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Identificar o padrão espacial de referência de uma rede ferroviária

6 Construindo procedimentos de reconhecimento do patrimônio ferroviário

6.2 Procedimentos investigativos

6.2.1 Identificar o padrão espacial de referência de uma rede ferroviária

A construção do primeiro procedimento investigativo – Identificar o padrão espacial de referência de uma Rede Ferroviária, no caso da Rede Ferroviária Nordeste – tem como conjunto principal de fonte de pesquisa os seguintes documentos: Anuários Estatísticos das estradas de ferro do Brasil; Revistas Ferroviárias (Estradas de Ferro do Brasil); Periódicos; Anuário de Contadoria Geral de Transportes; Relatórios de gestão e de desempenho financeiro e econômico das estradas de ferro brasileira, além dos acervos documentais (bibliográfico, fotográfico e iconográfico) produzidos pelos técnicos das companhias ferroviárias que operaram essa Rede em tempos distintos5. No referente ao acervo bibliográfico o conjunto

de fontes de pesquisa principal são os livros: Contadoria Geral de Transportes (RFFSA, 1948); Estevão Pinto (1949), Ademar Benévolo (1953), Moacir Silva (1949) e Ernesto Cunha (1909). Todos devidamente referenciados na bibliografia desta tese.

Em relação ao acervo iconográfico fontes importantes são os documentos intitulados: The Great Western of Brazil Railway Company Limited (1903); Showing Proposed alterations & extensions to the system of The Great Western Of Brazil Railway Company Ltd (1904); Map of the system of The Great Western Of Brazil Railway Company Limited (1912); Viação dos Estados Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagôas e Sergipe (1913); Mapa da Viação dos Estados Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagôas e Sergipe (1944); The Great Western Of Brazil Ry C.L.D (1947); por fim, o Mapa Geral da R.F.N. RFFSA (1957). A coleção fotográfica produzida por técnicos da GWBR e da RFFSA, recentemente valorada pelo Iphan e recolhida para a Biblioteca Almeida Cunha (Iphan-PE), constitui-se uma importante fonte de pesquisa por ser um registro realizado a partir do olhar de técnicos especializados.

Como visto no capítulo 4, a construção da periodização da Rede Ferroviária Nordeste permitiu evidenciar – por meio das categorias de análises: processo, função,

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estrutura e forma espacial –, as transformações ocorridas nos processos de funcionamento da rede, e, por consequência, na sua materialidade. A periodização demonstrou que os fluxos de processos atravessaram o tempo investigado (1858-1957) e ganharam materialidade com a aderência ao espaço. Tal verificação possibilitou delimitar quatro padrões espaciais, assim denominados: Construção das primeiras ferrovias (1858-1900); Contribuição da Great Western of Brazil Railway (1900-1948); Consolidação da Rede Ferroviária Nordeste (1948-1957); e, Estagnação e desmobilização da Rede Ferroviária Nordeste (1957-2007). Essas informações consolidadas nos mapas apresentados no referido capítulo constituem matéria-prima relevante para montagem deste, e dos demais procedimentos aqui propostos.

Neste procedimento, analisam-se os aludidos padrões espaciais à luz das categorias analíticas – processo e função acompanhadas por seus pares estrutura e forma espacial, sem descuidar dos significados atribuídos socialmente a eles – com o propósito de identificar o período de plena eficiência funcional da Rede Ferroviária Nordeste. Período nesta tese denominado padrão espacial de referência, entendido como aquele no qual as interações espaciais ocorrem com mais intensidade por ele oferecer uma maior concentração de elementos, fato que configura a complexidade do patrimônio ferroviário.

Cabe lembrar, como registrado no capítulo 1, que a conformação da complexidade do patrimônio ferroviário passa pelo entendimento do entrelaçamento de algumas características que lhes são inerentes: (i) o caráter linear da rede, ocupando vastas extensões territoriais; (ii) a conectividade, a funcionalidade e a sistemicidade; (iii) a quantidade diversidade de bens articulados e interligados por uma lógica funcional específica; e, (iv) a estratificação e justaposição do sistema de ações e do sistema de objetos. Logo, são características que por revelarem a natureza complexa e sistêmica de uma rede ferroviária, podem contribuir para identificar o padrão espacial de referência de uma rede ferroviária. Por esse caminho segue a investigação para alcançar o objetivo deste procedimento.

A primeira característica diz respeito ao caráter linear das redes, exigindo vastas áreas territoriais para implantar suas complexas estruturas funcionais. Realidade observada no traçado da Rede Ferroviária Nordeste ao compreender que a motivação para sua implantada foi escoar a produção dos ciclos econômicos da região de cultivo para os portos marítimos situados em Recife, Jaraguá, Cabedelo e Natal. Inicialmente construída para escoar o açúcar, com o passar do tempo os trilhos da aludida Rede foram se expandindo e se ramificando seguindo uma forma espacial linear para atender às demandas da região

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produtiva do algodão, e depois também do sal, do gesso, do cimento, como visto nos quadros e mapas apresentados.

A segunda característica diz respeito à conectividade, à funcionalidade e à sistemicidade, as quais qualificam uma rede geográfica (DIAS, 2005; CORRÊA, 2001) e que perpassam o pensamento complexo e sistêmico (Morin, 2014). Ao longo da formação espacial da Rede Ferroviária Nordeste foi possível demonstrar, por meio dos mapas expostos no capítulo anterior, que a construção das chamadas “ligações ferroviárias” trouxe uma maior interação e conectividade, promovendo maior fluidez e melhor desempenho técnico e funcional. Para além disso, essa condição conferiu uma maior complexidade aos processos funcionais e à materialidade (estrutura e forma espacial) dessa Rede.

Nesse contexto, ficou evidenciado que alguns pátios ferroviários/“nós”, por oferecerem serviços essências e especializados à operação6 polarizavam grandes fluxos de

processos de trabalho e de produção, exercendo uma hierarquia sobre os demais. Por isso eles ocupavam, do ponto de vista da lógica funcional da Rede Ferroviária Nordeste, posição geográfica estratégica em relação aos demais, ora como “pátios ponta de linha”, ora como “pátios entroncamento”. Este foi o caso dos pátios ferroviários situados em Palmares, Cabo, Cinco Pontas, Jaboatão, Werneck e Paudalho (PE), Campina Grande, Souza e Itabaiana (PB) e Mossoró e Natal (RN). Essas considerações permitem pensar que existe uma hierarquização entre os pátios constitutivos de uma rede. Pista importante para compor o conjunto de fatores capazes de orientar a seleção dos bens de uma rede suscetíveis de serem avaliados como de interesse cultural.

A terceira característica refere-se à quantidade diversidade de bens formadores de uma rede ferroviária que, articulados e interligados por uma lógica funcional específica, servem de substrato material para realização dos processos. Nesta tese procurou agrupá-los do ponto de vista funcional em dois grandes sistemas de objetos7: sistema de objetos voltados diretamente à

operação dos trens – como são os materiais rodantes, estações, armazéns, oficinas, máquinas, rotundas, terrenos, caixa d’água, vias permanentes, pontes, viadutos, túneis, equipamentos de sinalização e comunicação, aparelhos de licenciamento e manobra –; e sistema de objetos voltados às atividades de apoio à operação dos trens – composto por vilas, mananciais, horto florestal, escola para filhos dos funcionários, escola de formação profissional, serviço médico e clube social, estes considerados pontos de atividades de lazer como bandas, time

6 Exemplo são as oficinas de manutenção de vagões, posto de revistação de locomotiva, sede de residência, controle do tráfego e da formação da composição ferroviária, etc.

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de futebol, etc. Entender as transformações passadas por esses sistemas pode contribuir para delimitar o período em que eles se mostraram mais homogêneos. A maneira como os aludidos sistemas se organizaram no espaço faz parte da concepção da quarta característica componente da complexidade desse legado.

Por fim, a quarta característica remete-se à estratificação e justaposição do sistema de ações e do sistema de objetos8. Na medida em que o sistema de ações torna-se mais complexo,

frente às demandas comerciais e técnicas da rede, o sistema de objetos sofre adaptações com vistas a atender aos novos processos, adquirindo assim maior complexidade. Com isso, o sistema de objetos e o sistema de ações vão se justapondo e/ou sobrepondo no espaço ao longo do tempo, conferindo uma maior complexidade funcional e complexidade estrutural 9 ao patrimônio ferroviário. Por essa razão, Maurício de Abreu (1987) chama

atenção para a necessidade em se compreender e interpretar o processo histórico que deu forma, conteúdo e significado à materialidade presente. Por esse ponto de vista, diminui-se o risco de realizar análises espaciais simplistas de bens isolados do seu contexto, as quais produzem apreensões somente da forma aparência do objeto presente no espaço. São análises que desconsideram os processos, as funções, as formas espaciais, as estruturas e os significados ao serem ancoradas no espaço geográfico. Compreender os processos e as funções constituintes da operação de uma rede pode revelar elementos ainda ocultos, porém possíveis de ampliar o conhecimento acerca do seu funcionamento. Oferecendo mais informações para sua avaliação como bem passível de interesse social. Por meio do resultado dessa análise reconhece-se como padrão espacial de referência da Rede Ferroviária Nordeste o período compreendido entre 1948 e 1957. Logo, outra pista é revelada. As chaves interpretativas que levaram a tal reconhecimento são as mesmas capazes de identificar e hierarquizar os lugares centrais de uma rede ferroviária.

Com isso, outra pista importante é revelada do ponto de vista da preservação. O padrão espacial de referência de uma rede é o ponto de partida para construção interpretativa da geografia do seu passado. Condição entendida nesta tese como essencial para ampliar o conhecimento acerca dos processos e do funcionamento das estruturas físicas ainda presentes no espaço.

8 Termos entendidos a partir de Santos (2008), ver capítulo 3.

9 Cabe aqui lembrar, embora já anunciado no capítulo 3, que a complexidade funcional está relacionada à variedade de funções que podem ser combinadas para atender a um determinado procedimento produtivo ou logístico do transporte ferroviário; e, a complexidade estrutural está relacionada à variedade do repertório de seus elementos, diz respeito ao aspecto formal e à maneira de como o objeto se articula e interage com os demais para desempenhar determinada atividade operativa (SANTOS, 2008, p. 69).

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Definido o padrão espacial de referência da Rede Ferroviária Nordeste resta examiná-lo na busca por desvendar a lógica que gerou seus sistemas de ações e articulou seus sistemas de objetos, permitindo controlar e comandar sua operação.