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2 Olhares sobre o patrimônio ferroviário: discursos

3 Reconhecimento do patrimônio ferroviário como bem cultural: percursos

3.1 Modos de reconhecimento

3.1.1 A importância do inventário

Uma das maneiras de conhecer o patrimônio tem sido a realização de inventário. A ideia de identificação e seleção do patrimônio cultural de uma nação surgiu durante a Revolução Francesa, em 1790, quando atos de vandalismo contra obras de arte e monumentos foram praticados com o propósito de destruir símbolos representativos das antigas classes dominantes: a nobreza e o clero. Na ocasião, a Assembleia Nacional na França ordenou a inventariação sistemática e a classificação dos bens recuperados pela Nação que viriam a ser preservados para as gerações futuras. Assim, a Inspetoria Geral dos Monumentos Históricos procedeu ao Inventário Geral de Monumentos e Obras de Arte da França (CHOAY, 2001). A ideia ganhou

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corpo e se expandiu. Não sem razão, em 1802, foi realizado na Espanha o “inventário dos objetos de ciência e belas artes que se encontram nos conventos” (GONZÁLEZ-VARAS, 2006, p. 79) 1.

Um dos primeiros documentos doutrinários referente a importância da catalogação dos bens culturais2, ou um dos primeiros de circulação mais ampla, foi a Carta de Atenas (1933). Nela

ressaltava-se a importância em se identificar e inventariar os bens culturais formadores de uma Nação, e recomendava-se que “cada Estado, ou as instituições criadas ou reconhecidamente competentes para esse trabalho, publiquem um inventário dos monumentos históricos nacionais, acompanhado de fotografia e de informações”. Na década de 1950, outros documentos reiteraram a importância da realização de inventários, a exemplo da Convention for the Protection of Cultural Property in the Event of Armed Conflict (Convenção de Haia sobre a Proteção de Bens culturais em caso de Conflito Armado), de 19543.

A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, realizada em Paris, em 1972, recomendou também que “Cabe a cada Estado-parte da presente Convenção identificar e delimitar os diversos bens situados em seu território” (Art. 3o), referindo-se ao

patrimônio cultural e natural. A identificação do bem, segundo a aludida Convenção, deve envolver não somente informações da forma atual do bem, mas também a visão global da sua história e da sua evolução.

A Convention of San Salvador – realizada em Santiago (Chile), em 1976, durante a realização da 6ª. Sessão Ordinária da Assembleia Geral do Icomos –, trouxe à tona a questão relacionada à importância da identificação, registro e proteção do patrimônio cultural das Américas. Era uma tentativa tanto de coibir a exportação ilegal ou importação de bens culturais, como de promover a cooperação entre os estados americanos em prol do conhecimento mútuo e da valorização do seu patrimônio cultural.

1 GONZÁLEZ-VARAS, Ignacio. Conservacion de bienes culturales. Teoría, princípios y normas. 3. ed. Madrid, Ediciones Catedra, 2006.

2 Agradeço a Rosane Piccolo Loretto pela indicação das Cartas Patrimoniais aqui citadas.

3 Os membros da Convenção, reconhecendo que os bens culturais das Nações vinham sofrendo graves danos durante os conflitos armados, estabelecem a necessidade em se realizar um Registro Internacional dos Bens Culturais que deveriam ficar sobre especial proteção, compondo uma lista de bens móveis e imóveis materiais de excepcional valor cultural. Esses, durante os conflitos armados deveriam ser sinalizados fisicamente com um desenho de um escudo, maneira em que se acreditava protegê-los no caso dos conflitos bélicos.

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Em referência ao patrimônio industrial alguns países iniciaram seus inventários, e continuam ainda a fazê-los, a fim de identificar os elementos e em seguida proceder à seleção daqueles suscetíveis de serem preservados como testemunhos de interesse a cultura.

A importância da realização de inventários, como componente fundamental do estudo do patrimônio industrial, é ressaltada na Carta de Nizhny Tagil (TICCHI, 2003) e nos Princípios de Dublin (TICCHI-Icomos, 2011), documentos internacionais voltados especificamente à preservação dos bens industriais. Neles é destacada a importância da identificação, do inventário e da investigação, de maneira a permitir conhecer a amplitude e as especificidades desse patrimônio.

Segundo Manuel Cordeiro (2011), a Grã-Bretanha foi o primeiro país a realizar o inventário do patrimônio industrial, em 1959, a título de registros dos bens. Posteriormente tornou-se um programa de inventário sistemático. Na França, de acordo com Dalmo Dippold Vilar (2007)4, o movimento de defesa do patrimônio industrial teve início em 1960. Outros

autores apontam como início – o Inventaire Général du Patrimoine Industriel (1986). Na Inglaterra, conforme Vilar (2007), o Conselho Britânico de Arqueologia e do Ministério de Obras Públicas iniciou levantamento dos monumentos industriais, em 1963, o denominado Industrial Monuments Survey. O mesmo autor informa que o movimento de defesa desse patrimônio em Portugal iniciou-se em 1970.

Outros países também avançaram na construção de inventários do legado industrial com vistas a investigar e proteger os sítios industriais, seguindo o exemplo dos supracitados países, em especial Inglaterra, França, Suécia e Itália onde a preservação do legado da industrialização tem larga tradição(KÜHL, 2008).

No Brasil, os inventários de identificação de bens culturais, no âmbito do órgão nacional de preservação, passaram a ganhar mais expressividade a partir da década de 19805, como afirma

4 VILAR, Dalmo Dippold. Tese de Doutorado intitulada Água aos Cântaros – os reservatórios da cantarei: um estudo de

arqueologia industrial. Programa de Doutorado em Arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo, 2007.

5 No Brasil, a identificação do patrimônio cultural brasileiro inicia-se com a criação da Inspetoria dos Monumentos Nacionais, vinculada ao Museu Histórico Nacional, por meio pelo Decreto no 24.735 de 1934. Sua finalidade principal era (i) inspecionar as edificações de valor histórico e artístico, impedindo sua destruição frente às reformas urbanísticas que visavam modernizar as cidades; e, ii) controlar o comércio de objetos de arte e antiguidades, coibindo a retirada ilegal de bens móveis do país. A Inspetoria atuou até final de 1937, quando foi substituída pelo então criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). MAGALHÃES, Aline Montenegro Magalhães, 2015. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc.

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Motta e Silva (1998)6, impulsionados por diversas razões. Dentre elas, a repercussão das Missões

da Unesco realizadas no Brasil, no período entre 1966 e 1967, chefiadas por Michel Parent –, o qual recomendou a realização de inventários dos bens artísticos e culturais com vista a sua inserção no circuito turístico. Outra razão diz respeito ao fato que no contexto internacional a realização de inventários já se mostrava uma prática sistemática desde a década de 1970, como já exposto e reforçado por Marly Rodrigues (2016)7, e o Brasil procurava se alinhar a esse cenário.

Em relação aos inventários relacionados ao patrimônio industrial, mais especificamente ao patrimônio ferroviário, somente no último quartel da década de 2000 o órgão nacional de preservação inicia uma curta temporada de realização de inventários temáticos8, contemplando o

patrimônio ferroviário e o da cana-de-açúcar9. O intuito da realização desses inventários era produzir conhecimento mais amplo e aprofundado desses bens com vistas a subsidiar ações de preservação10.

No referente à metodologia utilizada na produção desses inventários algumas considerações devem ser feitas. A primeira remete-se à abordagem adotada, a qual se pautava na visão do bem isolado e fragmentado do seu contexto socioespacial. Com isso, os bens foram inventariados a partir da apreensão do edifício isolado, priorizando-se aqueles vinculados à arquitetura. A segunda consideração remete-se ao fato do inventário ter se voltado aos aspetos materiais dos bens, sem que informações sobre os processos de produção e do trabalho motivadores da sua existência fossem consideradas e associadas à sua dimensão física. Os aspectos históricos e artísticos foram os mais considerados ao longo do processo.

6 Lia Motta e Beatriz Resende Silva (Org), Inventários de identificação: um panorama da experiência brasileira. Rio de Janeiro: Iphan, 1998.

7 Cabe lembrar que nos primeiros tempos de atuação do Iphan, os critérios formadores do estoque patrimônio – constituído para consolidar uma identidade nacional –, baseavam-se nos aspectos estéticos e estilísticos, especialmente dos monumentos arquitetônicos religioso. Com isso, a prática do inventário perdia o sentido prático da sua realização.

8 Inventário do Patrimônio Ferroviário; Inventário da cana-de-açúcar; Rotas dos Imigrantes, Inventário azulejar, Inventário do Patrimônio Religioso, Inventário da calha do rio São Francisco e outros. Várias metodologias foram utilizadas para suas realizações, a saber: Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados (INBMI); Inventário de Bens Arquitetônicos (IBA); Inventário Nacional de Bens Imóveis em Sítios Urbanos Tombados (INBI-SU); Inventário de Configuração de Espaços Urbanos (INCEU); Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG) e Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

9 Para um panorama acerca das reflexões traçadas sobre os inventários realizados no Brasil, ver Marly Rodrigues,

Inventário de bens culturais: conhecer e compreender. Rev. CPC, São Paulo, n.21 especial, p.31-48, 2016 e Lia Motta e Beatriz Resende Silva (Org.), Inventários de identificação: um panorama da experiência brasileira. Rio de Janeiro: Iphan, 1998.

10 No caso específico do patrimônio ferroviário, a iniciativa do aludido órgão decorreu da promulgação do Lei no 11.483/2007. Ao extinguir a RFFSA, tal Lei determinou ao Iphan preservar seus bens de valor histórico e artístico que fossem representativos da memória ferroviária. Assunto a ser tratado na seção seguinte.

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Todavia não se pode deixar de reconhecer a importância do conhecimento produzido, apesar de ser parcial e merecer aprofundamento de maneira a subsidiar ações voltadas a sua preservação mais efetiva.

Apesar da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 considerar o inventário como uma das formas de proteção11, sua aplicação como tal ainda não foi reconhecida em todo

seu potencial pelos órgãos preservacionistas, o que o transforma em objeto de contínuas discussões jurídicas (RODRIGUES, 2016). Para alguns especialistas, o inventário é um objeto utilizado como instrumento de proteção, para outros, sua utilização como tal pode ser de imediato. Diante dessa situação, o inventário vem sendo tomado como um instrumento capaz de produzir conhecimento a partir de dados levantados no campo, de maneira a subsidiar processos de preservação. Pouco se tem tirado proveito do seu potencial como uma forma efetiva de proteção.

A prática do inventário de identificação deveria ser uma ação sistemática, inevitavelmente necessária e básica para estruturação de políticas públicas de preservação. A promoção e divulgação dos resultados dos inventários merece maior atenção, de modo a compartilhar o conhecimento produzido. Todavia, a carência desta prática e a pouca divulgação dos inventários realizados, acabam estabelecendo um resultado pouco influente na compreensão e na promoção desses bens.

Diante do exposto, apesar de reconhecer os esforços realizados no Brasil, ao menos no campo conceitual e teórico, não se pode dizer que existam diretrizes gerais para formulação de política de inventário de identificação. Assiste-se a uma proliferação de metodologias, cada uma delas voltada a um objetivo específico, como exposto na nota de rodapé no. 8 no caso do órgão de preservação nacional.

Outro aspecto referente ao processo de identificação levantado por alguns especialistas diz respeito ao caráter subjetivo dos julgamentos:

Os procedimentos atuais de identificação do patrimônio cultural realizados pelas instituições responsáveis de salvaguarda, tanto na instância nacional como na internacional, são fortemente condicionados por iniciativas individuais e julgamentos subjetivos de técnicos e pelas conjunturas políticas e econômicas dos países onde os patrimônios se encontram.(PONTUAL et al., 2008, p. 33). De certa maneira, as ações de preservação são perpassadas por julgamentos subjetivos resultantes da relação estabelecida entre o sujeito e o objeto, mas que precisam ser construídos e definidos de maneira coletiva, sem querer com isso desqualificar a capacidade do técnico. A

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ausência de uma política capaz de conduzir os processos de identificação e reconhecimento cultural de um bem, já reclamada por Motta e Silva (1998), contribui para que a seleção de bens a serem submetidos à avaliação social ocorra de maneira mais subjetiva.

De certo é que, os inventários representam um acúmulo de conhecimento adquirido e não vêm sendo utilizados em seu potencial como referência para abertura de processos de proteção, tampouco são assumidos como instrumentos de gestão do patrimônio cultural, ou ainda, como referências para orientar intervenções urbanas (RODRIGUES, 2016).

Em certas situações, como em geral ocorre no cenário brasileiro, quando concluído os inventários, passo seguinte é a adoção de efetiva medida protetiva dos bens ou conjuntos a serem avaliados como de interesse patrimonial. Critérios que orientem essas escolhas devem ser previamente estabelecidos de maneira a lançar luz sobre os bens examinados.

Outros modos de reconhecimento de bens culturais, para além do inventário, são tratados na subseção a seguir quando são expostas algumas ações mais recentes.