista prévia realizada em 15 de maio de 2019.

p. 222). O exemplo da manifestação pode ser extrapolado para outros, como o político ou o artistico, nos quais os membros desses espaços sociais agem constantemente para aparecerem na mídia.