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A imagem da sociedade ouvintista sobre o povo surdo

5 AS EXPERIÊNCIAS DOS PAIS SURDOS COM FILHO CODA NA SOCIEDADE

5.2 A imagem da sociedade ouvintista sobre o povo surdo

A sociedade ouvinte, ao longo da história, tem como ponto de vista de que o povo surdo é incapaz, são deficientes, anormais, que a surdez é uma doença, pois os

surdos não sabem falar. Consideram que o povo surdo é homogêneo em suas limitações e dificuldades individuais, os veem como “coitados”, negativando sua cultura, por desconhecerem suas particularidades.

Neste aspecto, Strobel (2008) esclarece que:

Estes questionamentos ocorrem porque as pessoas não conhecem e não sabem como é o mundo dos surdos e fazem suposições errôneas acerca de povo surdo. Quando a palavra “surdo” é mencionada, que imagens vêm a mente das pessoas? Lane (1992, p. 26) explica que é comum as pessoas deduzirem que os surdos vivem isolados e que para se integrar é preciso adquirir a cultura ouvinte, isto é, para viver “normal”, [...].

Os sujeitos ouvintes vêem os sujeitos surdos com curiosidade e, às vezes, zombam por eles serem diferentes. Wrigley (1996, p.71) explica que a política ouvintista prevaleceu historicamente dentro do modelo clínico e demonstra as táticas de atitude reparadora e corretiva da surdez, considerando-a como defeito e doença, sendo necessário de tratamentos para “normalizá-la”.

Muitos ouvintes acreditam, erroneamente, que os sujeitos surdos têm a cultura ouvinte, bem como o modelo de identidade ouvinte. Isso constitui-se em um equívoco, por não conhecerem a cultura surda, visto ser bem diferentes as culturas, uma da outra. Skliar (1998, p. 29) esclarece que “a surdez ainda pode ser vista socialmente como um problema, um desvio, uma anomalia, o espaço limitado onde se produzem atividades irrelevantes”.

Para corroborar com o assunto em pauta, Streiechen e Krause-Lemke (2013), afirmam que:

Muitas pessoas demonstram curiosidade em entender como ocorre a relação da mãe (surda) com seus filhos (ouvintes). As dúvidas e os mitos são muitos. As principais questões que deixam inquietação nas pessoas são: será que a mãe surda saberá cuidar de seu filho (ouvintes)? Como ela saberá quando o bebê está chorando? E quando o filho fica doente, como ele vai explicar sua dor à mãe? E como ela explicará ao médico? Como ele aprenderá a falar? Este último é o principal questionamento entre as pessoas.

A princípio, os CODAs, veem a situação de forma muito natural. Eles não têm noção de “diferença” e acreditam que todas as mães devem ser como a delas. A partir do contato com outras crianças e suas mães: vizinhos, escola, festas vão descobrindo essa diferença linguística. Sabem, apenas, que precisam usar outro tipo de comunicação com a mãe, mas não conhecem as causas, ou seja, não associam a diferença linguística com a surdez (STREIECHEN E KRAUSE- LEMKE, 2013, p. 4).

A grande maioria das pessoas ouvintes tem dúvidas em relação a: 1) Quem ensina a criança CODA a falar? 2) Como esta aprende o Português e como se dá a

alfabetização? 3) E os pais surdos que não sabem falar e não sabem ler pela falta de audição?

As pessoas ouvintes tem uma preocupação com o filho CODA, pois pensam que ele adquire a linguagem tardiamente e que a culpa e responsabilidade são dos pais que fazem uso de uma língua inútil. No entanto, Streiechen e Krause-Lemke (2013, p.5) esclarecem, afirmando que “Há um mito por parte de algumas pessoas de que os CODAs, por terem pais surdos, podem adquirir tardiamente sua linguagem. Essa crença existe pelo fato das pessoas acreditarem que as crianças aprendem a falar, exclusivamente, com a mãe”.

Encontrei um vídeo no “Youtube”, que trata de um caso em que uma filha CODA sinalizou e narrou sobre seus pais surdos, que corrobora com o contexto. Para melhor entendimento, traduzi o vídeo, conforme segue abaixo:

“Oi, tudo bem?

Eu explicarei sobre a minha família, meu pai é esse sinal (sinalização do sinal) e a minha mãe é esse sinal (sinalização do sinal). Eles começaram o namorar após se conhecer na escola, há oito anos. Casaram-se e não tiveram filhos. Há cinco anos minha mãe engravidou e tiveram dois filhos, a primeira sou eu, uma menina e esse é meu sinal (sinalização do sinal) e segundo meu irmão esse sinal (sinalização do sinal).

As pessoas me perguntam “Porque eles são surdos? Como ficaram surdos?”. Eu respondi: sim, eles são surdos e têm filhos ouvintes. Eu conheço muitos surdos que são casados e têm filhos ouvintes, é normal, nos comunicamos bem. Eu gosto de surdos, meus pais são surdos e eu gosto de sinalizar com eles.

Eu gosto, nossa família é normal e temos carro, casa, meus pais trabalham normalmente.

Mas as pessoas e a sociedade em geral pensam que isso é estranho, não acreditam que podemos viver bem assim, acreditam que temos muitas dificuldades e não conhecem nosso modo de viver. Eles falam: Como fazem para aconselhar os filhos?

Sempre me ensinaram a língua de sinais L1 e segunda a língua de português L2. [...]”.

Uma mãe surda também postou nas redes sociais um desabafo emocionante. Ela estava com muita raiva e escreveu no mural dela colocando também as emotions (imagem) “se sentindo com raiva”, pela filha surda:

Hoje já faz um dia que sabemos que a Fiore é surda, pois ela fez exame ontem. Então, quando entramos aqui no apartamento, vizinha nos perguntou se ela é surda ou ouvinte (foi coincidência que vizinha estava na clínica também, por isso ficou sabendo que Fiore ia fazer exame), nos sorrimos e respondemos: "ela é como nos, é surda!". Ela mudou expressão e falou: "ah que pena". Afff não

entendemos porque que ficou com pena, ela sabe que somos professores e fazemos doutorado. E ainda sente pena gente?! (Facebook, abril de 2015).

Infelizmente, há muitas coisas que o sujeito ouvinte mostra de forma negativa em relação ao surdo. Isso ocorre devido à falta de conhecimento do mundo surdo, pelo ouvinte. No caso em questão, os pais surdos são professores universitários e fazem doutorado; a ouvinte ficou sem reação.

Por sua vez, as crianças CODAs e/ou surdas têm muita capacidade e são bastante inteligentes, já que desenvolvem com rapidez tanto a língua materna dos pais ouvintes quanto a língua de sinais.

5.3 Análise

Apesar de todas as dúvidas vindo de pessoas ouvintes sobre como nós, pais surdos, poderíamos dar conta de cuidar de uma criança ouvinte, com o passar do tempo, vendo o desenvolvimento natural da criança e a nossa organização familiar, as pessoas ouvintes tornaram-se mais tranquilas e até surpresas, pois o nosso filho CODA começou a chamar a atenção, por se mostrar saudável, tranquilo e fluente em Libras/Português, com condições de se comunicar tanto com a comunidade ouvinte quanto com a comunidade surda. Com organização e estratégias próprias, fomos atravessando todas as dificuldades, conseguindo atendê-lo quando chorava à noite, quando tinha alguma dor ou febre, em suas necessidades no dia a dia, porém, com algumas limitações como qualquer família “normal”.

A CODA Ronice Muller de Quadros afirma que:

CODAs estão, permanentemente, vivendo entre fronteiras da língua, do idioma e da cultura. Suas sensações e experiências com o corpo das línguas orais e visuais remetem para o caráter tenso de ter que suportar o peso da idiomaticidade de duas línguas que são irredutíveis uma à outra e de dois mundos culturais que apresentam uma forte assimetria em suas relações de poder. Se determinadas situações fazem sentido dentro de apenas determinadas línguas e culturas, como lidar com elas durante a travessia de sentidos sem banalizar ou querer minimizar as diferenças culturais? Como traduzir essas “zonas de contato” que não representam uma visão utópica das línguas como entidades gramaticalmente coerentes e homogêneas gramaticalmente, e compartilhadas de formas similar entre os membros da comunidade? (QUADROS e MASUTTI, 2007, p.248).

Assim, a minha análise é que nós vencemos todo o preconceito e dúvidas que havia por parte da sociedade ouvintista sobre um casal de surdos criar com dignidade um filho. O nosso CODA venceu todo o preconceito que existia e se desenvolveu, naturalmente, assimilando duas línguas, duas culturas, mesmo às vezes enfrentando algumas dificuldades nas mudanças culturais do mundo surdo e ouvinte.

Na sequência das apresentações das fases do desenvolvimento e aquisição bilíngue Libras/Português pelo CODA, relatarei uns dos momentos mais felizes, como pais: a realização do primeiro sinal.

6 A REALIZAÇÃO DO PRIMEIRO SINAL