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Conformação dos procedimentos investigativos

6 Construindo procedimentos de reconhecimento do patrimônio ferroviário

6.1 Conformação dos procedimentos investigativos

Nos argumentos desenvolvidos nos dois primeiros capítulos desta tese, duas questões ficaram evidenciadas. A primeira diz respeito às limitações em apreender o caráter complexa e sistêmico do patrimônio ferroviário. A segunda faz referência à necessidade em estabelecer procedimentos de reconhecimento desses bens de maneira a orientar a seleção daqueles suscetíveis de serem preservados. Diante de tais questões e considerando a hipótese enunciada – os lugares centrais de uma rede ferroviária resguardam quantidade de materialidade histórica capaz de transmitir no presente o conhecimento sobre sua funcionalidade –, a principal contribuição desta tese é propor procedimentos investigativos de reconhecimento do patrimônio ferroviário estruturado em rede, a partir da identificação e da hierarquização dos seus lugares centrais.

A construção dos aludidos procedimentos parte das informações acerca dos processos que presidiram a operação de uma rede ferroviária em seu período de plena eficiência funcional, e não somente das informações emanadas das estruturas ferroviárias ainda presentes no espaço geográfico. Tal decisão se baseia no fato de que parte das estruturas presentes encontra-se desativada e desmantelada, frente à política adotada pelo Governo Federal desde a década de 1960, como demonstrado no capítulo anterior. Portanto, a construção dos procedimentos não está centrada na matéria, mas nos processos

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que articulados por meio de uma lógica funcional comandaram e controlaram a operação da Rede Ferroviária Nordeste.

Para isso, primeiramente procura-se apreender os processos e a lógica funcional operadora do período de plena eficiência funcional da Rede Ferroviária Nordeste, com vistas a identificar os pátios suscetíveis de serem caracterizados como seus lugares centrais. Em seguida, busca-se compreender – a partir de análises espaciais sincrônicas de dois períodos de tempo, o pretérito e o atual –, em quais lugares centrais a leitura da sua lógica funcional ainda pode ser percebida por meio de suportes de memória como: depoimentos de um grupo de ferroviários (memória); testemunhos escritos e iconográficos (história); e a materialidade ainda presente (fragmentos)1. É por meio do resultado desta investigação que

se faria – em etapas posteriores a esta, mas não inserida no escopo desta tese –, a atribuição e a valoração sociais de parte dos pátios ferroviários caracterizados como lugares centrais de uma rede. Em face ao exposto, propõem-se quatro procedimentos para operacionalizar a aludida investigação, a saber: (i) identificar o padrão espacial de referência de uma rede ferroviária; (ii) desvendar a lógica funcional desse padrão de referência; (iii) revelar e hierarquizar os lugares centrais no padrão de referência; e, (iv) reconhecer os lugares centrais que no presente resguardam conteúdo para entender seu funcionamento. Cada um deles, graficamente representados no Quadro 13, será construído detalhadamente nas seções seguintes por meio das suas subseções, ancorando- se no arcabouço teórico e metodológico já apresentado.

Quadro 13 : Conformação dos procedimentos investigativos

Fonte: organização da autora.

1 Ver capítulo 3, especificamente (HALBSWACHS, 1990; NORA, 1993; LOWENTHAL, 1998, ABREU, 1987; SANTOS, 2008).

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No quadro apresentado observa-se que a montagem dos procedimentos investigativos ocorre em diferentes escalas de aproximação e de afastamento como complementares, no intuito de revelar para além do visível também o que há de oculto e igualmente suscetível de avaliação cultural. Os sucessivos procedimentos abarcam tanto dimensões descritivas quanto dimensões interpretativas, analisadas espacialmente em dois períodos de tempo específico: a espacialidade pretérita e a espacialidade atual.

Na espacialidade pretérita – investigada nos três primeiros procedimentos – interrogam-se as camadas de tempo que terão de ser atravessadas na escala regional para entender os processos e a lógica funcional operadora da rede, com vista a identificar os lugares centrais. Na espacialidade atual – investigada no quarto procedimento – alcançam- se os espaços físicos componentes dos lugares centrais em sua escala local para inquerir acerca da permanência e continuidade da compreensão dos processos e da lógica do seu funcionamento. Os dados obtidos são sistematizados em mapas, quadros e desenhos de maneira a demonstrar a hipótese e alcançar os objetivos propostos nesta tese.

Diante do arranjo conformado na montagem dos procedimentos investigativos, pode-se dizer – fazendo referência a Carta de Burra (Icomos, 2015)2 – que eles se inserem

na etapa primeira do processo de construção da Significância Cultural dos bens patrimoniais, sendo ela denominada Compreensão da significância cultural 3. Especificamente

nas fases I e II desta etapa, a saber: Conhecimento e identificação do sítio e suas relações e Coleta e registro das informações para compreensão dos significados do sítio, respectivamente.

Para montagem dos citados procedimentos tomam-se como fontes documentais os relatos orais dos ferroviários – colhidos por meio de entrevistas realizadas no âmbito do projeto denominado Um trem de histórias: registro e disseminação dos saberes e ofícios da Rede Ferroviária do Nordeste (IPHAN, 2010c) –, e os registros escritos e iconográficos mobilizados nesse sentido, interpretados de maneira indissociáveis. Destacam-se em especial os registros: produzidos nas empresas ferroviárias, disponíveis nas bibliotecas e nos arquivos da RFFSA em Pernambuco e no Rio de Janeiro; aqueles acumulados no Arquivo Nacional,

2 A Carta de Burra, aprovada em 1979 pelo Austrália Icomos (Australian National Committe do Icomos, em Burra, Austrália), passou por várias revisões, sendo a mais atual a versão de 2015. Tal documento doutrinário apresenta o estabelecimento do passo a passo para identificação, registro, política, gestão e monitoramento da Significância Cultural dos bens patrimoniais, além de outras contribuições. Tal processo é constituído por três etapas: Etapa I| Compreensão da significância cultural; Etapa II| Desenvolvimento da política de conservação da significância do bem: conservar os atributos valorativos do bem cultural, e Etapa III| Gestão do bem patrimonial de acordo com a política: monitoramento e avaliação da conservação dos atributos valorativos do bem cultural. Icomos - International Council on Monuments and Sites.

3 O termo Significância Cultural foi enunciado primeiramente na Carta de Veneza (1964), contudo, é na Carta de Burra que a expressão é definida e estruturada sua aplicabilidade.

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na Biblioteca Nacional e na Biblioteca do Exército Brasileiro, no Rio de Janeiro; além dos identificados no acervo da Fundação Joaquim Nabuco e no Arquivo Estadual de Pernambuco4. A escolha pelos relatos orais dos ferroviários – como primeira percepção a

ser revelada, dentre outras a serem associadas –, não foi por acaso. Deve-se a especificidade que requer o olhar sobre o processo de funcionamento de uma rede ferroviária, difícil de ser apreendida, mas inevitavelmente necessária ser estudada. Por sua vez, para obter informações sobre a materialidade ainda presente na Rede Ferroviária Nordeste – relacionada a forma espacial e a estrutura – lançam-se mão dos dados produzidos no Inventário do Patrimônio Ferroviário (Iphan, 2009) e das observações interpretativas de campo realizadas por esta autora. Os documentos identificados foram interpretados em paralelo às investigações de campo, e serão enunciados ao passo em que se constrói cada um dos procedimentos, frente às suas particularidades.

Os procedimentos investigativos aqui propostos, convém lembra, apresentam-se como um dos caminhos possíveis para subsidiar uma estratégia de preservação do patrimônio ferroviário estruturado em rede, não sendo o único nem estando por todo acabado. Trata-se de um processo não linear que se retroalimenta a cada passo.

Por fim, entende-se que os procedimentos se mostram flexíveis de serem aplicados em qualquer organização espacial de uma rede ferroviária regional, desde que já se tenha passado pelas etapas do levantamento dos seus bens constitutivos e do conhecimento dos seus períodos formadores. Informações possíveis de serem produzidas por meio dos instrumentos do inventário e da periodização.